Opinião

PEC da Emergência perde oportunidade de proibir acúmulo de subsídio com auxílios

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12 de novembro de 2019, 6h29

A remuneração do funcionalismo público desperta debates acalorados, disputas entre categorias, em meio à discussão de contenção de despesas e corte de gastos, num contexto em que o país precisa recuperar a capacidade de investimento em seu orçamento fiscal.

A PEC 186, de 2019, surge nesse contexto. Parafraseando Tom Jobim, “morar em Nova York é bom, mas é ruim; morar no ruim; morar no Rio é ruim, mas é bom”[1]. Com relação à PEC da Emergência Econômica é aplicável o mesmo trocadilho: ela é boa, mas também é ruim.

Inicialmente, focarei nas críticas, no que tange à aplicação da redução de 25% dos salários contida na proposta, caso aprovada, às carreiras de Estado, que exercem uma função essencial à Justiça de igual importância: a magistratura, a advocacia pública, o Ministério Público e a Defensoria Pública.

Por outro lado, PEC 168/2019, perdeu a oportunidade de dizer qual o conteúdo jurídico do subsídio, evitando a multiplicidade de auxílios, parcelas autônomas, verbas indenizatórias ou qualquer outro nome que se dê para disfarçar o que é remuneração.

Pois bem. Propõe o texto:

“Art. 37. …………………………………..

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XV – o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, § 4º, 150, II, 153, III, 153, § 2º, I, e 169, § 3º, I-A;

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(…)

Art. 167-A. No exercício para o qual seja aprovado ou realizada, com base no inciso Ill do art. 167 da Constituição Federal, volume de operações de crédito que excedam à despesa de capital, serão automaticamente acionados mecanismos de estabilização e ajuste fisca~ sendo vedadas ao Poder Executivo, aos órgãos do Poder Judiciário, aos órgãos do Poder Legislativo, ao Ministério Público da União, ao Conselho Nacional do Ministério Público e a Defensoria Pública da União, todos integrantes dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União

(…)

§ 3°No período de que trata o caput, a jornada de trabalho dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional poderá ser reduzida em até 25% (vinte e cinco por cento), com adequação proporcional de subsídios e vencimentos à nova carga horária, nos termos de ato normativo motivado do Poder Executivo, dos Órgãos do Poder Judiciário, dos Órgãos do Poder Legislativo, do Ministério Público da União, do Conselho Nacional do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, que especifique a duração, a atividade funciona!, o órgão ou entidade administrativa objetos da medida, bem como discipline o exercício de outras atividades profissionais por aqueles que forem alcançados por este dispositivo”

Se houver redução de carga horária (leia-se, carga de trabalho) em 25%, é legal a redução do salário em 25%. Deixando de trabalhar, deixaria de haver a remuneração correspondente, respondendo ao princípio da remuneração igual para o trabalho.

No entanto, o inciso XV trouxe mais problemas do que solução porque algumas carreiras, embora tenham carga horária ideal fixada em lei, não tem jornada de trabalho fixa e, não rara às vezes, não são remunerados por isso. Nesse particular, a PEC se desconexa com a proposta de redução de 25% do salário, conforme proposta do artigo 167-A, parágrafo 3º, da Constituição, atentando contra o artigo 1º do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do artigo 7º, “a”, do Protocolo de San Salvador, que impõem ao Brasil, como obrigação internacional, salário equitativo e igual por trabalho igual, sem nenhuma distinção.

Isto porque agentes policiais, delegados de Polícia Federal, advogados públicos, magistrados e promotores, a par da previsão legal da carga horária na lei de criação do cargo, possuem, pela sua natureza de suas competências, jornada flexível. Policiais fazem campana. Advogados públicos despacham perante órgãos judiciários e administrativo, atuam em processos judiciais e prestam assessoria e consultoria às autoridades públicas. A criminalidade e a demanda das entidades judiciárias, bem como os prazos em que o procurador federal se manifesta não irão diminuir.

A redução que poderia atingir essas carreiras, sem jornada fixa, diz respeito ao trabalho extraordinário, que é regido pelo artigo 26 da LC 73/1993 com correspondência com o artigo 38, parágrafos 1º e 2º, da Lei 8.112/90 (para AGU)[2], pela Lei 13.024/14 (para o Ministério Público), pelas Leis 13.093/15, 13.094/15, 13.095/15 e 13.096/15 (para a magistratura) e pela Resolução 104/2015 do CSDPU (que não criou remuneração, mas deu ao defensor o direito de compensar dias pelo trabalho extraordinário).

Cessado o trabalho extraordinário, é possível cessar a gratificação dele decorrente. Mas, é impossível reduzir a carga horária ordinária das carreiras que exercem uma função à Justiça, reduzindo 25% do salário, pois isso implicaria enriquecimento ilícito do Estado, uma vez que, pela natureza das atribuições dessas carreiras, o trabalho se manteria normalmente.

Nesse aspecto, a PEC é bem ruim. A inconstitucionalidade é chapada.

Mas é inegável que a proposta traz avanços, que poderiam ser aperfeiçoados ainda mais pelo Parlamento. Refiro-me à perda da chance de racionalizar o sistema de subsídios, que continuará descontrolado, quando assistiremos a criatividade da burocracia para criação de auxílios, representação, ajudas e indenizações sem dano: os vários nomes já dados furar teto constitucional, que, como já advertiu, há meia década, o procurador federal Carlos André Studart Pereira[3], o “teto salarial previsto na Constituição virou piso”

Art. 37. …………………………………..

……………………………………………

XXIII – são vedados lei ou ato que conceda ou autorize o pagamento, com efeitos retroativos, de despesa com pessoal, inclusive de vantagem, auxílio, bônus, abono, verba de representação ou benefício de qualquer natureza;

A PEC perde a oportunidade para dizer qual o conteúdo do subsídio, que é parcela única. Mas, parcela única é parte de um todo. Então, única, propriamente, ela não é. Por isso tantos penduricalhos.

O subsídio é único no sentido de ser a parcela paga em valor fixo, com habitualidade, como contraprestação ao trabalho, que é fixada para atender necessidades com “moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social” (artigo 7º, IV, da Constituição), de acordo com a complexidade e peculiaridades do cargo e requisitos para sua investidura (artigo 39, parágrafo 1º, da Constituição).

Se o subsídio visa, assim como o salário mínimo, cobrir necessidades com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, a PEC perde a oportunidade de estabelecer que é incompatível com o subsídio ou vencimento-base quaisquer auxílios, ajuda ou verba de representação.

Essa medida é extremamente necessária, sob pena de relegar mais uma tentativa de reforma do Estado ao fracasso, pois o conceito de subsídio, que foi introduzido pela Emenda Constitucional 19/1998, mudou muito ao longo dos anos.

Na primeira tentativa, a EC 19/1998, ao tentar definir, como “parcela única”, a remuneração fixada em retribuição ao exercício do cargo por um membro de Poder, por detentor de mandato eletivo, por ministros de Estado e por secretários estaduais e municipais, a Constituição também vedou o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, conforme artigo 39, parágrafo 4º, da Constituição Federal.

Contudo, a Emenda Constitucional 47/2005, três anos após a instituição de um teto autoaplicável pela Emenda Constitucional 41/2003, ressalvou do mesmo teto e, consequentemente do conceito de subsídio, “as parcelas de caráter indenizatórios previstas em lei”.

Além das parcelas indenizatórias (artigo 37, parágrafo 11º, da Constituição), a Constituição reconhece a possibilidade de pagamento parcelas que dizem respeito aos direitos sociais do servidor público (artigo 39, parágrafo 3º, da Constituição), a exemplo da gratificação pelo acúmulo de ofícios ou jurisdição, e também parcelas de caráter privado, como os honorários advocatícios, jetons e prêmios de produtividade (artigo 39, parágrafo 7º, da Constituição)

A utilização de palavras parecidas, a exemplo de “vencimento” (no singular) e “vencimentos” (no plural), para designar conceitos distintos, ou a utilização de conceitos de palavras distintas se referindo ao mesmo conceito, como “vencimentos”(no plural) e “remuneração”, é uma das causas da má interpretação e aplicação do texto da Constituição. De fato, a Constituição Federal se vale do termo “espécies remuneratórias”, no inciso XIII do seu artigo 37, como gênero que compreende quaisquer estipêndios, como o subsídio, o vencimento (singular), os vencimentos (plural) e a remuneração, pago aos servidores públicos.

De qualquer modo, de lege lata, o regime do subsídio tornou-se, assim, mais amplo até que o regime de vencimentos, na medida em que este abrangia quaisquer vantagens previstas em lei, incluídas as indenizações legais, (artigo 41 e 49 da Lei 8.112/1990), ao passo que o subsídio passou a comportar parcelas indenizatórias, extraordinárias e privadas. Apenas parcelas dessas três naturezas são compatíveis com o regime de subsídio, nada mais.

Por isso, a PEC da Emergência Econômica perde uma chance de evitar a sua própria erosão: ao deixar de definir o conteúdo jurídico do subsídio, quais necessidades devem ser atentivas pela parcela única, como faz a Constituição com relação ao salário-mínimo, ela não impede a proliferação de auxílios e gratificações para remunerar necessidades que já são remuneradas pelo salário do agente público.

O ideal é que a proposta acrescentasse o seguinte dispositivo:

“As espécies remuneratórias de que trata o art. 37, XIII, da Constituição, que compreendem o subsídio, os vencimentos e a remuneração pagas pela União, pelos Estados, pelos Municípios e pelo Distrito Federal, atenderão às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, sendo compatíveis com o subsídio ou vencimento apenas parcelas de natureza privada, indenizatória ou premial”

E esse outro, que parece óbvio, mas é indispensável:

“Compreende-se por indenização paga ao servidor a reparação de um dano ou uma necessidade causada pelo exercício do cargo público, segundo índices e parâmetros estatísticos oficiais”

Afinal, já tinha se pronunciado a ministra Carmen Lúcia, no julgamento do RE 606.358 que “indenização é deixar indene, sem dano. Se não houve dano, não há que se falar em indenização, por óbvio. Aí é português. E, no entanto, sob o nome de verba indenizatória se paga o que não deve”

A crítica visa aperfeiçoar as brechas do texto, pois o risco jurídico de a PEC da Emergência não atingir seu propósito e, principalmente, estimular, por suas brechas, a criação de penduricalhos, que, em 30 anos de Constituição, não foram vencidos.

A chance de mudar essa desolador panorama constitucional, mais uma vez, está posta na mesa para o debate.

[1] Há versões que substituem o adjetivo “ruim” por “merda”. A frase correta do Tom assim seria “viver em Nova York é bom, mas é uma merda; viver no Rio é uma merda, mas é bom. Como pouca gente lê nota de rodapé, preferi utilizar a primeira, pelo tom lúdico.

[2] A ANAFE questiona a constitucionalidade da limitação da remuneração do trabalho extraordinário desempenhado pelos advogados públicos, que deveria ser amplo, como já ocorre na magistratura e no Ministério Público, na ADI 5.519, bastando, para isso, que seja declarada a nulidade, sem redução de texto, de dispositivos do artigo 38, parágrafos 1º e 2º, da Lei 8.112/1990

[3] https://www.conjur.com.br/2015-dez-16/carlos-studart-teto-salarial-previsto-constituicao-virou-piso Acesso em 10 de novembro de 2019

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