Contas à Vista

Agenda em prol de outra Constituição não supera patrimonialismo fiscal

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5 de novembro de 2019, 8h00

Spacca
Para esta semana, o Ministro da Economia noticiou a abertura de uma extensa “agenda de trabalho”[1] que passa pela apresentação de 6 (seis) propostas de emenda à Constituição, no intuito alegadamente de reformular o tamanho e o modo de operação do Estado, em suas bases fiscal e administrativa.

Como quem vende soluções rápidas e fáceis para problemas antigos e complexos, como o são a regressividade tributária, a descontinuidade administrativa, o curto prazismo eleitoreiro e a falta de escala federativa na prestação de serviços públicos, reformar a Constituição tornou-se panaceia política para a busca de alívio fiscal no próximo biênio.

A esse respeito, deveras contundente é a crítica do Deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) – tal como veiculado pelo Valor Econômico[2] – sobre o horizonte temporal e o alcance finalístico da suposta “PEC de Emergência Fiscal” a ser encaminhada pelo Executivo federal e que operaria em contraponto de curto fôlego à PEC 438/2018, de autoria do aludido parlamentar:

“A proposta do governo não traz mecanismos permanentes de ajuste fiscal. […] A preocupação do governo é de curto prazo, de abrir um espaço nos Orçamentos do próximo ano e de 2021 para a reeleição do presidente Jair Bolsonaro”.

Na falta de quaisquer documentos efetivamente protocolados pelo Executivo no Congresso Nacional, por ora, só há cogitações e notícias desencontradas. Nesse contexto, cabe a nós – tão somente – o registro preocupado de que tantas propostas de reforma a serem enviadas de uma única vez e com pretensão tão ampla de redesenho constitucional parecem indicar trajetória arriscada, porquanto inserida em movimento diluído e tergiversador, de busca de uma nova Constituição.

Aliás, desde o processo eleitoral de 2018, muito se tem falado[3] em Assembleia Constituinte e em uma Constituição mais “enxuta” do que o nosso pacto civilizatório celebrado em 1988. É oportuno, pois, lembrar que, segundo noticiado pela Folha, o vice-presidente Hamilton Mourão assim se posicionara:

“a atual Constituição, de 1988, deu início à crise pela qual passa o país. […] Tudo virou matéria constitucional. A partir dela, surgiram inúmeras despesas. A conta está chegando, está caindo no nosso colo. Chegou o momento em que temos que tomar uma decisão a respeito”

Ora, as ações e omissões são de sujeitos (pessoas físicas e jurídicas), não do próprio texto abstrato da Constituição. O acúmulo de crises em suas dimensões política, social, econômica e fiscal não pode ser atribuído ao pacto constitucional assimétrico[4], que ousamos assumir para tentar enfrentar minimamente a desigualdade histórica que assinala gravemente a realidade brasileira.

Será mesmo que a culpa de tudo o que vivemos hoje em dia é da nossa Constituição? Será que precisamos – assumida ou dissimuladamente – de outra pactuação constitucional? Será que nosso descompromisso com o ordenamento vigente pode ser resolvido por meio da promessa inconstitucional de uma nova pactuação mais fluida ou vaga?

Por que a Constituição de 1988 não foi cumprida? Por que não tributamos suficientemente a renda e o patrimônio? Por que há tantas renúncias fiscais concedidas por prazo indeterminado? Por que a sonegação historicamente tem sido premiada com tantos programas de reparcelamento de débitos tributários (risco moral agora tendente à perenização na forma de um “Refis permanente”[5])? Por que a gestão da dívida ativa é tão precária? Por que não limitamos a dívida consolidada e mobiliária federal? Por que Estados e Municípios não são efetivamente punidos pelo descumprimento das suas responsabilidades federativas recíprocas (guerra fiscal de receitas e despesas), tampouco são punidos por sua irresponsabilidade fiscal? Por que não estabelecemos arranjos federativos mais eficientes e estáveis para serviços de saúde e educação do que sua execução errática e antieconômica feita por tantos municípios com menos de 5 mil habitantes? Por que os pisos de saúde e educação não têm compromisso substantivo com as metas e estratégias definidas pelo planejamento setorial da saúde e da educação? Por que não avaliamos produtividade mínima e desempenho dos servidores públicos? Por que não avaliamos o prejuízo gerencial e finalístico trazido pela alta rotatividade dos cargos comissionados para as políticas públicas? Por que os cargos comissionados ainda não têm parâmetros objetivos de nomeação e, por vezes, prestam-se à acomodação de apadrinhados políticos, sem efetiva comprovação de formação escolar mínima, tampouco de experiência prévia e produtividade funcional? Por que não enfrentamos o insulamento burocrático de agentes públicos, que se encastelam em gratificações, auxílios, honorários e quaisquer outras categorias de parcelas extrateto? Por que o “sistema de proteção social” dos militares não tem compromisso com equilíbrio atuarial? Por que há tantas capturas contratuais remuneratórias, tantos créditos subsidiados, tanta assimetria informacional nas relações entre Estado e mercado? Por que não controlamos as hipóteses em que o terceiro setor se tornou um meio de burla aos limites de despesa de pessoal, à vedação ao nepotismo, ao concurso público e ao dever de licitar? Por que não avaliamos efetivamente a ausência de finalidade lucrativa do terceiro setor? Por que as emendas parlamentares (impositivas ou não), por vezes, são tratadas como opções patrimonialistas de alocação político-eleitoral e nem sempre são aderentes ao planejamento setorial? Por que o planejamento setorial e orçamentário não é elaborado com base em diagnóstico circunstanciado real e, por isso mesmo, quase sempre é desfigurado ou sumariamente descumprido ao longo da execução? Por que as instâncias de controle interno, social, externo (seja pelo Parlamento, seja pelo Tribunal de Contas respectivo) e judicial não avaliam – de fato – os custos e resultados da ação governamental conforme as metas financeiras e as metas físicas inscritas nos programas do planejamento setorial e orçamentário? Por que a série histórica de descumprimentos à Constituição seria culpa dela mesma?

Ora, certamente o somatório das pautas acima não exige volumosa carga de alteração ao ordenamento vigente. Requer, isso sim, apreço republicano por seu cumprimento: tarefa essa bastante mais complexa que incumbe a todos nós chamar para si individual e coletivamente. Não adianta nos fiarmos em soluções terceirizadoras, nem nos rendermos à inércia um tanto preguiçosa e infantil de uma sociedade que acredita em heróis salvacionistas ou lideranças carismáticas a cada ciclo eleitoral. Quanto aos riscos da cidadania regulada, vale a pena resgatar o debate do saudoso professor Wanderley Guilherme dos Santos…

Talvez o que mais nos faça falta para desvendar nosso quadro presente de cinismo fiscal (haja vista os diversos conflitos orçamentários mal equacionados em algumas ilegítimas e opacas relações público-privadas) seja assumir como extremamente patrimonialista e desigual a sociedade brasileira.

Tantas vulnerabilidades institucionais acumulam-se nas finanças e nas políticas públicas, a despeito de tantas normas já vigentes há décadas. Dobrar a aposta na agenda legislativa pura e simplesmente é adiar o esforço de nos coobrigarmos ao seu cumprimento reciprocamente.

Por outro lado, apostar na pura e simples mitigação das fronteiras orçamentárias que resguardam minimamente os direitos fundamentais à saúde e à educação é abrir margem para rodadas ainda mais vorazes de fisiologismo político que apenas mira o horizonte de curto prazo das próximas eleições.

A qualidade da democracia brasileira reclama desvendarmos, neste momento, o risco de que esteja em curso uma “assembleia constituinte” inominada, a qual, em última instância, nega custeio suficiente para o cumprimento das responsabilidades do Estado para com a efetividade dos direitos fundamentais.

Em face disso, cabe uma última pergunta: tornar efetivamente republicano e transparente o percurso da execução orçamentária à luz do planejamento que ordenou legitimamente as prioridades sociais não seria esforço mais consentâneo com o desafio de enfrentar nosso patrimonialismo fiscal do que propor alterações evasivas à Constituição?

[1] Conforme consta de entrevista concedida à Folha e divulgada em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/11/da-para-esperar-4-anos-de-um-liberal-democrata-apos-30-de-centro-esquerda-diz-guedes.shtml

[2] Como se pode ler em https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/11/04/projeto-do-governo-nao-resolve-o-problema-diz-autor-de-emenda-que-muda-regras-fiscais.ghtml

[3] Uma boa síntese do debate eleitoral sobre reformas à CF/1988 pode ser encontrado em https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/10/01/Os-candidatos-e-seus-planos-de-reformar-a-Constitui%C3%A7%C3%A3o

[4] PINTO, Élida Graziane; XIMENES, Salomão Barros. FINANCIAMENTO DOS DIREITOS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: DO “PACTO ASSIMÉTRICO” AO “ESTADO DE SÍTIO FISCAL”. Educação e Sociedade, Campinas , v. 39, n. 145, p. 980-1003, Dec. 2018 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302018000400980&lng=en&nrm=iso>. access on 04 Nov. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/es0101-73302018209544.

[5] Como debatido por https://www.conjur.com.br/2019-out-21/medida-provisoria-transacao-tributaria-cria-refis-permanente e https://www.conjur.com.br/2019-out-30/consultor-tributario-mp-contribuinte-legal-reacende-debate-transacao-tributaria

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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