Diário de Classe

Freios, contrapesos e os limites da atividade jurisdicional

Autores

  • Guilherme Augusto De Vargas Soares

    é advogado mestrando em Direito Público – Hermenêutica Constituição e Concretização de Direitos – pelo programa de pós-graduação da Unisinos membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-RS membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e membro do DASEIN (Núcleo de Estudos Hermenêuticos) coordenado pelo professor Lenio Luiz Streck.

  • Giovanna Dias

    é graduanda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

16 de novembro de 2019, 8h00

O início dessa semana foi marcado pelo IV Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito, promovido pelo Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e ocorrido na Unisinos/RS. Carregando o tema Democracia e(m) Crise, foram diversos os assuntos apresentados e debatidos acerca da crise institucional que assola o país, porém, um deles recebeu especial relevância (talvez por estar entre os mais urgentes ou por exercer um papel de protagonismo no atual contexto), qual seja, o ativismo judicial.

Decidimos, então, abordar o assunto na coluna deste sábado, de maneira um pouco diferente das outras vezes em que pautamos o tema. Por isso, esse pequeno ensaio busca reconstruir o surgimento da teoria da separação dos poderes por meio do modelo tripartido de Montesquieu, com o objetivo de ilustrar a sua importância e demonstrar — ou, ao menos, tentar demonstrar — como o combate ao ativismo judicial é uma reafirmação da sua estrutura.

Como é notório, atribui-se à figura de Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu, como sendo o primeiro pensador a teorizar a separação dos poderes. No entanto, pode-se perceber, também, que já na filosofia clássica, Aristóteles, em sua vasta obra Politikón, havia esboçado contornos parecidos com a ideia de separação das funções governamentais da Pólis grega. Segundo o autor, o que realmente importa na formação governamental de uma Pólis não é a forma de governo adotada por ela, mas sim como isso se constrói e se torna um instrumento de liberdade e de poder. Ao distribuir os elementos que compõem o poder soberano da Pólis grega[1], é possível afirmar que as formulações de Aristóteles contribuíram para, posteriormente, gestar a teoria da separação dos poderes. Evidente que, inserido em um contexto de antiguidade, considerou todas as suas peculiaridades (totalmente diferente do cenário em que Montesquieu elaborou o Espírito das Leis durante o século XVIII). Todavia, é possível afirmar que, tanto Aristóteles quanto Montesquieu buscavam estruturar uma organização do poder político, aquele, dirigindo a sua criação a uma teoria que servisse de base normativa para organizar politicamente as Pólis na antiga Grécia — sempre observando as peculiaridades de cada uma, tendo em vista os objetivos e costumes próprios de cada povo —, objetivando o desenvolvimento um ambiente de espaço público, onde os cidadãos pudessem deliberar; este, elaborando uma tentativa de organização do exercício do poder político, resultando, assim, na teoria da separação dos poderes. No diálogo Críton, Platão, por meio de Sócrates, ensina porque se deve manter o respeito às decisões judiciais, ainda que, em um primeiro momento, pareçam injustas.[2] A ideia é que desrespeitar as leis significa enfraquecer as instituições da cidade. No diálogo, Sócrates cria uma ficção, um diálogo com as leis e a cidade, são elas que lhe apresentam as decorrências do seu posicionamento, qual seja: uma convenção (a lei) deve ser cumprida, ainda que injusta; descumpri-la significa cometer injustiça (e não se deve retribuir a injustiça com outra injustiça). Do contrário, aqueles que não se conformam com as convenções da sua cidade, devem buscar modificá-las por meio do Direito.

Ainda que na filosofia grega seja possível identificar tentativas de organização funcional do poder político como forma de restringi-lo, sabe-se que foi Montesquieu quem, no século XVIII, desenvolveu de maneira detalhada a teoria da separação dos Poderes no modelo tripartido como atualmente conhecido[3]. Para o filósofo, tal formulação visava combater a atuação de um poder despótico de monarquia absolutista, fazendo com que o poder pudesse controlar a ele próprio. Para que isso fosse possível, seria necessário tripartir os poderes e garantir a independência entre eles, ficando cada um responsável por, também, limitar a atuação do outro. Assim, a existência do Poder Judiciário pressupõe uma atuação não apenas independente, mas também limitada tanto pelas suas funções institucionais quanto pelas funções institucionais dos outros dois Poderes.

Assim, compreende-se que a separação, ao limitar o agir estatal, garante a liberdade política de cada cidadão e, dessa forma, torna possível a coexistência. Vejamos:

A liberdade política, em um cidadão, é esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que se tenha esta liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão.[4]

A figura dos “Checks and Balances”, comumente denominada de sistema de freios e contrapesos, torna-se imprescindível para garantir essa independência e limitação dos Poderes. Como pode ser lido:

Eis então a constituição fundamental do governo de que falamos. Sendo o carpo legislativo composto de duas partes, uma prende a outra com sua mútua faculdade de impedir. Ambas estarão presas ao poder executivo, que estará ele mesmo preso ao legislativo. Estes três poderes deveriam formar um repouso ou uma inação. Mas, como, pelo movimento necessário das coisas, eles são obrigados a avançar, serão obrigados a avançar concertadamente.[5]

Nesse contexto, a delimitação da atuação dos Poderes — e, aqui, damos ênfase no Judiciário, que é o objeto de análise do presente ensaio —, é uma garantia de que se pode esperar previsibilidade dos atos estatais, de que o uso do poder não será feito de maneira arbitrária e que as demandas estabelecidas serão, efetivamente, cumpridas. Quando o ativismo judicial se torna presente nas práticas judiciárias, consequentemente, esse laço torna-se cada vez mais enfraquecido, pois os Poderes, que antes possuíam limite de atuação, passam a agir fora dele, invadindo a esfera institucional um do outro. Em outras palavras, quando a resposta jurisdicional ultrapassa os limites estipulados no Direito, automaticamente tem-se uma resposta arbitrária e, não raras vezes, criativa, produzindo regras que não foram deliberadas publicamente.

Cabe, a partir de agora, fazer menção ao artigo 489 do CPC, que surge na reforma processual de 2015 como uma possível barreira para frear o protagonismo judicial que assola o cenário jurídico nacional e balizar as decisões judiciais, possibilitando, assim, a não interferência do Poder Judiciário no modelo clássico da teoria da separação dos poderes.

O Código de Processo Civil trouxe grandes mecanismos inovadores ao processo civil pátrio, mas, ainda assim, a inserção do artigo 489 pode ser considerado um dos mais importantes, pois surge em meio a uma esfera de tensão entre a existência de um Judiciário protagonista, ou seja, ativista, e uma corrente voltada ao cumprimento do Direito. Portanto, o dispositivo, ao estabelecer os elementos essenciais de uma sentença, funciona como uma espécie de “baliza” constitucional das decisões judiciais, reforçando o conteúdo do artigo 93, IX da Carta Fundamental de 1988. Surge como forma de tentar — ao menos — combater o protagonismo judicial que advém do uso discricionário do procedimento.

No entanto, ainda que o dispositivo seja uma boa forma de ver garantida a segurança jurídica e o respeito à Constituição, não resolve o problema da linguagem identificado por Lenio Streck em toda a sua vasta obra. Utilizar-se das palavras como um instrumento para alcançar determinados interesses, tornando particular aquilo que, em essência, é público, ainda é uma habilidade a ser constrangida. O autor adverte — e sempre advertiu — que a sustentação do ativismo é resumida em um utilitarismo moral, assentado na vontade de quem o pratica, o que pode ser ameaçador para o regime democrático.[6] Por isso, Streck sustenta que é necessário produzir o constrangimento às arbitrariedades, não apenas em um nível formal, mas também em um nível de conteúdo, quer dizer, em um nível de linguagem.

Por fim, sempre existirá um elemento de princípio que jamais pode ser violado: o respeito às regras preestabelecidas e ao desenho institucional. Conseguiu-se, até aqui, arquitetar uma belíssima engenharia estrutural de contenção entre os Poderes, e o respeito ao Direito significa a manutenção dessa estrutura e da força normativa da Constituição.


1 ARISTÓTELES. Política. 5. edição, trad. Pedro Constantin Tolens. São Paulo: Martin Claret, 2001. p. 170.

2 Recomendamos a leitura do ensaio publicado aqui na ConJur: LORENZONI, Pietro Cardia. Criton: argumentos de política e argumentos de princípio. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. São Paulo, 05 out 2019. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-out-05/diario-classe-criton-argumentos-politica-argumentos-principio>.

3 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das leis. Tradução Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

4 Ibid., p. 168.

5 Ibid., p. 176.

6 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 257.

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bacharel em Direito pela mesma universidade e membro do Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuticos e Membro da Comissão de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil – Rio Grande do Sul (OAB/RS).

  • é graduanda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bolsista de iniciação científica pela FAPERGS e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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