Presunção de inocência é da Constituição e só assembleia pode mudá-la, dizem especialistas
13 de novembro de 2019, 20h54
Após o Supremo Tribunal Federal retomar o entendimento original sobre a execução antecipada da pena e a consequente soltura do ex-presidente Lula, o mundo político iniciou uma série de movimentações para reverter a decisão que derrubou a prisão em segunda instância.
Duas propostas de emenda constitucional com esse objetivo já circulam no legislativo, uma no Senado, casa que deve apreciar a questão em 20 de novembro, e uma na Câmara, que votará a medida na próxima terça-feira (19/11).
As mobilizações alcançaram até mesmo o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que declarou nesta terça-feira (12/11) — para desgosto de Rodrigo Maia (DEM/RJ), presidente da Câmara — que irá consultar líderes partidários não sobre a possibilidade de uma PEC, mas de uma Constituinte que permita a execução antecipada da pena.
Para o advogado Daniel Gerber, mestre em Direito Penal e Processual Penal, “uma PEC é algo absolutamente equivocado na medida em que emenda constitucional não pode alterar cláusula pétrea”.
“Se fôssemos mexer no conceito da presunção de inocência teríamos que alterá-lo por meio de uma nova Constituinte. Também não podemos mexer no artigo 283 do Código de Processo Penal, que vincula a prisão ao trânsito em julgado da sentença condenatória, já que este artigo acabou de ser declarado constitucional pelo STF. A saída adequada, portanto, é uma lei ordinária, que antecipe o trânsito em julgado de uma causa para a segunda instância. Ou seja, na segunda instância o processo estará terminado. Nessa ótica, os recursos constitucionais passarão a ser ações autônomas de impugnação. A pessoa poderá recorrer aos tribunais superiores, mas por meio de ações autônomas de impugnação”, afirma Gerber.
No entender do advogado, porém, a antecipação do trânsito julgado só é válida se fizer parte de um projeto muito maior de despenalização e descriminalização de inúmeras condutas do Código Penal. “A verdade é que no Brasil, se pune muito com pena de prisão delitos que jamais deveriam levar alguém ao cárcere. Dentro de uma política despenalizadora, então, ficaria de bom tom adiantarmos o trânsito em julgado para a segunda instância, mas apenas dentro desse contexto”, conclui.
Para o advogado constitucionalista e criminalista Adib Abdouni, apesar de ser razoável a indignação do público leigo acerca da recente decisão do STF, que proíbe a prisão após condenação criminal em segunda instância, “o fato jurídico indiscutível é que o legislador constituinte originário optou por adotar regra garantista inabalável — no campo dos direitos e garantias fundamentais —, segundo a qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Ainda segundo ele, “as propostas de congressistas para alterar o texto constitucional por meio de Emenda à Constituição, de modo a autorizar a prisão após condenação em segunda instância, não merecem reflexão maior a respeito de sua correção ou não do ponto de vista jurídico, porque são iniciativas impróprias, e, sobretudo, inconstitucionais, por vício insanável que as acomete já em seu nascedouro”.
O constitucionalista considera que o entendimento favorável à execução provisória da pena ganha “contornos de populismo político em nítida subversão da ordem jurídica, tornando tábula rasa um dos mais fundamentais mandamentos constitucionais de proteção do indivíduo, em combate ao arbítrio e ao abuso do Estado punitivo: a presunção de não culpabilidade”.
Vera Chemim, advogada constitucionalista, mestre em direito público administrativo pela FGV, avalia que “a possibilidade de se ‘modificar’ o conteúdo material de um direito fundamental esculpido no artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, qual seja, o da presunção de inocência, por meio de uma Emenda Constitucional promete um debate polêmico, tanto do ponto de vista do Direito Constitucional, quanto pelo fato de que aquela possibilidade, uma vez concretizada, afetaria direta ou indiretamente personalidades do mundo político e, por consequência, remeteria igualmente a uma discussão, cujo pano de fundo seria político-ideológica”.
Daí a complexidade do debate. “Do ponto de vista constitucional há que se analisar sobre o caráter absoluto de um direito fundamental ‘individual’ relativamente a um direito fundamental ‘coletivo’”, afirma ela.
“Por outro lado”, prossegue Vera Chemim, “a discussão remete igualmente à hipótese de se elencar um novo dispositivo constitucional fora do artigo 5º e que teria a função de regulamentar explicitamente a interpretação do princípio de presunção da inocência enquanto cláusula pétrea. Esse suposto procedimento levantaria o debate na doutrina, sobre as teorias que reconhecem ou não direitos fundamentais formais, isto é, expressos em sessão especial, de uma Constituição e outros direitos fundamentais espalhados em seu texto, mas que não teriam o status de ‘formais’ e sim de direitos materialmente fundamentais. Existem ainda outros elementos relevantes a serem introduzidos, mas essa é a questão. Um risco é iminente: o de se fazer uma Emenda Constitucional ou mesmo um dispositivo legal que venha a ‘abolir’ o núcleo essencial daquele princípio e provocar, posteriormente, uma nova judicialização do tema.”
Ruptura constitucional
O advogado Tony Chalita, sócio do departamento de Direito Eleitoral e Político do BNZ Advogados, ressalta por sua vez que “agarrar-se nos tentáculos da proteção irracional da moralidade e do combate à impunidade, omitindo-se — por desconhecimento e ignorância ou desprezo consentido — o texto constitucional, é advogar pela corrosão do Estado Democrático de Direito. Do ponto de vista estritamente constitucional, não se pode admitir a utilização de um expediente desta natureza para satisfazer a ira punitivista cada vez mais latente em nosso ambiente social”.
“Não vejo, portanto, sob qualquer ótica, a possibilidade de se admitir uma interpretação que negue a vigência do parágrafo 4° do art. 60 da Constituição Federal, que expressamente impede qualquer proposta de emenda violadora ou simplesmente redutora de direitos e garantias individuais. Imaginar o contrário, é abrir um precedente gravíssimo, que, a depender da conveniência aceitaria mudanças na forma federativa de Estado, no voto e, inclusive, na estrutura de separação de poderes hoje existente. Mas, se ainda assim, a ‘pressão das ruas’ exigir o contrário, seremos conduzidos a um ambiente de ruptura constitucional que poderá trazer efeitos catastróficos às conquistas democráticas alcançadas nos últimos anos”, conclui Chalita.
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