Ambiente Jurídico

A justa distribuição de ônus e bônus na gestão de patrimônio cultural brasileiro

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

29 de junho de 2019, 8h00

Spacca
Para que se alcance a plena efetividade da proteção ao patrimônio cultural brasileiro é de vital importância que, além do conhecimento das leis e dos demais diplomas aplicáveis à temática, sejam do senso comum os princípios fundamentais que orientam a preservação e tutela dos bens culturais, até mesmo porque, na interpretação do Direito, o princípio é sempre uma norma de hierarquia superior, que deve prevalecer sobre as demais. Com efeito, é de fundamental importância o conhecimento das premissas básicas (alicerces, fundamentos, vigas-mestras) acerca da preservação do patrimônio cultural, eis que em muitas das vezes serão elas que irão orientar a interpretação e indicar o ponto de partida e os caminhos que devem ser percorridos pelos operadores do direito que militam em tal específica seara[1].

Um princípio de grande importância, mas que é ainda pouco conhecido e aplicado em nosso país, é o da justa distribuição de ônus e bônus na gestão dos bens integrantes do nosso patrimônio cultural.

O doutrinador lusitano José Casalta Nabais leciona no sentido de que tal princípio decorre do princípio constitucional da igualdade perante os encargos públicos, de forma que há de se agir com equidade em sede de repartição dos benefícios (commoda) e encargos (incommoda) resultantes da proteção e valorização do patrimônio cultural[2].

O princípio da igualdade de todos no custeio dos encargos públicos foi formulado, em seus contornos clássicos, por Léon Duguit, e se alicerça na ideia de que tudo que se faça para benefício da coletividade, ou por causa do interesse coletivo, deve ser equitativamente repartido por toda a sociedade[3].

Ainda segundo Nabais, como as medidas de proteção ao patrimônio cultural originam, simultaneamente, encargos e benefícios, há de se adotar medidas de equidade e perequação (distribuição igualitária ou conformidade perfeita), por meio de técnicas que levam à compensação entre os onerados com om os encargos e os contemplados com os benefícios.

Em nosso ordenamento jurídico, esse princípio pode ser extraído da conjugação do previsto no art. 216, §1º. (dever solidário do poder público e da coletividade atuarem na proteção do patrimônio cultural) c/c art. 3º., I (construção de uma sociedade justa e solidária) e 5º, caput, (princípio da igualdade dos homens) da Constituição Federal.

É indiscutível que a preservação e a conservação de nossos bens culturais, a exemplo de edifícios históricos de uma cidade colonial, contribui para a satisfação de um interesse coletivo, com reflexos positivos para atividades econômicas, sociais, turísticas e para a própria manutenção de uma sadia qualidade de vida dos cidadãos em geral.

Contudo, também é fato notório que a manutenção em bom estado desses bens demanda ações permanentes de conservação preventiva e, às vezes, de custosas obras de restauração, que exigem mão de obra especializada, uso de materiais específicos, contratação de profissionais habilitados e obtenção de autorizações junto ao poder público, o que implica gastos diferenciados para os seus proprietários, que acabam, com o cumprimento de suas obrigações, por gerar externalidade positivas, benéficas ao interesse coletivo.

Logo, o princípio da justa distribuição de ônus e bônus em relação à gestão dos bens culturais é um instrumento que pode e deve ser utilizado para trazer equilíbrio e justiça no cumprimento dos deveres por parte daqueles que são proprietários ou possuidores de bens reconhecidos como patrimônio cultural, a exemplo dos imóveis tombados, mediante concessão de tratamento diferenciado por parte do poder público, que impõe deveres e limitações em relação aos titulares daquelas coisas.

Por isso, pensamos que o princípio em comento encontra reforço exegético na função promocional do Direito, alicerçada na teoria das sanções positivas de Norberto Bobbio, que destaca a existência das chamadas sanções premiais (prêmios, incentivos ou recompensas), que são medidas de reforçamento ou encorajamento à adoção de condutas entendidas como favoráveis aos interesses da sociedade[4].

A concretização de tal princípio pode ser efetivada mediante a criação de instrumentos jurídicos específicos ou mesmo pela utilização de normas legais já existentes em nosso ordenamento.

Com base em tal princípio é possível, por exemplo, se instituir mecanismos de “pagamento por serviços culturais”, efetivando-se a equação do “protetor-recebedor”, pois aqueles cujas práticas produzem externalidade positivas, faz jus ao recebimento de uma remuneração, como forma de internalizá-las[5].

Entretanto, lamentavelmente, ações em tal sentido, por enquanto, têm aplicação restrita e tímida em nosso país tão somente no campo do meio ambiente natural.

Quanto às previsões já existentes, é de se ressaltar que o art. 19 da Lei do Tombamento (Decreto-lei 25/37) possibilita que o Poder Público faça o investimento de recursos públicos para obras de conservação de imóveis tombados que corram o risco iminente de perecimento (urgência) ou que sejam de propriedade de pessoas sem condições financeiras para arcar com as medidas necessárias (hipossuficiência)

Vale ainda lembrar que os incentivos e benefícios fiscais e financeiros foram definidos como instrumentos da política urbana no art. 4º, IV, c, do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e se mostram como valiosas ferramentas que podem ser utilizadas para a gestão e preservação compartilhada do patrimônio cultural entre poder público e comunidade, como prevê a Constituição Federal em seu art. 216, § 1°.

Também no art. 2º, X, o Estatuto prevê como diretriz a: adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais.

Como leciona José dos Santos Carvalho Filho, o Estatuto pretendeu instituir um sistema de incentivo aos investimentos que visem gerar bem-estar geral em favor da comunidade e permitir a fruição dos efeitos favoráveis ao maior número possível de segmentos sociais[6].

No que pertine ao aspecto tributário, por exemplo, hodiernamente verifica-se uma tendência legislativa no sentido de assegurar aos proprietários de bens tombados benefícios fiscais[7] como forma de compensar as restrições decorrentes do ato protetivo. Essa tendência harmoniza-se completamente com o disposto no art. 47 do Estatuto da Cidade, que estabelece: Os tributos sobre imóveis urbanos, assim como as tarifas relativas a serviços públicos urbanos, serão diferenciados em função do interesse social.

Nesse sentido, tem se mostrado como bastante eficaz para auxiliar a preservação de bens imóveis de valor cultural a isenção do Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU), para facilitar aos proprietários dos bens protegidos cuidados específicos com sua manutenção.

No âmbito da política financeira, pode ser estimulada a concessão de empréstimos a juros baixos ou a celebração de convênios de cooperação entre poder público e a iniciativa privada objetivando a restauração ou a conservação de bens culturais, por exemplo.

Outra ação interessante é a possibilidade de se instalar iluminação pública ( gratuita para o proprietário) de bens culturais protegidos, pois a normatização da Agência Nacional de Energia Elétrica prevê que "a iluminação de monumentos, fachadas, fontes luminosas e obras de arte de valor histórico, cultural ou ambiental, localizadas em áreas públicas" insere-se no conceito de iluminação pública, cuja prestação toca ao Município. Assim, é possível que a iluminação externa de igrejas, capelas e casarios tombados, que podem ser fruídos coletivamente, seja ligada à rede pública de iluminação, sem ônus para os proprietários.

Por fim, vale ressaltar que nos termos do art. 24 da Lei 8.313/91 o proprietário ou titular de posse legítima de bens móveis e imóveis tombados pela União, após apreciação de projeto pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, pode deduzir do Imposto de Renda o valor das despesas efetuadas com o objetivo de conservar ou restaurar tais bens.

Em conclusão, a aplicação efetiva do princípio da perequação ou da justa distribuição dos ônus e bônus na gestão do patrimônio cultural é salutar e tem condições de contribuir para uma repartição mais equânime dos encargos decorrentes da aplicação do regime de proteção dos bens culturais em nosso país.


[1] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 22.

[2] Introdução ao Direito do Património Cultural. Coimbra. Almedina. 2004. p. 109.

[3] DUGUIT, Léon. Las transformaciones del derecho (público y privado). Buenos Aires: Editorial Heliasta, 1975.

[4] BOBBIO, Norberto. Contribuición a la teoria del derecho, Fernando Torres Editor, Valência, 1980, p. 387.

[5] NUSDEO, Ana Maria de Oliveira. Pagamento por serviços ambientais. Sustentabilidade e disciplina jurídica. São Paulo: Atlas, 2012.

[6] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 43.

[7] Medidas de caráter excepcional, instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes e que sejam superiores aos da própria tributação que impedem, servindo para induzir comportamentos sociais. Vide art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

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