Opinião

Alteração na Lei Maria da Penha efetiva garantias, mas viola a Constituição

Autor

  • Ruchester Marreiros Barbosa

    é delegado de polícia do RJ professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers autor de livros palestrante e colaborador oficial da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói.

15 de maio de 2019, 14h01

A Presidência da República sancionou a Lei 13.827/19, que alterou a Lei 11.340/06 para autorizar a concessão de medida protetiva de urgência, por juiz, delegado de polícia ou policial, à mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou a seus dependentes, consoante o artigo 12-C, bem como instituir o registro da medida protetiva de urgência em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça, como hoje ocorre com banco de dados para os mandados de prisão emitidos.

O Brasil, mesmo signatário de diversos tratados de direitos humanos como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos, também ratificou, como muito bem salientou o professor Francisco Sannini Neto[1], a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher (Cedaw, 1979) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994), além de diversos outros instrumentos de proteção internacional. O descumprimento desses documentos caracteriza crime de responsabilidade consoante o artigo 85, VII da CF e o artigo 5º, item 11 da Lei 1.079/50.

Neste diapasão, a Lei 11.340/06 trouxe, dentre diversas ferramentas de proteção à mulher, os artigos 22 a 24, sob a rubrica de “Medidas Protetivas de Urgência”, na qual o legislador imaginou que, para proteger a vítima agredida e ameaçada de morte, por exemplo, bastaria que ela fizesse um requerimento perante o delegado, e este expediente fosse remetido, num prazo de 48 horas, ao juiz (artigo 12, III c/c artigo 19), que, por sua vez, teria mais 48 horas para decidir sobre o requerido, conforme o artigo 18, I da Lei Maria da Penha, e que isso garantiria a “urgência”. Salta aos olhos que 96 horas, equivalente a quatro dias, está longe de ser uma resposta urgente.

Não há dúvidas de que o legislador deve se preocupar com a “relação entre direitos fundamentais e democracia”, no entanto, esperar que essas medidas pudessem ter a eficácia pretendida, diante dos regionalismos de dimensão territorial em nível continental e as peculiaridades de mais de 5,5 mil municípios de nosso país, denota o que Alexy denomina de visão ingênua e idealista[2].

Mesmo após a tentativa de sanear a violação sistêmica a direitos humanos apontados pelo relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que recomendou a elaboração da Lei 11.340/06, previu procedimento ineficiente, como alerta a doutrina de Henrique Hoffmann e Pedro Rios Carneiro[3]:

“(…) pelo relatório final da CPMI da Violência Doméstica, baseados em relatório de auditoria do TCU, revelam que a insuportável morosidade na proteção da vítima não é exceção, mas a regra. A depender da região, o prazo para a concessão das medidas é de 1 a 6 meses, ‘tempo absolutamente incompatível com a natureza mesma desse instrumento’, a impor ‘medidas cabíveis para a imediata reversão desse quadro’”.

Mesmo que as medidas protetivas de urgência fossem concedidas com a celeridade que a lei exige, ainda assim seu cumprimento seria prejudicado em razão de problemas estruturais, como a quantidade limitada de oficiais de Justiça, dificuldades de deslocamento dos servidores públicos etc.

Em outras palavras, o Brasil prossegue com a violação sistêmica à proteção da violência contra a mulher.

Neste diapasão é possível invocar, como fez Alexy, “a fórmula de Radbruch” utilizada para rejeitar a tese de Hans Kelsen de que para o “(….) Estado (….) qualquer conteúdo poderia ser direito”, até mesmo de matar. Diante dessa conclusão positivista de Kelsen, contrapõe o autor que “a injustiça extrema não é direito”[4] e que a transformação dos direitos humanos “em direitos fundamentais, ou seja, em direito positivo, representa o esforço de conectar a dimensão ideal à real”[5].

Ao abordar a posição jurídica dos direitos fundamentais no sistema jurídico e sua força executiva, Alexy deixa claro que “a observância dos direitos fundamentais é, ao contrário, completamente controlada pela justiça, o que começa nas instâncias inferiores, por exemplo, a justiça administrativa, e termina no Tribunal Constitucional Federal em Karlsrushe”[6].

Em outras palavras, o autor deixa evidenciado que a “polícia”[7], como “instância de justiça administrativa”, efetiva direitos fundamentais que passam por controle posterior do Judiciário, não havendo, portanto, exclusividade na efetivação de direitos fundamentais por decisão estritamente jurisdicional como primeira e última palavra, consoante já leciona J.J. Gomes Canotilho a despeito da reserva relativa de jurisdição[8], na qual o Poder Executivo possa ser a primeira palavra, e o Judiciário, a última, sempre exercendo controle posterior da primeira decisão.

Já é assente na doutrina que o delegado de polícia possui “função essencial à justiça, como garantia implícita na Constituição”[9], e não é por outro motivo que uma das maiores expoentes na doutrina sobre a Lei Maria da Penha, a desembargadora aposentada do TJ-RS Maria Berenice Dias, atenta a essas premissas teóricas, não verificou nenhum óbice à decretação de medida protetiva de urgência pelo delegado de polícia, verbis:

“É indispensável assegurar à autoridade policial que, constatada a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima ou de seus dependentes, aplique provisoriamente, até deliberação judicial, algumas das medidas protetivas de urgência, intimando desde logo o agressor”[10].

Neste jaez, não há dúvidas sobre a constitucionalidade da concessão da medida pelo delegado, como anteparo jurídico, constitucional e democrático à mesma, pois haverá sempre a possibilidade do controle pelo Judiciário perante a certeza da existência concreta de um direito fundamental, por uma decisão fundamentada e adequada ao caso concreto, tanto quanto à proteção concreta da vida ou incolumidade física da vítima em iminente perigo e a garantia individual do investigado de se socorrer do controle jurisdicional, acesso aos autos, assistência jurídica por advogado etc.

A medida protetiva de urgência possui natureza jurídica de cautelar pessoal, restando salutar, consequentemente, que seja conferida após subsunção dos fatos com acuidade jurídica da existência de fumus comissi delicti e o periculum libertatis, ou, como preferem alguns, de fumus boni iuris e periculum in mora, função jurídica inerente ao cargo de juiz ou de delegado de polícia, este conforme o artigo 2º da Lei 12.830/13.

Contudo, o artigo 12-C, III padece de flagrante inconstitucionalidade, inclusive já declarada pelo STF em caso idêntico tratado nas ADIs 2.427 e 3.441, quando prevê a concessão de uma medida que exige conhecimento jurídico por ocupante de cargo com função jurídica, que o policial, que não ocupa cargo com essas características, substitua o delegado de polícia “quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia” (rectius, notitia criminis).

O que o legislador equivocadamente pretende é permitir que o policial, agente da autoridade, como o policial militar, que ocupa cargo desprovido de atribuição jurídica, possa realizar função que não lhe compete, implementando norma equivalente, como na Lei 10.704/94 e Lei 10.808/94, que, na oportunidade da declaração de sua inconstitucionalidade, destacamos a manifestação no voto do ministro Nelson Jobim, no julgamento da cautelar, fls. 168, que suspendeu a vigência daquelas leis do rstado do Paraná:

“(…) o cargo de delegado de polícia é exercido por cidadão com curso superior em Direito, após aprovação em concurso público.

Exerce atividades em que lhe são exigidos conhecimentos técnicos específicos.

Como tal, o Delegado de carreira somente pode ser substituído por outro servidor também Delegado de carreira (…)”.

Ainda, a suprema corte, em outro julgado, de forma contundente manifestada no voto do ministro Carlos Ayres Brito, na ADI 3.441, que declarou inconstitucional dispositivo da Lei 7.138/98 do estado do Rio Grande do Norte, que autoriza agente da Polícia Civil ou da Polícia Militar a realizar ato típico do cargo de delegado de polícia em municípios do interior que não possuíam delegados lotados, viola o artigo 144, parágrafo 4º e artigo 37, II, ambos da CF/88, por não se tratar de ocupantes de cargos que o ministro denominou de “carreiras jurídicas (…) o que requer amplo domínio do Ordenamento Jurídico do País”[11].

Por fim, a alteração legislativa garante, com letras garrafais, um dos princípios do quarteto principiológico estruturante do acesso à Justiça no Brasil, mencionados por Paulo César Pinheiro Carneiro[12] em sua pesquisa sobre acesso à Justiça, denominado de Operosidade, na qual pressupõe que “as pessoas, quaisquer que sejam elas, que participam direta ou indiretamente da atividade judicial ou extrajudicial, devem atuar da forma mais produtiva e laboriosa possível para assegurar o efetivo acesso à justiça (grifo nosso).

Acesso à Justiça não é acesso ao Judiciário. É muito mais do que isso[13]É acesso à uma ordem jurídica penal justa, a começar pelo delegado de polícia.


[1] NETO, Francisco Sannini. Lei Maria da Penha e o Delegado de Polícia. Revista Canal Ciências Criminais. Disponível em <http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/lei-maria-da-penha-e-o-delegado-de-policia>, acesso em 14/5/2019.
[2] ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito. Trad. Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014, p. 132.
[3] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de e CARNEIRO, Pedro Rios. Concessão de medidas protetivas na delegacia é avanço necessário. Artigo publicado na revista eletrônica, Consultor Jurídico. Disponível: <http://www.conjur.com.br/2016-jun-20/concessao-medidas-protetivas-delegacia-avanco-necessario#_ftnref5>, acesso em 14/5/2019.
[4] ALEXY, Robert. Ob. cit. p, 313.
[5] ALEXY, Robert. Ob. cit. p, 318.
[6] ALEXY, Robert. Ob. cit. p, 127/128.
[7] Ibidem. p, 128.
[8] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7a edição, Coimbra: Almedina, 2003, p. 1224.
[9] NICOLITT, Manual de Processo Penal, 5ªed., São Paulo: RT, 2015, p. 172.
[10] DIAS, Maria Berenice. Medidas protetivas mais protetoras. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br/manager/arq/(cod2_13014)Medidas_protetivas_mais_protetoras.pdf>, acesso em 20/6/2016.
[11] ADI 3.441/RN, voto do min. rel. Caros Ayres Brito, p. 137.
[12] CARNEIRO, Paulo Cézar Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 57.
[13] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Acesso à justiça ou ao judiciário? Revista Canal Ciências Criminais. Disponível em: <http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/acesso-a-justica-ou-acesso-ao-judiciario/#_ftnref2>, acesso em 14/5/2019.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!