Opinião

As sanções à Venezuela no âmbito do tratado interamericano de assistência

Autores

  • Lucas Carlos Lima

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

  • Bernardo Mageste C. Campos

    é doutorando em Direito Internacional pela Università di Milano-Bicocca; mestre em Direito Internacional pela UFMG.

4 de outubro de 2019, 6h24

Diante da impossibilidade do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) tomar medidas significativas envolvendo a crise de refugiados e a situação humanitária na Venezuela, não surpreende a iniciativa de alguns Estados americanos invocarem o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR)[1].

Fruto de um contexto de Guerra Fria e com a finalidade de evitar influências e intervenções no continente Americano, o tratado permanece em vigor e possui uma prática bastante restrita. Contudo, os mecanismos invocados na recente crise venezuelana levantam diversos questionamentos jurídicos interessantes, principalmente à luz da declaração de Juan Guaidó, autodeclarado presidente da Venezuela, de retorno ao TIAR.

No presente escrito analisamos juridicamente quais as possibilidades previstas no âmbito do tratado em relação ao potencial caso da Venezuela e as medidas adotadas por seu Órgão Consultivo contra o país em 23 de setembro. Em especial, duas possibilidades: a legalidade das sanções não relacionadas ao uso da força armada e a conformidade do uso da força armada com base no TIAR e sua conformidade com as regras de uso da força da Organização das Nações Unidas.

O TIAR foi criado com a finalidade precípua de estabelecer um mecanismo regional de exercício da legítima defesa coletiva, admitida pelo artigo 51 da Carta da ONU. A institucionalização da solidariedade regional em caso de ataque armado surgiu por recomendação da Conferência Interamericana para a Manutenção da Paz de 1936 e veio a ser replicado em diversas outras regiões, como o Tratado do Atlântico Norte (1949) e o Pacto de Varsóvia (1955)[2]. O princípio da solidariedade continental em caso de ataque armado está contido no artigo 3º do TIAR, que considera que “um ataque armado, por parte de qualquer Estado, contra um Estado Americano, será considerado como um ataque contra todos os Estados Americanos” e estabelece o dever de cada Estado Parte de assistir o Estado afetado, se assim solicitado e até a atuação do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Além do exercício da legítima defesa coletiva, o TIAR estabelece em seu artigo 6º a possibilidade de atuação em casos de “agressão que não seja um ataque armado”, “conflito extracontinental ou intracontinental” ou “qualquer outro fato ou situação que possa por em perigo a paz na América”. Esta última hipótese foi aquela identificada na Venezuela por 13 países (incluindo o Brasil) do Órgão Consultivo do TIAR em 23 de setembro de 2019[3]. O texto da resolução é enfático ao reconhecer que “o território venezuelano se tornou, com a complacência do regime ilegítimo, um refúgio para organizações terroristas e grupos armados ilegais (…) que ameaçam a segurança do continente”[4].

A resolução de 23 de setembro estabelece que os Estados devem adotar medidas em seus sistemas jurídicos internos para identificar, investigar e punir indivíduos ligados ao regime de Nicolas Maduro envolvidos com atividades de lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, terrorismo e crime organizado transnacional, bem como autoridades acusadas de atos de corrupção e graves abusos de direitos humanos. Tais medidas não estão previstas no rol de ações que não empregam o uso da força previstas no artigo 8º do TIAR e inovam ao determinar que seus Estados partes exerçam jurisdição extraterritorial sobre supostos crimes cometidos em território venezuelano, medida semelhante à adotada pelo Conselho de Segurança desde 2001 em relação ao combate ao terrorismo[5].

Ainda que inexista norma no ordenamento jurídico brasileiro regulamentando as potenciais sanções a serem impostas a tais indivíduos – como ocorre com a Lei que regula as sanções do Conselho de Segurança[6] – é possível imaginar que o executivo federal tenda a seguir a prática anterior de incorporar as sanções através de Decreto Presidencial. Esta situação não é desprovida de dificuldades no ordenamento interno[7].

Quando se trata de usar o TIAR para legitimar juridicamente um processo de intervenção na Venezuela, o cenário se altera substancialmente.

Existe a possibilidade jurídica de basear juridicamente no TIAR uma situação de uso da força armada (bombardeamento, bloqueio, envio de tropas, etc) no território Venezuelano. Isto porque o artigo 8º do TIAR é claro ao determinar que “as medidas que o órgão de consulta acordar compreenderão (…) o emprego de forças armadas”. Contudo, como se sabe, o uso da força nas relações internacionais é proibido pela Carta da ONU (Art. 2.4), sendo admitido somente em raríssimas exceções como o exercício da legítima defesa e a própria autorização do Conselho de Segurança[8].

As hipóteses no interior do TIAR parecem admitir a possibilidade de uso da força contra situações que possam pôr em perigo a paz e segurança regionais. Todavia o TIAR é um tratado que age no interior de um desenho global maior para o uso da força: a Carta de São Francisco. Desde 1945 a Guerra ocorre tão somente sob os umbrais da Organização das Nações Unidas. O Capítulo VIII da Carta determina especificamente a obrigação de organizações regionais de solicitarem a autorização do Conselho de Segurança antes de fazerem uso da força[9]. A leitura do tratado não pode ser feita em desrespeito às regras gerais da ONU e das normas emanadas pelo Conselho de Segurança. Seria portanto o caso de se verificar se os atos ocorridos no continente Americano poderiam ser considerados uma agressão armada para, neste caso específico, ser invocada a legítima defesa coletiva: hipótese pouco translúcida no atual cenário.

Não se pode olvidar que os atos de justificado uso da força no âmbito das relações internacionais diversos do exercício da legítima defesa dificilmente ocorrem de maneira súbita[10]. Via de regra são precedidos por uma série de atos sancionatórios ou de resoluções admoestando as partes num conflito. Há um escalonamento nas atitudes das organizações internacionais à medida que uma situação se agudiza. Caso o uso da força armada seja eventualmente utilizado na Venezuela, após um processo conduzido nos corredores das organizações internacionais responsáveis, ele deve ser pontual e obedecendo todos os critérios desenvolvidos no âmbito do direito internacional e do direito internacional humanitário.


[1] Como, por exemplo, o Departamento de Estado Americano ao declarar que “os Estados Unidos e nossos parceiros invocaram o TIAR/Tratado do Rio, que facilita a ação coletiva para confrontar a ameaça colocado pelo ex-regime de Nicolas Maduro ao povo venezuelano e à região”. https://www.state.gov/suspension-of-talks-between-venezuelas-interim-government-and-the-former-maduro-regime/

[2] Sobre a história do TIAR, ver GARCIA-MORA, Manuel R. The Law of the Inter-American Treaty of Reciprocal Assistance. Fordham Law Review, Nova York, v. 20, n. 1, p. 1-22, 1951.

[3] ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. XXX Reunião de Consulta de Ministros de Relações Exteriores. Resolução RC.30/RES. 1/19, 23 de setembro de 2019.

[4] Resolução, p.1 Tradução nossa.

[5] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Resolução nº 1373, de 28 de setembro de 2001, UN Doc. S/RES/1373 (2001).

[6] Lei nº 13.810, de 8 de março de 2019.

[7] Ver, por exemplo, os problemas suscitados por DO VALLE, M. F. V. A implementação de resoluções sancionatórias do Conselho de Segurança no Brasil – análise dos projetos de lei n. 10.431/2018 e 181/2018. In: LIMA, L.C.; SALIBA, A.T. Diálogos entre Cortes e Tribunais Internacionais. Belo Horizonte: Initia via, 2019.

[8] BROWNLIE, Ian Sir. International Law and the Use of Force by States. Oxford: Clarendon Press, 1963, p. 328. CORTEN, Olivier. Le droit contre la guerre. Paris: Pedone, 2008, p. 483.

[9] CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 26 de junho de 1945, Artigo 53. Sobre o assunto, vide CAMPOS, B. M. C. O uso da força por organizações regionais. Orientador: Aziz Tuffi Saliba. 2018. 118 f. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br. Acesso em: 25 set. 2019.

[10] GRAY, Christine. International Law and the Use of Force. 4ª ed. Oxford: Oxford University Press, 2018.

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