Opinião

Corrupção em Gotham City, ou saudade de quando meus heróis morriam de overdose

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14 de junho de 2019, 11h10

Direto ao ponto: os diálogos que vêm sendo revelados pelo The Intercept Brasil revelam algo que não é somente feio. Se confirmado o conteúdo das conversas, o que revelam é um “mecanismo” criminoso.

Fernando Collor de Melo caiu em 30/12/1992. Apesar da renúncia no dia anterior, o Congresso Nacional condenou-o à perda do cargo e à inelegibilidade por oito anos, no famoso e inédito processo de impeachment instaurado para apurar valores ilegais que circularam no “esquema PC Farias”. A acusação era a de que o seu tesoureiro, Paulo César Farias, gerenciou contas-fantasma para recebimento de propina com destinação variada (bancar campanha política, pagar despesas pessoais e da residência oficial — a “Casa da Dinda” —, comprar um veículo Fiat Elba etc.).

Por esses fatos, Collor foi processado criminalmente perante o STF (AP 307[1]). Em 13/12/1994, o STF julgou improcedente a ação penal. Quanto ao crime de corrupção, a corte entendeu que, independentemente de ter recebido valores, não havia prova da contraprestação funcional.

Muitos anos depois o STF viria a modificar esse entendimento acerca dos limites objetivos de imputação do crime de corrupção passiva. No julgamento do “caso mensalão” (AP 470[2]), o Plenário deliberou que o crime de corrupção passiva pressupõe apenas o recebimento da vantagem indevida relacionada ao exercício de função pública, não sendo necessária a contraprestação de um ato de ofício. Referida contraprestação, se demonstrada, ensejaria a majoração da pena (parágrafo 1º do artigo 317).

Essa mesma linha foi adotada recentemente pelo TRF da 4ª Região, ao julgar a acusação contra Luiz Inácio Lula da Silva relacionada ao “caso triplex”. O tribunal entendeu desnecessária a contraprestação funcional, bastando, para o crime, que a solicitação ou o recebimento da vantagem tenha conexão com a função pública: “não se exige que o oferecimento da vantagem indevida guarde vinculação com as atividades formais do agente público, bastando que esteja relacionado com seus poderes de fato. No caso de agente político, esse poder de fato está na capacidade de indicar ou manter servidores públicos em cargos de altos níveis na estrutura direta ou indireta do Poder Executivo, influenciando ou direcionando suas decisões, conforme venham a atender interesses escusos, notadamente os financeiros” (Apelação Criminal 5046512-94.2016.4.04.7000/PR).

E esse entendimento alinha-se à exigência de que os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência restam violados apenas com o risco de um funcionário público, ao solicitar ou receber vantagem relacionada às suas funções, colocar-se em condições de, futura e remotamente, beneficiar um interesse privado. Em princípio, não pratica corrupção passiva o funcionário público que permite que o amigo pague a sua conta do restaurante; porém, para fins de tipicidade formal, se este funcionário público possui atuação funcional em assuntos do interesse desse mesmo amigo, então estará vedado, a ele, solicitar ou receber qualquer tipo de vantagem que gere o risco de influenciar suas decisões.

No assunto “corrupção” há também outro aspecto importante: que tipo de vantagem será considerada ilícita quando solicitada ou recebida? A resposta é dada por Leandro Paulsen: “a vantagem pode ser uma quantia em dinheiro, um bem, uma promoção, um apoio político, um cargo para um parente”[3].

Isso tudo parece mesmo acertado com as demandas culturais de ofensividade que delimitam o alcance do delito de corrupção. Roberto da Matta, no livro Fé em Deus e Pé na Tábua, dissecou a postura corrupta do motorista brasileiro em suas práticas cotidianas. Ele nos fala de uma corrupção em seu sentido mais amplo, não em sua significação criminal. Aquela corrupção que é culturalmente percebida quando vemos alguém furando fila, colando numa prova, transferindo sua multa de trânsito para algum parente ou subornando um garçom; enfim, o “jeitinho brasileiro”. Por mais que essas práticas estejam longe do alcance formal do crime de corrupção, a lógica de ofensividade é a mesma da norma penal: o funcionário público deve possuir uma atuação transparente, institucional, proba. Seu trabalho não se pode deixar influenciar por seus desejos pessoais. Sua função deve prevenir qualquer especulação, por menor que seja, de que sua atuação esteja pautada pela obtenção de qualquer vantagem.

Uma postura corrupta está tão presente na identidade cultural brasileira (e de tantos outros países, frise-se) a ponto de sequer percebermos nosso próprio desvio. Cito uma experiência pessoal para ilustrar. Há quase 10 anos, tive de enfrentar os entraves burocráticos para a matrícula no doutoramento em Direito numa universidade europeia. Durante o processo, fui atendido por uma antiga funcionária da secretaria, que cordialmente me orientou como satisfazer todas as exigências. Em minha primeira viagem após aceita a matrícula, comprei no aeroporto europeu uma caixa daqueles conhecidos chocolates suíços coloridos para presentear a funcionária. Lembro até hoje de seu semblante de reprovação quando tentei alcançar-lhe o presente: deu dois passos para trás, espalmou sua mão em minha direção e, com educação, pediu para eu guardar imediatamente o pacote. “O senhor precisa respeitar-me”, disse ela. Até hoje sinto vergonha pelo ocorrido. Sinto vergonha porque, sem perceber, coloquei em prática uma ação sedutora dirigida a um servidor público que só estava cumprindo sua obrigação. Por mais que eu não quisesse receber nada em troca, o presente, uma vez aceito, poderia, no futuro, ser uma porta aberta para eventuais favorecimentos que eu viesse a precisar daquela mesma funcionária. Essa é a lógica do crime de corrupção: o funcionário público deve ter e parecer ter uma atuação institucional; o particular deve reconhecer e portar-se adequadamente em face dessa atuação.

Pois bem, vamos ao que interessa.

Há alguns anos instaurou-se, no Brasil, uma cruzada institucional contra a corrupção. Um processo legítimo e desejado por todos que só terá um desfecho positivo se, e somente se, respeitar pautas republicanas. Os integrantes das agências penais que atuam no segmento (polícias, Ministério Público, Judiciário, advocacia, Defensoria Pública, secretarias de segurança etc.) estarão fazendo corretamente a sua parte na tão almejada faxina cultural apenas na condição de que suas esferas de competência sejam bem observadas, seus interesses pessoais não permeiem suas ações, sua atuação siga (e pareça seguir) rigorosamente os procedimentos legais. Porque numa democracia, as instituições devem estar sempre atentas às pautas infantis de uma população que necessita da existência do Estado exatamente como forma de conter sua própria infantilidade. Eu até compreendo que, em nosso almoço de família no domingo, tenhamos de ser pacientes com o discurso raivoso de nossos familiares. Mas é inaceitável que o móvel oculto da ação de instituições paute-se por essa mesma raiva. Em tempos de crise, o Estado será tão mais legítimo quanto maior for sua capacidade de conter a histeria coletiva, de assumir para si uma postura equilibrada em face dos problemas sociais. Todos os imbecis com que nos deparamos hoje sempre estiveram ali, quietos nos seus cantos por sentirem um pouco de vergonha de sua própria imbecilidade. A novidade é que esses imbecis, ao perceberem que instituições passaram a atuar de forma igualmente estúpida, deixaram de reconhecer o freio cultural que antes os constrangia, passando a se sentir legitimados a cuspir toda a sua raiva, todo o seu ódio, toda a sua estupidez. Se, há algum tempo, debatíamos se a fonte do poder seria conhecimento, dinheiro ou informação, os tempos de hoje nos levam a crer que situa-se na imbecilidade inteligentemente institucionalizada. Quanto mais estúpidas forem as instituições, mais amparo democrático terá a estupidez daquela parte da população que antes se envergonhava de ser assim. Não é sem razão que há um sentimento geral de que, nunca na história deste país, tanta gente imbecil ocupou tantos cargos políticos relevantes.

É nesse cenário que devemos perceber a ofensividade dos crimes que tutelam o exercício ético da administração pública. Em sua dimensão criminal, é corrupto não apenas o servidor público que recebe dinheiro para influenciar suas tomadas de decisões. Também é corrupto aquele que obtém um “apoio político” ou uma promessa de “um cargo” capazes de influenciar sua tomada de decisão. Também é corrupto aquele que está agindo na crença de estar buscando o bem comum (“combater” a corrupção, por exemplo), porém está solicitando ou recebendo vantagem pessoal para tanto. Também é corrupto quem solicita ou recebe vantagem pessoal para, a pretexto de combater a corrupção, infringir a lei (cito uma delas, bem clara: “O juiz dar-se-á por suspeito… se tiver aconselhado qualquer das partes”). E também haverá uma forma mais branda de corrupção — que a lei penal convencionou chamar de prevaricação (artigo 319 do CP) — quando não houver obtenção de vantagem indevida, senão apenas a satisfação de um interesse pessoal. Precisamos, todos, dar-nos conta de que a faxina cultural que ainda teremos de enfrentar só será minimamente efetiva se percebermos que o Coringa e o Batman podem ser igualmente corruptos.

Então, sejamos honestos. Se o conteúdo dos diálogos recentemente divulgados pelo The Intercept Brasil for confirmado, então é possível que estejamos diante de agentes públicos usurpando suas funções para satisfazer interesse pessoal. E alguns, ao que parece, podem ter recebido vantagem indevida para tanto.

Que alguns da força-tarefa odeiam o PT, isso não é novidade. Confesso que também tenho a minha ojeriza. Mas o PT é um partido legítimo, assim como o é o PSL. Haddad foi um candidato tão legítimo quanto Bolsonaro e todos os demais que concorreram. Um agente público pode, enquanto cidadão, simpatizar com este ou aquele candidato. Mas não pode agir funcionalmente para prejudicar o candidato por ele odiado, ou beneficiar aquele com quem simpatiza. E se as coisas são assim, não pode, o servidor público, valer-se do cargo para impedir uma entrevista ou então retardá-la a pretexto de satisfazer o seu próprio interesse político. Isso tem nome, curto e grosso: prevaricação. Vestido de Super-Homem ou de Príncipe, pouco importa, nosso herói será tão safado quanto Lex Luthor. Serão todos farinha do mesmo saco.

Agora, o que é ainda mais grave, se um servidor público solicitou ou recebeu algum tipo de promessa de vantagem — uma promessa de cargo público —, então o ilícito ganha outro nome: corrupção passiva (artigo 317, caput, do CP). Pouco importa se tenha, ou não, dado algo em troca, conforme disse o STF no “caso mensalão” e o TRF-4 no “caso tríplex”. Basta que a vantagem prometida interfira — ou tenha a aparência de interferir — em sua atuação funcional. E se, além disso, o servidor público tiver feito algo para beneficiar o autor da oferta, então teremos uma corrupção ainda mais grave (artigo 317, parágrafo 1º, do CP). Quando Sergio Moro recebeu o convite? O que ele fez depois desse convite? É direito de todos nós termos conhecimento claro disso.

Mas também não podemos esquecer que talvez isso sequer seja importante esclarecer. A dinâmica da corrupção, no Brasil, alcançou ares bastante complexos. Alguém foi acusado de beneficiar empresas que, em troca, muito tempo depois, remuneraram a peso de ouro suas palestras. Ora, se isso é correto, fico aqui pensando se não poderíamos reconhecer uma corrupção quando a solicitação da vantagem não seja ostensiva, senão subliminar. Uma solicitação velada que se confirma posteriormente, em troca de atos funcionais praticados pelo funcionário público que está pensando em seu futuro benefício pessoal, a ser alcançado quando o seu “trabalho” for reconhecido. Seria uma espécie de “corrupção-pavão”: o animal abre a cauda para se exibir e chamar a atenção, colocando em prática um jogo sedutor cujo objetivo final é acasalar. Em 2016, Sergio Moro disse: “jamais entraria para a política”[4]. Em novembro de 2017, após vazar o áudio entre Lula e Dilma (o The Intercept Brasil vem esclarecendo em que circunstâncias), Sergio Moro mudou o tom: “No momento, não seria apropriado da minha parte”[5]. Não foi um ato falho. Foi um recado claro de suas reais pretensões. O pavão abria a sua cauda.

É chegada a hora, portanto, de nos darmos conta de que o nosso país só vai evoluir no tema probidade administrativa quando tiver a capacidade de agir de forma republicana à improbidade administrativa. Se você é daqueles que adora quando o super-herói tortura o vilão para obter a confissão, então eu tenho uma notícia ruim para dar: você pensa de forma tão corrupta quanto os criminosos que você odeia; sua bateção de panelas na sacada não ecoa em sua própria residência; você seguirá furando fila, colando em provas e subornando garçons; você continuará achando bonitinho enaltecer a ideia de que exista uma República de Curitiba, um “país” onde pessoas “do bem” (que vestem verde e amarelo) agem justa e corretamente contra pessoas “do mal” (que vestem vermelho).

Nossa República (não a de Curitiba) está numa encruzilhada. Ou esse monstrengo que foi irresponsavelmente alimentado de poder vai para a masmorra, ou então seguiremos na mão do Batman, que se arvora no direito de fazer o que bem entende e, com isso, estimula a população a proceder da mesma forma (se ele pode, por que eu não poderia?). Eu gostaria que os interlocutores dos diálogos vazados falassem publicamente, no fim das contas, se o conteúdo é verdadeiro ou não. Num primeiro momento, não negaram; agora, estão dizendo que houve edição (quais trechos são editados? Ou você não é capaz de identificar sua própria fala?). Sim, o acesso aos diálogos é ilegal. Não é essa a questão. Como bem disse Lenio Streck, com hacker ou com X-9, o direito não será mais o mesmo[6]. O problema é o nível de promiscuidade entre instituições que deveriam ser independentes. Um agente do parquet não pode portar-se como um poodle de um juiz; um juiz não pode esquecer que sua missão é distanciar-se das partes e não misturar sua atuação institucional com seus desejos pessoais mais obscuros; e nós, advogados, não podemos sentar à mesa para coadjuvar com esse swing.

Só as instituições podem dar o recado aos agentes do Estado e à população de que não há espaço para vale-tudo numa república. O discurso de combate à corrupção deve valer para todos, especialmente para agentes públicos que se arvoram na condição de estarem acima da lei. STF e TRF-4 andaram sendo rigorosos com Lex Luthor. Eu gostaria que também agissem com igual rigor em face dos desvios de Super-Homens e Batmans que circulam por aí. Mas, decididamente, é fundamental que esse rigor ocorra dentro dos limites da lei, sem interesses pessoais, sem corporativismo e sem vaidade.

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