Opinião

Novo decreto de armas não é passível de questionamento via ADI

Autor

  • Adriana Cecilio

    é professora de Direito Constitucional advogada especialista em Direito Constitucional mestra em Direito e autora da obra A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos.

10 de maio de 2019, 11h11

O decreto presidencial que ampliou, indevidamente, a possibilidade de aquisição de armas de fogo, estendendo o rol de pessoas que poderão adquirir armamentos, bem como criando permissivos para o porte não previstos no Estatuto do Desarmamento, é regulamentação ultra legem que fere a hierarquia das normas, posto que se presta a alterar uma legislação federal, revelando-se ilegal.

A competência para o presidente editar decretos está prevista no artigo 84, inciso IV, da Constituição Federal. O decreto em tela tem caráter regulamentar, ou seja, se trata de uma norma jurídica exarada pelo chefe do Poder Executivo com a finalidade de especificar disposições gerais e abstratas da lei. A doutrina e a jurisprudência o classificam como “ato normativo secundário ou não primário”, visto que decorre de uma legislação infraconstitucional.

Os atos normativos secundários não são passíveis de controle concentrado de constitucionalidade, ainda que seja possível alegar-se a violação ao princípio da legalidade, estampado no caput do artigo 37 da Constituição, visto que a lei frontalmente violada é infraconstitucional, e a Constituição é atingida apenas de maneira reflexa.

A impossibilidade da análise desses casos pelo STF já é um entendimento pacificado. Vejamos: “O controle normativo abstrato pressupõe o descompasso entre a norma legal e o texto da Constituição, mostrando-se impróprio no caso de ato regulamentador” (ADI 5.589). Ainda: “Um decreto regulamentar, constituindo-se, nitidamente, em um ato normativo secundário, não podendo ser objeto de controle concentrado de constitucionalidade, restando, unicamente, o controle de constitucionalidade da lei por ele regulamentada ou, ainda, o controle de legalidade do próprio decreto” (ADIs 4.176, 2.413, 2.862 e outras).

Para requerer em juízo a correção do ato normativo à baila, no entendimento desta autora, é cabível a impetração de mandado de segurança[1], por qualquer cidadão, pois se trata de um direito líquido e certo ser submetido apenas a normas lícitas. Para se aferir a ilicitude da norma em apreço, basta comparar o conteúdo do decreto em face do que estabelece o Estatuto do Desarmamento. A título de regulamentar o Estatuto do Desarmamento, o decreto se presta a armar as pessoas.

A norma se revela claramente ilegal, portanto, é passível de controle através do remédio constitucional apontado. Todo e qualquer cidadão, ante uma legislação que possui um claro vício de legalidade, se vê na iminência de sofrer uma violação ao seu direito incontestável de ser regido apenas por regras verdadeiramente hígidas.

A importância central da lei no Estado Democrático de Direito impõe o respeito aos ditames do processo legislativo. É o que explica o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “É até redundante mencionar a importância da lei no Estado de Direito, dado que este se caracteriza fundamentalmente pela sujeição de tudo e todos à lei, conforme o princípio de que ninguém está obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”[2].

O raciocínio apresentado, em certa medida, é análogo ao aplicado nas ações de controle de constitucionalidade preventivo. Nesses casos, a tese acatada pelo STF é a de que o legislador não é obrigado a participar de um processo legislativo inconstitucional. Se um parlamentar não deve sequer ser obrigado a se submeter a um processo que fere o rito estabelecido constitucionalmente, tampouco o cidadão deve ser regido por uma norma eivada pelo vício da ilegalidade.

Ademais, é ululante o abuso de poder praticado pelo chefe do Poder Executivo. O decreto desborda os limites do Estatuto do Desarmamento, transformando-se em uma nova legislação que dá conta exclusivamente de atender aos interesses específicos do governante. Trata-se de uma medida tirânica e antidemocrática, que desrespeita a vontade popular declarada através do referendo que ratificou o Estatuto do Desarmamento.

Entendendo que abuso de poder é gênero, do qual são espécies o excesso de poder e o desvio de poder — que se alinha ao presente caso —, tomamos por empréstimo a importante lição do administrativista Caio Tácito:

O desvio de poder é, por definição, um limite à ação discricionária, um freio ao transbordamento da competência legal além de suas fronteiras, de modo a impedir que a prática do ato administrativo, calcada no poder de agir do agente, possa dirigir-se à consecução de um fim de interesse privado, ou mesmo de outro fim público estranho à previsão legal. O batismo do vício de legalidade procura definir, graficamente, a ideia de que a competência discricionária tem um alvo previsto na lei, do qual a autoridade não se pode desviar sob pena de nulidade do ato[3].

Também é possível avaliar a proposição de uma ação popular, sustentando a presença do vício de desvio de finalidade, alegando de igual forma o desvio de poder. Como a ação não demanda dilação probatória, o rito mais célere é o do MS. O foro competente para conhecer da demanda é o Supremo Tribunal Federal, nos termos do artigo 102, inciso I, alínea “d” da CF.

Celso Antônio Bandeira de Mello, citando o mesmo autor supramencionado, assim pontifica: “A ilegalidade mais grave é a que se oculta sob a aparência de legitimidade. A violação maliciosa encobre os abusos de direito com a capa de virtual pureza”[4].


[1] Art. 1º Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça. (Lei 12.016/09)
[2] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 200.
[3] TÁCITO, Caio. Desvio do poder de legislar. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, Malheiros, 1993, n. 1, p. 62.
[4] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 62-63.

Autores

  • Brave

    é especialista em Direito Constitucional Aplicado, professora de Direito Constitucional e mestranda em Direito pela Universidade Nove de Julho. Membra da Associação dos Constitucionalistas da USP – Instituto Pimenta Bueno e do Colégio de Professores da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

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