Opinião

Supremo criou casta de criminosos políticos e sistema de exceção

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20 de março de 2019, 6h09

O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, na ação que julgou a competência para julgamento de verba não contabilizada decorrente de companha eleitoral (chamado caixa dois de campanha), não somente sobre regras de interpretação de competência da Justiça Eleitoral. O STF demostrou que a dificuldade de pensar critérios analíticos que não estejam empoeirados pela total inoperância em nosso país afeta também a própria corte.

A Constituição Federal determina com todas as letras as competências estruturantes da República, especialmente as competências ditas especializadas. Embora não seja nenhum defensor de literalidade da norma, porquanto se anula o critério basilar de hermenêutica dos enunciados normativos, não há dúvida de que se criou uma nova e quase suprema forma de julgar, pela Justiça Eleitoral, dando origem a verdadeira casta de “criminosos políticos”.

Não se discute a importância da Justiça Eleitoral. É uma Justiça adequada ao modelo adotado em nosso país — não que defenda que tal modelo seja o ideal. Como já me manifestei em outras ocasiões, entendo o voto distrital como ferramenta necessária a um país com dimensões continentais.

O texto constitucional descrito no artigo 109 da Constituição Federal determina as regras de definição de competência dos juízes federais. Traz na cabeça do artigo: “compete aos juízes federais processar e julgar: (…)”. E no inciso IV: “Os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”.

É clara a possibilidade de julgamento de crimes políticos — espectro inclusive mais amplo do que o termo eleitoral — por juízes federais.

Poderíamos nos propor a discutir a estrutura da Justiça Eleitoral, que em sua via extraordinária é sobremaneira assoberbada junto ao Tribunal Superior Eleitoral. Poderíamos ainda relembrar o desastre que foi a decisão do Supremo Tribunal Federal ao julgar as ADIs 1.351 e 1.354 e derrubar a cláusula de barreira — decisão que vários ministros reconhecem ter sido equivocada, mesmo alguns que votaram à época — e que deixou o Brasil à mercê de partidos nanicos e de aluguel sem nenhuma ideologia a defender no campo político, fazendo persistir verdadeiro balcão de negócios no parlamento brasileiro.

O Brasil vive verdadeiro apagão do ponto de vista intelectual no “mundo” jurídico. É necessário de forma urgente a introdução de disciplinas correlatas ao Direito. Não falo isso como defensor e entusiasta da Análise Econômica do Direito, mas como advogado militante e que sofre com as intempéries das cortes de estabilização.

Não perdeu somente a "lava jato", como se alardeou. A operação desencadeou um sentimento já existente na sociedade brasileira, que já não suportava mais ser escrava de uma carcomida corrupção engendrada no seio do poder em nossa federação, responsável por impedir o crescimento do país e a melhora de vida da população como um todo.

Determinar que crimes conexos a crimes eleitorais sejam julgados pela Justiça Eleitoral, após ter sido descortinado o maior escândalo de corrupção da história brasileira, é acobertar uma jurisprudência permissiva e disposta a acobertar toda sorte de atos de corrupção por agentes públicos.

Ao crime organizado bastará transitar por caixa dois de campanha e estará frente a uma Justiça não especializada no crime em si, mas em fazer as eleições, como instrumentos democráticos funcionarem.

Nas palavras de um ministro aposentado do Supremo com quem conversei após o julgamento: “Matou-se a vaca por conta dos carrapatos”. A frase, que eu já havia incorporado ao meu vocabulário jocoso, deve ser parafraseada: “Matou-se a vaca para preservação dos parasitas”.

A Justiça Eleitoral é especializada em crimes eleitorais e não naqueles que os antecedem para financiar a burla à democracia por meio de abuso econômico nas eleições, ou ainda branqueamento de recursos.

A decisão inclusive cria uma verdadeira jabuticaba: o juiz eleitoral é quem dirá se há ou não conexão. Embora caiba ao julgador, em primeira análise, dizer se é ou não competente para tratar da matéria que lhe é colocada, quem deve determinar a competência é a lei, em especial a Constituição Federal.

A Carta da República ressalva a competência da Justiça Eleitoral quando trata da competência dos juízes federais. Contudo, não traz consigo previsão de integralidade de todos os crimes conexos.

Político com vida criminosa, neste espectro, terá foro único por toda a vida. Basta determinar que se trata de crime tendo por finalidade financiamento irregular de campanha.

Peço licença para transcrever trecho importante da última obra do ministro Luís Roberto Barroso, Um outro país, transformações no direito, na ética e na agenda do Brasil, com minhas homenagens e sincera alegria pelo momento em que teceu tal profecia (já cumprida):

“É impossível falar sobre o momento institucional brasileiro sem olhar em volta e constatar que: a) o presidente da República foi denunciado por corrupção passiva; b) um ex-presidente da República foi condenado por corrupção passiva em primeiro grau de jurisdição; c) dois ex-chefes da Casa Civil foram condenados criminalmente, um por corrupção ativa e outro por corrupção passiva; d) mais de um ex-governador de estado se encontra preso sob a acusações de corrupção passiva e outros crimes; e) todos os conselheiros (menos um) de um Tribunal de Contas estadual foram presos por corrupção passiva; f) um senador, ex-candidato a presidente da República, foi denunciado por corrupção passiva; g) o ex-presidente da Câmara dos Deputados foi condenado pelos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas.

Além disso, a colaboração premiada de mais de 70 executivos da empreiteira Odebrecht resultou na delação de 415 políticos, de 26 partidos, aí incluídos ex-presidentes da República, atuais e anteriores, presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, 14 prefeitos ou ex-prefeitos de capitais, 22 governadores ou ex-governadores, 25 senadores ou ex-governadores e 18 ministros ou ex-ministros de Estado. Já a colaboração da empresa JBS envolveu 1.829 políticos, de 28 partidos, bem como o presidente atual, ex-presidentes e dezenas de deputados, senadores e governadores. Alguém poderia supor que há uma conspiração geral contra tudo e contra todos! O problema com essa versão são os fatos: áudios, vídeos, malas de dinheiro, apartamentos repletos de dinheiro, assim como provas que saltam de cada compartimento que se abra.

Diante da breve relação de atos descrita pelo ministro, que antes de tudo é um estudioso do Direito, podemos afirmar que é impossível a Justiça Eleitoral desenvolver o trabalho descrito.

Nunca é demais dizer que a Justiça Eleitoral, embora especializada, funciona em parte com estrutura dos tribunais de Justiça em sua composição, com juízes de primeira instância estaduais a desenvolver seu trabalho na instância inaugural em registros de candidaturas e demais atos necessários. Sofrem com falta de pessoal e estrutura.

Infelizmente, é de clareza solar que o Supremo Tribunal Federal, por diferença de um voto, apenas um voto, criou uma casta de criminosos a serem julgados de forma diferente e razão da “aplicação” do produto do crime. O crime que tiver como gênese uma conexão eleitoral — e sabe-se lá qual serão os critérios objetivos para tal constatação na medida em que a conexão é um fenômeno em parte fático — será julgado — em sentido processual — diferente, e neste sentido criou-se um sistema de exceção.

A "lava jato" e ações correlatas atingiram a esfera de poder político do país. Houve inegavelmente a desconstrução de muitos estigmas jurídicos que acobertavam desmandos, baseado em forte desenvolvimento teórico. A prevalecer o entendimento combatido, nulidades de atos já praticados em desacordo à estranha decisão da suprema corte podem anular decisões importantes. Excessos, que eu mesmo já critiquei com relação à "lava jato", não dão margem ao desrespeito à Constituição Federal pela corte que tem obrigação de guardá-la.

A alegação de que se manteve a jurisprudência da corte maior é mais um motivo de desprezo pelas mudanças interpretativas em termos de corrupção, como bem narrou o ministro Luiz Fux em suas sempre balizadas posições, no sentido de que as regras de competência da Justiça Eleitoral são absolutas, mas cingem-se a seu objeto e não a todo e qualquer crime com mera alegação de conexão.

À Justiça Eleitoral não faltará lisura. Não faltará competência de seus julgadores. Todavia, não há nenhuma chance de desenvolverem o trabalho até aqui implantado, por absoluta falta de estrutura e principalmente vocação.

A vocação constitucional da Justiça Eleitoral é para garantir eleições probas, e não desbaratar organizações criminosas.

A Constituição Federal sangrou com um ativismo judicial que poucas vezes acompanhei. Criou-se de forma transversa e verdadeira prerrogativa de função com base na atividade do criminoso político; ou melhor dizendo, “político criminoso”.

Não há cenário de alento futuro. Em pouco tempo haverá arrependimento dos homens sérios da Justiça por uma decisão desarrazoada. Tal matéria deveria ser discutida no âmbito das ações constitucionais em tese, e não em autos concretos sem a participação ativa das necessárias discussões do direito. A decisão do STF contribui para uma jurisprudência permissiva com a corrupção, compassiva com a parte da classe política que faz da corrupção seu combustível e que escraviza a República, comprometendo o sucesso do país no cenário internacional. Indefensável.

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