Diário de Classe

Criton: argumentos de política e argumentos de princípio

Autor

  • Pietro Cardia Lorenzoni

    é advogado professor de Direito Público do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) diretor jurídico da Associação Nacional de Jogos e Loterias e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

5 de outubro de 2019, 11h08

Maquiavel ensina que boa parte dos problemas que se apresentam para os seres humanos é cíclica. O grande clássico florentino, com base nessa constatação, defende que “aquele que estudar cuidadosamente o passado poderá prever os acontecimentos que se produzirão em cada Estado e utilizar os mesmos meios que empregados pelos antigos[1]”. Ele completa, assinalando que se esses meios não mais existirem, poderíamos imaginar novos à semelhança dos acontecimentos históricos.

O texto de hoje aborda essa perspectiva maquiavélica, no melhor sentido da palavra. Isso, pois se retoma um dos grandes problemas que o direito brasileiro se depara hoje. Esse problema é a questão da autoridade do direito. Explica-se. O ordenamento jurídico brasileiro como um todo, na nossa contemporaneidade, apresenta-se fragilizado. Os exemplos dessa fragilização são diversos[2] e constantemente denunciados pelo professor Lenio Streck, que, com sua postura de vanguarda, defende um pilar basilar da nossa democracia —o respeito pela constituição.

A fragilidade da autoridade do nosso ordenamento pátrio começa a se tornar senso comum diante dos diversos casos julgados pelos tribunais superiores, escândalos noticiados pela mídia e repercussões eminentemente políticas em questões (que deveriam ser) jurídicas. Mais uma vez, lembramos da acertada advertência do professor Lenio Streck que demonstra como os predadores do direito estão tomando espaço do fenômeno jurídico.

Um dos principais motivos da perda da autoridade do direito, na singela opinião do autor, é uma confusão atual sobre quais argumentos são válidos para cada campo. Em outras palavras, quais fundamentos são válidos no debate político, quais argumentos são válidos no debate jurídico e quais razões guiam a ação depois da decisão jurídica. Para fazer essa análise, partir-se-á de uma proposta de (re)leitura de duas obras de Platão. São elas a Apologia[3] e Críton[4]. Uma síntese da releitura dessas pequenas grandes obras deve ser feita para melhor ilustrar o raciocínio a ser desenvolvido aqui.

A Apologia trata do julgamento de Sócrates na corte de Atenas. O livro narra, segundo o professor de Yale Steven B. Smith, o maior diálogo platônico, uma vez que Sócrates faz sua defesa diante de cerca de 500 atenienses. A acusação versa sobre suposta traição por parte do filósofo à pólis grega.

O resumo da acusação é dado pelo próprio Sócrates, que explica o cerne dela: “Sócrates comete injustiças e é intrometido por investigar as coisas terrenas e as coisas celestiais e por fazer o discurso mais fraco ser o mais forte e por ensinar outros as mesmas coisas” e “Sócrates comete injustiças por corromper os jovens e por não acreditar nos deuses que a cidade acredita, mas em outros novos daimonia”.  Sócrates defende que a hipótese fática dos supostos crimes não ocorreu, argumentando que ele não apenas não cometeu injustiças como as suas investigações são o próprio caminho de um cidadão virtuoso e que esse trajeto, inclusive, é demandado pelos deuses. O filósofo afirma categoricamente que uma vida que não é investigada não merece ser vivida por um ser humano.

O conflito de concepções do diálogo platônico é, além de interessantíssimo, muito ilustrativo de um debate público. Apesar de Sócrates rebater individualmente cada uma das acusações com poderosos argumentos, o centro de debate é a diferença entre a concepção de um bom cidadão para o senso comum ateniense, descrito por Meletus, Anytus e Lycon e a perspectiva de cidadão virtuoso socrática.

 Os contra-argumentos levantados por Sócrates demonstram com precisão a disparidade de concepções e a força dos argumentos próprios do bom cidadão para a pólis na opinião do filósofo. Entre eles, destaca-se: “Melhores dos homens, vocês são atenienses, da melhor das cidades com a melhor reputação por sua sabedoria e força. Vocês não têm vergonha de tanto se preocupar com ter a maior quantidade de dinheiro possível e com reputação e honra, mas não se preocupar com a prudência e com a verdade? Como suas almas serão as melhores possíveis?”

O filósofo completa: “E, se um de vocês contestar e afirmar que se importa, eu (…) vou falar com ele, examiná-lo e testá-lo. E, se ele não me parecer possuir virtude, mas apenas dizer que possui, eu o censurarei, dizendo que ele considera as coisas mais importantes como as piores e as coisas mais insanas como as mais importantes”.

Sócrates, contudo, é condenado pelo tribunal ateniense. Os cidadãos, seguindo as regras atenienses, decidem pela condenação do filósofo a pena de morte. Algo esperado por Sócrates como ele deixa claro ao longo do diálogo. A dura decisão da cidade de penalizar as investigações filosóficas com a pena de morte é tomada por uma pequena margem de 30 votos.

Para a presente abordagem, deve-se deixar claro que o pensador grego combate ativamente a acusação, demonstrando, em diversas passagens, como ela é injusta, equivocada e falsa. Os argumentos trazidos por ele vão desde da apresentação das contradições das imputações até a má-compreensão dos deuses, perseguição e desavenças morais.

Da Apologia, estuda-se Críton, que trata de um diálogo platônico entre Sócrates e um companheiro. Nesse texto, Sócrates espera pela chegada da morte numa cadeia ateniense, enquanto Críton, amigo pessoal do filósofo, tenta convencê-lo de que a melhor alternativa é fugir da prisão. Inclusive, os guardas da prisão já estariam corrompidos pelos amigos do pensador e uma rota de fuga com auxílio logístico e financeiro já estaria montada para auxiliá-lo.

Interessante ponto da fundamentação empregada por Críton dá-se da seguinte maneira: “meu pobre Sócrates, ainda uma vez, dá-me ouvidos e põe-te a salvo; porque, para mim, se vieres a morrer, a desdita não será uma só; à parte a perda de um amigo como não acharei nenhum igual, acresce que muita gente, que não nos conhece bem, a mim e a ti, pensará que eu, podendo salvar-te, se me dispusesse a gastar dinheiro, não me importei. Ora, existe reputação vergonhosa do que a de fazer caso do dinheiro que dos amigos? O povo não vai acreditar que tu é que não quiseste sair daqui, a despeito de o querermos nós mais que tudo”.

Possivelmente, o ponto mais alto da comparação entre os dois diálogos é a diferença de abordagem do antes acusado e agora condenado. O discurso muda radicalmente. Enquanto em Apologia percebia-se um cidadão combativo, numa clara tentativa de influenciar a opinião pública e o resultado da decisão, em Críton, vislumbra-se um cidadão conformado com o julgamento. A mesma opinião pública de Apologia, em Críton, não importa mais. Esse ponto é perceptível pelos argumentos trazidos por Sócrates para demonstrar o equívoco do amigo.

Nesse sentido, o filósofo contra-argumentaa narrativa proposta, que pode ser sintetizado na seguinte fala: “meu excelente amigo, não é absolutamente com o que dirá de nós a multidão que nos devemos preocupar, mas com o que dirá a autoridade em matéria de justiça e injustiça, a única, a verdade em si.” Nesse ponto, é flagrante a divisão entre a opinião pública e a autoridade do direito.

Para auxiliar no convencimento, Sócrates propõe o seguinte exercício: um diálogo entre ele, a pólis e o direito ateniense. A fundamentação dos argumentos trazidos por eles está amparada em um princípio basilar: a autoridade do direito.

Esse pilar do exercício argumentativo proposto por Sócrates fica claro nessa passagem: “chegassem o direito e a Cidade, assomassem perguntado: ‘dize-nos, Sócrates: que pretendes fazer? Que outra coisa meditas, com a façanha que intentas, senão destruir-nos a nós, o direito e toda a Cidade, na medida de tuas forças? Acaso imaginas que ainda possa subsistir e não esteja destruída uma cidade onde nenhuma força tenham as sentenças proferidas, tornadas inoperantes e aniquiladas por obra de simples particulares?’ – Que responder, Críton, a essas e semelhantes perguntas? Muitos argumentos poderiam ser aduzidos, sobretudo por um orador, em defesa da lei por nós violada que estabelece a autoridade das sentenças proferidas”.

Eles completam: “Que o dever é ou dissuadi-la ou cumprir seus mandados, sofrer quietamente o que ela manda sofrer, sejam espancamentos, sejam grilhões, seja a convocação para ser ferido ou morto na guerra? Tudo isso deve ser feito e esse é o direito – não esquivar-se; não recuar; não desertar o posto; mas, quer na guerra, quer no tribunal, em toda a parte, em suma, cumpre ou executar as ordens da cidade e da pátria ou obter a revogação palas vias criadas do direito”.  Esse é um ponto central para relacionar e entender como o texto pode auxiliar o ordenamento jurídico pátrio a lidar com a fragilização do ordenamento jurídico. A separação dos campos argumentativos e, quiçá, mais importante, da noção do individualmente justo do determinado pelo direito é algo em crise no Brasil contemporâneo.

Na sequência de Críton, o direito e a pólis reprimem Sócrates pela intenção de fuga no exercício proposto pelo filósofo: “Mas quem dentre vós aqui permanece (em Athenas), vendo a maneira pela qual distribuímos justiça e desempenhamos as outras atribuições do Estado, passamos a dizer que convencionou conosco de fato cumprir nossas determinações; desobedecendo-nos, é réu tresdobradamente: porque a nós que o geramos não presta a obediência; porque não o faz a nós que o criamos e porque, tendo convencionado obedecer-nos, nem obedece nem nos dissuade se incidimos nalgum erro; nós propomos, não impomos com aspereza o cumprimento de nossas ordens, e facultamos a escolha entre persuadir-nos do contrário e obedecer-nos”. Ressalta-se a faculdade da escolha entre a persuasão da cidade do contrário, eminentemente pelo espaço político, e o dever de obediência, eminentemente jurídico.

Mais uma vez: percebe-se como, já para Sócrates, há uma limitação do argumentativamente aceitável a depender de três espaços distintos. Isso ocorre pois há um campo discursivo apto a “persuadir a cidade do contrário” que se desdobra em dois; ou seja, há um espaço de possível influência do cidadão na formação do direito que pode e deve ser ocupado como forma de ativamente participar da criação do direito. Esse espaço pode ser o da criação política do ordenamento ou da formação da decisão judicial.

Nesse ponto, há a persuasão, por exemplo, na criação de uma lei ou na definição de um julgamento. Contudo, a delimitação desse espaço é dada pela própria cidade, por intermédio do regramento jurídico.

De outro giro, uma vez que essa decisão esteja formada e seja considerada direito, o espaço de diálogo altera-se. Diante desse ponto, vigora a autoridade do direito, garantindo que aquela decisão tomada seja aplicada. Não se ignora o fato de que a autoridade do direito mantém-se e define os três campos de aplicação, contudo, o espaço do discursivamente aceitável e possível nesses campos modifica-se de maneira notável. 

Assim, parece possível uma aproximação dos diálogos platônicos com os argumentos de política e argumentos de princípios. Conforme ensina Francisco Motta, para Dworkin, argumentos de princípio são “argumentos em favor de um direito” e “argumentos de política são argumentos em favor de algum objetivo de cariz coletivo, geralmente relacionado ao bem comum (noutras palavras: os princípios são proposições que prescrevem direitos; as políticas são proposições que descrevem objetivos)”[5] .

Dworkin[6] identifica que há espaços específicos que delimitam a possibilidade de utilização de certos argumentos e certas posturas a depender de qual campo estivermos analisando, seja ele um campo político ou um campo jurídico. A adequação do discurso ao seu campo específico legitima a própria decisão e a autoridade. Dito de outra maneira, há de se compreender que existem argumentos e posturas válidos dentro do debate político e argumentos e posturas válidos no debate jurídico e, nesse sentido, a própria legitimidade da autoridade, seja ela jurídica ou política, depende da conformação da postura com os limites desse espaço.

Destarte, a relação entre os autores, Platão e Dworkin, faz-se possível para compreender que a autoridade do direito depende da acomodação dos seus sujeitos aos limites argumentativos de cada um desses espaços – wittgensteinianamente, poder-se-ia falar em jogos de linguagem distintos. Nesse ponto, o direito brasileiro apresenta-se fragilizado. Os exemplos práticos são diversos e não serão aqui aprofundados, mas, apenas de forma exemplificativa, podemos citar: a postura iluminista do Supremo Tribunal Federal, a invasão do espaço político por posturas judiciais ativistas e a fragilização da autonomia do Ministério Público por questões políticas.

Com efeito, se os problemas que se apresentam para os seres humanos são cíclicos, também as soluções podem ser extraídas, eventualmente, da história. Assim, os ensinamentos platônicos relacionados com o âmbito adequado de cada discurso na vida pública pode auxiliar, e muito, na compreensão da adequada relação entre direito e política e, a partir dessa relação, concretizar a autoridade do direito brasileiro, afinal, “não é absolutamente com o que dirá de nós a multidão que nos devemos preocupar, mas com o que dirá a autoridade em matéria de justiça e injustiça, a única, a verdade em si”.

 


[1]Nicolau Maquiavel, Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Livro I, cap. XXXIX.

[3]PLATO, Apology of Socrates. Trad. Thomas G. West. Cornell University Press

[4]PLATO, Crito. Trad. Cathal Woods; Ryan Pack. Creative Commons.

[5] MOTTA, Francisco José Borges. Levando o direito a sério: uma exploração hermenêutica do protagonismo judicial no processo jurisdicional brasileiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Pós-Graduação strictu sensu em Direito,  Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, 2009. p. 173.

[6]DWORKIN, Ronald M. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 101.

Autores

  • é advogado, professor de Teoria do Direito da Faculdade Monteiro Lobato, doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), mestre em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público, especialista em Justiça Constitucional pela Universidade de Pisa (Itália) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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