Contas à Vista

A segunda fase da crise econômica, financeira e tributária do coronavírus

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

14 de abril de 2020, 8h00

Spacca
Entendo que estamos diante de duas crises: uma sanitária, emergencial, e outra que agora se configura como lateral, que é a econômica. Já havia comentado sobre aspectos econômicos, financeiros e tributários durante a crise do coronavírus (leia aqui), tendo apontado algumas ações que deveriam ser adotadas pelos governos para dar um fôlego aos indivíduos, famílias e empresas. Hoje vou centrar a atenção nos aspectos pós-crise. Claro que são vários os cenários possíveis, que decorrerão das medidas que tiverem sido tomadas na fase atual, que ainda precede a agudeza dos efeitos do contágio.

As propaladas medidas governamentais tardam a chegar e, por isso, não se vê os efeitos benéficos esperados, acarretando o efeito dominó que mencionei no texto anterior. Mesmo as medidas de amparo direto à população carente não estão atendendo satisfatoriamente, como pretendido. Não há dúvida que muitas empresas sofrerão o impacto da crise, e muitas micro, pequenas e médias simplesmente fecharão as portas, como já está acontecendo. Quem sobreviver à essa pandemia sanitária e econômica sairá mais forte, e com poder de fogo para assumir posição de destaque no mercado. Porém, qual será o cenário econômico no pós-crise pandêmica?

Como a mão invisível do mercado está com coronavírus e necessitando de uma forte dose de keynesianismo para se recuperar, como se comportará quando curada, uma vez que o mercado decorre das intervenções do Estado? Com os cofres públicos abalados em face do necessário desequilíbrio fiscal que já está ocorrendo, como os governos agirão para reequilibrar suas contas? Essa é uma variável que deve ser considerada para a retomada da atividade econômica pós-crise sanitária, e no ápice da crise econômica.

Olhemos inicialmente o cenário sob o prisma ortodoxo, entre receita e despesa.

Sabemos que as receitas públicas provêm basicamente de duas fontes: de receitas decorrentes da exploração do próprio patrimônio público (ações de empresas estatais, royalties de petróleo, minério e energia elétrica etc.) ou dos tributos cobrados sobre os indivíduos e as empresas.

No âmbito patrimonial tudo indica que haverá: (1) aumento das alíquotas dos royalties; (2) aceleração da venda do patrimônio público, o que inclui o controle acionário de diversas empresas estatais, além do (3) incremento das parcerias público-privadas, a fim de transferir outras atividades que hoje estão nas mãos do Estado para a iniciativa privada.

Por outro lado, tudo indica que nesse cenário ortodoxo, o âmbito tributário que se avizinha para o pós-crise sanitária será bastante difícil para os contribuintes. O saco de maldades dos Fiscos deverá seguir vários caminhos: (1) elevação das alíquotas dos atuais tributos, com ênfase na tributação indireta, mais indolor; neste âmbito estão os tributos que incidem sobre o faturamento e o consumo de bens e serviços (Pis, Cofins, ICMS, ISS, CIDE etc.); (2) novos tributos serão criados, como a implantação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) e a imposição de empréstimos compulsórios; (3) novas incidências serão criadas como a tributação de dividendos pelo IRPF; (4) seguramente haverá acréscimo da dose de arbitrariedades por parte dos Fiscos, como já ocorreu, no período pré-crise, com as Taxas de Fiscalização sobre a atividade de mineração, petróleo, gás, recursos hídricos, dentre várias outras mágicas fiscais que alguns Estados instituíram e estão cobrando, pois pendem de julgamento no STF; (5) os governos tentarão reverter as isenções fiscais que foram concedidas ao longo do tempo, sejam as recentes, fruto do combate ao vírus, sejam as mais antigas e consolidadas; e, por fim, para completar o cenário, (6) haverá o reforço das sanções políticas visando coagir o contribuinte a pagar estas novas cargas fiscais.

Ocorre que este é um caminho que onerará fortemente a frágil recuperação econômica que se espera venha a acontecer. Se vier a ser adotada essa trilha, o remédio para a recomposição das contas públicas poderá matar os doentes (econômicos) que vencerão o surto da doença (epidêmica). Não haverá uma singela recessão, mas uma depressão econômica. Depois do Pibinho de 1,1% em 2019, estima-se em 2020 um PIB negativo da ordem de -5%. Como recuperar o crescimento de emprego e renda com este cenário?

Aos contribuintes restará se munir do arsenal de direitos fundamentais assegurados pela Constituição e já referendados pelo STF, tais como os princípios da reserva legal, da anterioridade, da isonomia, da vedação ao confisco, dentre outros. E planejar tributariamente a reorganização de seus negócios, para enfrentar esses novos tempos.

No âmbito da despesa pública o cenário indica que será necessário reduzi-las fortemente, em especial as que são rígidas – a principal dentre elas são as despesas com pessoal. Seguramente haverá um forte embate pela redução da remuneração dos servidores públicos, incluindo os dos Poderes/órgãos que possuem repasses orçamentários assegurados, como o Judiciário, Ministério Público, Defensorias e outros. Será uma luta de gigantes, por certo. Um atalho que será tentado é cancelar os anuais reajustes obrigatórios que hoje existem, deixando que a inflação corroa o poder de compra da massa salarial — essa via alcançaria também as aposentadorias e pensões.

Outra pesada despesa rígida que deveria ser reduzida é com os encargos da dívida pública, mas esse é um embate que nenhum governo pós-1988 decidiu levar adiante — haverá força para tanto?

Evitar esse ortodoxo cenário caótico é algo muito difícil, mas existe uma via heterodoxa apontada por algumas autoridades da área econômica: emitir dinheiro. Henrique Meirelles, com a autoridade dos cargos que já ocupou no setor público brasileiro e no setor privado internacional, atualmente Secretário de Fazenda do Estado de São Paulo, aponta para essa alternativa: “no momento em que o Banco Central emite (moeda), ele está simplesmente expandindo (a base monetária). Ele tem a capacidade de emissão sem contrair dívida” (leia aqui). Bingo.

O risco, como bem retrucado pelo atual Presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, é que tal medida explodiria a meta de inflação, segundo as teorias econômicas (leia aqui).

Ocorre que na atual recessão, e sob ameaça de uma depressão econômica, haveria mesmo a possibilidade de retornarmos à hiperinflação dos anos 80 e 90 do século passado? A última taxa de inflação anual que atingiu quatro dígitos ocorreu em 1993 (IPCA = 2.477,15%), e a que atingiu dois dígitos ocorreu em 2002 (IPCA = 12,53%). De lá para cá, cerca de 18 anos após, a taxa de inflação anual jamais passou de um único dígito.

Ousando meter minha colher na seara dos economistas, penso que a emissão de moeda é uma alternativa concreta e factível a ser considerada. A via tributária acima relatada só nos levará à uma brutal depressão econômica, sem que os efeitos arrecadatórios alcancem o resultado esperado. É claro que não faltarão aqueles que sugerirão fazer que nem o título de um álbum da banda de rock Titãs: tudo ao mesmo tempo agora, ou seja, uma mistura de todas as medidas acima mencionadas, abrindo seletivamente o saco de maldades de acordo com a cara do freguês e ao sabor das conveniências de plantão — haja lobby para tentar driblar alguns setores de seu alcance.

É preciso que as autoridades incumbidas de gerir o país estejam atentas a estas relações de causa-e-efeito entre o sistema econômico, o financeiro e o tributário, adotando as medidas adequadas já, aqui e agora, no meio da crise pandêmica, para que as pessoas físicas e jurídicas possam sair inteiras e com saúde física, mental e econômica suficientes para a retomada do crescimento, que virá. Devemos ter em mente aquele samba de Cartola, que diz: “fim da tempestade/ o sol nascerá/ finda esta saudade/ hei de ter outro alguém para amar”.

Se as adequadas medidas econômicas, financeiras e tributárias não forem adotadas no tempo certo, além da queda do coronavírus, virá o coice da depressão econômica.

Autores

  • é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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