Diário de Classe

Neoconstitucionalismo(s) e constitucionalismo contemporâneo

Autor

  • Matheus Vidal Gomes Monteiro

    é doutor em Direito pela Unesa mestre em Direito pela Unisal e professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Grupo de Estudos em Jurisdição Constituição e Processo da UFF membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento (IBMEC-RJ) e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos).

8 de junho de 2019, 8h00

Longe de uma possível unanimidade quanto ao termo a ser utilizado para se intitular determinado movimento no cenário jurídico-constitucional, normalmente tem-se utilizado neoconstitucionalismo[1]. Contudo, quanto à sua significação, pulverizam-se as mais diversas, daí alguns se manifestarem sobre a existência não de um, mas de vários neoconstitucionalismos[2].

Desde já, é importante também reconhecermos, quando abordamos esse tema, que não se trata de encerrar a discussão acerca do positivismo jurídico (PJ), admitindo-o como superado e inexistente — nas suas mais variadas formas — a partir do surgimento deste “novo constitucionalismo”[3]. Longe disso.

Sigamos, portanto, com algumas considerações, funcionando a presente coluna mais como um roteiro a ser posteriormente aprofundado do que um ponto final sobre o tema.

Então, no que consistiria esse “novo” (neo) movimento? Iniciemos pelos nomes: neoconstitucionalismo, pós-positivismo[4], novo constitucionalismo, novo Direito Constitucional[5], constitucionalismo de direitos, constitucionalismo avançado, paradigma argumentativo[6] etc. Esses, apenas alguns dos mais utilizados.

E além das diversas nomenclaturas, inúmeras propostas classificatórias (e abordagens teóricas) existem, sendo talvez a mais conhecida a de Comanducci[7], partindo da divisão de Bobbio do PJ, analisando o movimento a partir de suas perspectivas teórica, metodológica e ideológica. Porém, temos outras abordagens, tais como a divisão em neoconstitucionalismo teórico e neoconstitucionalismo total[8], enquadrando-as como percepções de Teoria do Direito, e também a perspectiva que aborda o fenômeno sob três aspectos: (i) como um certo tipo de Estado de Direito (forma de organização política); (ii) como Teoria do Direito (descrição e operacionalização desse modelo); e (iii) como filosofia política ou ideologia[9].

Como estamos abordando um movimento que teve seu início e ainda está em desenvolvimento, devemos esclarecer que muitas das suas características/requisitos de identificação encontram-se em torno (ou dela derivam) da ideia de constitucionalização do ordenamento jurídico. Assim, tem sido comum a admissão das lições de Guastini[10] acerca de tal ideia: trata-se de um processo de transformação do ordenamento jurídico, sendo que, ao final de tal processo, ele estaria “impregnado” pelas normas constitucionais, caracterizando-se por uma Constitución extremadamente invasora, entrometida, capaz de condicionar tanto la legislación como la jurisprudencia y el estilo doctrinal, la acción de los actores políticos así como las relaciones sociales. Não se trata, pois, de um conceito verdadeiro/falso, mas, sim, de uma questão de graus de constitucionalização.

E é em decorrência dessa diferenciação em graus que Guastini[11] propõe uma lista — não completa, nem permanente — para a identificação de um ordenamento completamente impregnado pelas normas constitucionais: (1) uma Constituição rígida; (2) a garantia jurisdicional da Constituição; (3) a força vinculante da Constituição; (4) a “sobreintepretação” da Constituição; (5) a aplicação direta das normas constitucionais; (6) a interpretação conforme as leis; e (7) a influência da Constituição sobre as relações políticas[12].

Assim, se estamos diante de diferentes graus de constitucionalização e de diversos sistemas jurídicos, tal diversidade conduzirá à elaboração de diferentes características/requisitos necessários para a adequação de determinada hipótese ao movimento em análise[13]. É a partir principalmente de tais pontos que se desenvolve e reconhece a relação entre a constitucionalização de Guastini e o(s) neoconstitucionalismo(s)[14].

Por isso, podemos afirmar que a lista de Guastini possui núcleo-base embrionário em determinada ideia: a realocação da Constituição como topo do ordenamento jurídico, com o reconhecimento de sua superioridade hierárquica e da identificação de sua normatividade[15]. Trata-se, nas palavras de Comanducci[16] e Guastini[17], de una Constitución ‘invasora’[18].

Essas, algumas considerações a respeito do então chamado neoconstitucionalismo, a partir de ideias tidas como “principais”, ou certa teoria-padrão sobre o movimento. Contudo, reconhecemos como essencial que ser pós-positivista deveria ser sua principal característica (e normalmente é assim que o apresentam). Mas não é. Não representa uma ruptura, mas uma continuidade a partir de diversas características[19].

Uma postura teórica que busque essa ruptura deve pretender “a construção de um direito democraticamente produzido, sob o signo de uma constituição normativa e da integridade da jurisdição”[20]. E essa nova perspectiva “representa um redimensionamento na práxis político‑jurídica, que se dá em dois níveis: no plano da Teoria do Estado e da Constituição, com o advento do Estado Democrático de Direito, e no plano da Teoria do Direito, no interior da qual acontece a reformulação da [1] teoria das fontes (a supremacia da lei cede lugar à onipresença da Constituição), da [2] teoria da norma (devido à normatividade dos princípios) e da [3] teoria da interpretação (que […] representa uma blindagem às discricionariedades e aos ativismos)”[21].

A partir principalmente desses três pontos teóricos é que Streck[22] constrói novo termo com peculiar significação, para além da situação de não superação de diversas perspectivas pelos adeptos da “teoria-padrão” neoconstitucional: constitucionalismo contemporâneo. Por isso, “somente poder ser chamada de pós-positivista uma teoria do Direito que tenha, efetivamente, superado o positivismo, tanto na sua forma primitiva (exegético-conceitual), quanto na sua forma normativista-semântico-discricionária”[23]. Daí tal superação necessitar do inexorável enfrentamento do problema da discricionariedade judicial[24], que não deveria estar presente nos conteúdos dos itens 4, 5 e 6, sob pena de destruição da lista por completo.

Buscando, então, essa ruptura, não se pode ter dúvidas acerca de quais posturas positivistas devemos superar, pois encontra-se em situação de continuidade quem ainda defende que a norma e texto coincidem (ou são a mesma coisa), ou quem admite que a lei teria um sentido em si. Sob esses aspectos, a norma já estaria pronta para ser aplicada pela subsunção e raciocínios silogísticos, e a enunciação da lei seria descolada da faticidade, tornando-se uma razão autônoma atemporal[25]. Por outro lado, também pode ser considerado um positivista quem defende que a norma e texto estão absolutamente descolados; quem entende que “diante da plurivocidade dos signos linguísticos o sentido estaria na subjetividade do intérprete”, ou quem entende “que a partir da vontade o sujeito solipsista teria livre espaço para dizer o direito e buscar o justo, mesmo que contra legem, no predomínio de uma razão pragmaticista incontrolável”[26].

Neste panorama, propondo uma ruptura do PJ a partir de um constitucionalismo contemporâneo, para além da lista de Guastini e partindo da perspectiva de Streck[27], a contemporaneidade do fenômeno jurídico poderia ser compreendida a partir de quatro pontos:

1) no campo jurídico: a nova posição do direito público, com a incorporação dos direitos de terceira dimensão; o Estado Democrático de Direito como plus normativo-qualitativo, e os conteúdos compromissórios e dirigentes das constituições;

2) ainda no campo jurídico: o aumento do grau de autonomia do Direito (frente à moral, economia e política), que deve ser entendida como “ordem de validade, representada pela força normativa de um direito produzido democraticamente e que institucionaliza (ess)as outras dimensões com ele intercambiáveis”[28];

3) no campo filosófico: a invasão da filosofia pela linguagem;

4) a partir do item anterior, o registro de que a utilização da matriz heideggeriana-gadameriana não faz com que “heideggerizemos” o Direito, mas, sim, o consideremos a partir da introdução do mundo prático na filosofia, diante do giro ontológico-linguístico, rompendo-se com os paradigmas objetivistas e subjetivistas.

É por isso que a proposta de uma nova postura que rompa com o PJ deve partir do reconhecimento e abandono da utilização da discricionariedade interpretativo-decisória, já conhecida desde os tempos da jurisprudência dos interesses, posteriormente potencializada pela jurisprudência dos valores.

Caso assim não procedamos, fomentaremos ponderações, balanceamentos, sopesamentos e ativismos judiciais[29]. Ruindo, por conseguinte, toda a lista-base de Guastini, as perspectivas-padrão dela decorrentes e a principal ideia fomentadora deste novo movimento: a realocação da Constituição como topo do ordenamento jurídico, com o reconhecimento de sua superioridade hierárquica e da identificação de sua normatividade[30].


[1] Nas palavras de Garcia, “uma fase de renovação em que os direitos humanos se encontram em situação de total prioridade, exatamente a justificativa desse longo enfoque do Estado […] para chegarmos, com Agamben, à convicção da exigência, hoje, de 'um estado de exceção permanente' e a uma indagação sobre os direitos do homem. […] O Direito contemporâneo passa, assim, pelo fio da navalha de uma renovação incontornável: uma nova onda do Constitucionalismo – movimento, processo, dinâmica […]” (GARCIA, Maria. O Constitucionalismo do Século XXI num enfoque Juspositivista dos Valores Humanos e dos Princípios Fundamentais de Direito. In: QUARESMA, Regina, et al. Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.188-189). Para Figueroa: “teoria ou conjunto de teorias que proporcionaram uma cobertura justeórica conceitual e/ou normativa à constitucionalização do Direito em termos normalmente não positivistas” (FIGUEROA, Alfonso García. A Teoria do Direito em Tempos de Constitucionalismo. In: QUARESMA, Regina, et al. Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.147).
[2] CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s). Trotta, 2005.
[3] STRECK, Lenio Luiz. A incompatibilidade paradigmática entre positivismo e neoconstitucionalismo. In: QUARESMA, Regina, et al. Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.334.
[4] Alguns autores como Alexandre Silva, utilizam também o termo não-positivismo como sinônimo de pós-positivismo, e chegam a propor um neoconstitucionalismo não (ou pós)-positivista. (SILVA, Alexandre Garrido da. Neoconstitucionalismo, Pós-Positivismo e Democracia: aproximações e tensões conceituais. In: QUARESMA, Regina, et al. Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.94). Alguns autores como Peixinho e Merçon, diferenciam o pós-positivismo e o neoconstitucionalismo, sendo aquele o conjunto “das teorias do direito pós-kelsenianas que se dedicaram à reformulação e à renovação do positivismo formal, na filosofia e nas ciências sociais e políticas”. Vinculam ao pós-positivismo Perelman, Viehweg, Toulmin, Recaséns e Viley, registrando a preponderância em teorias argumentativas. (PEIXINHO, Manoel Messias; MERÇON, Gustavo. Fundamentos Teóricos do Positivismo e do Neoconstitucionalismo. In: QUARESMA, Regina, et al. Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.318).
[5] Silva (op. cit, p. 94 e seguintes), utiliza neoconstitucionalismo, “novo constitucionalismo” e “novo direito constitucional” como expressões sinônimas.
[6] Os três últimos termos foram utilizados por MAIA, Antonio Cavalcanti. Neoconstitucionalismo, Positivismo Jurídico e a Nova Filosofia Constitucional. In: QUARESMA, Regina, et al. Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.7. 
COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo) constitucionalismo: un análisis metateórico. Isonomía: Revista de Teoría y Filosofía del Derecho. v. 16. p. 89-112, 2002.
[8] MOREIRA, Eduardo Ribeiro. O momento do positivismo. In: DIMOULIS, Dimitri. DUARTE, Écio Oto. Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008, p. 241 e seguintes. Nas palavras do autor: “Neoconstitucionalismo teórico (somente como teoria do direito). (Estabelece o Direito Constitucional como o centro do ordenamento e da Teoria do Direito, em que os outros campos jurídicos são todos constitucionalizados. Afirma-se como antipositivista e antijusnaturalista.)” (MOREIRA, Eduardo, op. cit., p. 243). E: “Neoconstitucionalismo total (Faz a união entre o Direito Constitucional e a Filosofia do Direito, em que os dois estudos ocupam o ponto máximo, regendo conjuntamente o ordenamento)” (MOREIRA, Eduardo, op. cit., p. 243). Reconhece como adeptos do primeiro: Sanchís, Calsamiglia, Barroso; e do segundo: Figueroa, Alexy, Ariza, Atienza e Maia (MOREIRA, Eduardo, op. cit., p. 239 e seguintes).
[9] MAIA, op. cit.
[10] GUASTINI, Riccardo. Estudios de teoría constitucional. 1ª Ed. México D.F.: UNAM – Instituto de Investigaciones Jurídicas, 2001, p.153.

[11] GUASTINI, op. cit., p. 153.
[12] Perspectiva semelhante em SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, item 5.2.10, passim. E um pouco mais ampliada em REIS, José Carlos Vasconcellos dos. Desafios do Neoconstitucionalismo – A aplicação das normas constitucionais e a tensão entre justiça e segurança jurídica. In: QUARESMA, Regina, et. al. Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 541-542.

[13] Assim também em MÖLLER, Max. Teoria Geral do Neoconstitucionalismo: bases teóricas do constitucionalismo contemporâneo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 30.
[14] MÖLLER, op. cit, p. 30 e ss.
[15] De forma próxima, MÖLLER, op. cit, p. 32-42.
[16] COMANDUCCI, op. cit., p. 97.
[17] GUASTINI, op. cit., p. 153.
[18] Utilizando a “força invasora da Constituição”, Eduardo Moreira (op. cit., p. 240). STRECK, Lenio Luiz. O que é isto: o Constitucionalismo Contemporâneo? Revista do CEJUR/TJSC: Prestação Jurisdicional. v. 1. 02. 2014a, passim.
[20] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Livraria do Advogado, 2014b, p. 134.
[21] STRECK, 2014a, p. 29-30.
[22] STRECK, 2014a, passim.
[23] STRECK, Lenio Luiz. Porque a ponderação e a subsunção são inconsistentes. Consultor Jurídico. 2014c. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-abr-26/observatorio-constitucional-porque-ponderacao-subsuncao-sao-inconsistentes.
[24] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Saraiva, 2014d, passim.

[25] STRECK, 2014b, p. 135-136.
[26] Ibid, p. 136.

[27] Ibid, p. 400-404.
[28] Ibid, p. 401.
[29] STRECK, 2014a, p. 36 e ss.
[30] De forma próxima, MÖLLER, op. cit, p. 32-42.

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    é doutor em Direito (Unesa), mestre em Direito (Unisal) e professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Grupo de Estudos em Jurisdição, Constituição e Processo da UFF, membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento (IBMEC-RJ) e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos).

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