Vinhos e lagostas: reflexos da suprema soberba nos gastos públicos
18 de maio de 2019, 8h00
A ideia de separação dos Poderes em corrente tripartite foi esboçada a partir da Antiguidade Clássica, especialmente com as teorias de Platão e Aristóteles, ao vislumbrarem que o Estado, independentemente do regime a que estivesse atrelado, exercia três funções essenciais[1]. Contudo, atribui-se a Montesquieu a consagração da tripartição de Poderes com as devidas repartições de atribuições[2], modelo adotado, desde do final do século XVIII, pela maioria dos Estados[3] ocidentais.
No Brasil, o modelo de Montesquieu foi implantado com certo abrandamento, na medida em que a Constituição Federal permite o desempenho anômalo, por um deles, de função típica de outro. Assim, além da sua função principal, cada um dos poderes exerce funções atípicas, secundárias.
Para que o STF possa desempenhar essas funções essenciais, a Constituição lhe cerca de garantias destinadas a preservar a sua independência, como condição de possibilidade para o Estado Democrático de Direito. Recentemente, um manifesto em defesa das prerrogativas do STF foi assinado por 161 entidades representativas da sociedade civil, justamente reafirmando o papel fundamental das cortes e tribunais constitucionais na sustentação das instituições democráticas. Não há dúvidas, portanto, de que no exercício da atividade jurisdicional o STF não deve se curvar à pressão popular ou ouvir a “voz das ruas”.
Agora, quando o STF exerce a função atípica de administração interna do tribunal, parece-me que o regramento a ser aplicado é outro. Aqui o tribunal exerce o papel de gestor do patrimônio público, e está, sim, sujeito ao controle popular e a prestar contas de suas decisões. Aliás, é dever do Legislativo, com o auxílio do Tribunal de Contas da União, a tarefa superior de fiscalização dos órgãos jurisdicionais quanto às atividades de ordem orçamentária, financeira e contábil (artigos 70 e 71 da Constituição).
Os recursos destinados ao STF mensalmente (artigo 168 da CF) devem ser geridos com a finalidade de garantir a atividade jurisdicional, em estrita obediência ao princípio republicano.
Tomamos a definição clássica de República (res publica) elaborada por Cícero: “É pois a República coisa do povo, considerando tal, não todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum”[4]. O consentimento jurídico ciceroniano na história das ideias políticas indica o papel do Direito para que a res publica não se veja comprometida pela violência e pelo arbítrio, ao passo que a busca pela utilidade comum requer um populus frugal e incorruptível[5].
Nesse ponto, o artigo 37 Constituição de 1988 parece se aproximar da ideia de “utilidade comum”, ao estabelecer que a administração pública, ao gerir os recursos públicos, deve ser pautada pelos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
À luz desses princípios, convido o leitor a refletir sobre a recente realização, pelo Supremo Tribunal Federal, de uma licitação para contratação de empresa especializada para prestação de serviços de fornecimento de refeições. O objeto da licitação foi alvo de severas críticas por conta do cardápio composto de itens de elevado padrão gastronômico, com alto custo. O edital inclui camarão, lagosta, bacalhau, salmão, além de queijos finos e bebidas alcoólicas. Entre as bebidas, o edital descreve espumantes (com, no mínimo, quatro premiações internacionais), uísque 18 anos, vinho envelhecido em barril de carvalho francês. E, claro, a colheita das uvas para fabricação do vinho deve ter sido feita manualmente!
Por um momento vislumbrou-se uma trégua no meio da polarização que divide o país para estabelecer um consenso: os contribuintes, se pudessem, vetariam o uso de dinheiro público na aquisição do “banquete supremo”, porque consideram o ato de gestão ilegítimo e antieconômico.
Mas a suprema corte não vislumbrou qualquer irregularidade no objeto da licitação. Perdeu a oportunidade de ouvir a opinião dos contribuintes, a “voz das ruas”, “das redes”, negando a dimensão republicana do Estado de Direito. Evidenciou que há um abismo entre conhecer conceitos éticos e agir eticamente.
Esse fato é especialmente grave em um momento em que o país passa por crises financeiras e cortes orçamentários.
Notadamente, ao se alçar a tamanho grau de extravagância, o STF caminha de encontro à perspectiva difundida internacionalmente, especialmente na União Europeia, por meio da doutrina do direito fundamental à boa administração, fundamento do Estado contemporâneo[6]. Esquece, assim, que o ser humano é o centro da vida pública e o destinatário final das ações estatais, subvertendo a administração cidadã pela velha administração burocrática, desvinculada da flagrante realidade de crise.
Nessa senda, a corte suprema também ignora o norte paradigmático proporcionado pela lei maior, o qual pugna por uma administração humanizada e democrática, despida de privilégios de qualquer ordem. Conforme vaticinam Streck e Moraes, a Constituição deve constituir-a-ação, e, nesse sentido, nem mesmo o Poder Judiciário, no exercício de suas funções atípicas, pode se escusar de adotar decisões que privilegiem os princípios estampados na Constituição Federal[7].
Evidentemente, a decisão do STF não vincula os demais órgãos da administração pública, contudo, acaba por estabelecer um padrão de comportamento, uma baliza para a interpretação do interesse público nas contratações da administração pública em todos os seus níveis.
No Brasil, um dos desafios que o Estado enfrenta é a permanência da cultura patrimonialista, marcada pelas práticas personalistas de gestão pública, voltadas para os interesses privados. O combate a essa prática, especialmente nos municípios, caminha a passos lentos, apesar de contar com colaboração dos procuradores municipais, Ministério Público estadual, tribunais de contas e da própria comunidade. Não tem sido fácil convencer os gestores a observar a prioridade dos gastos e evitar despesas supérfluas, e, infelizmente, a postura do Supremo Tribunal Federal torna essa tarefa ainda mais difícil.
[1] Em todo governo, existem três Poderes essenciais, cada um dos quais o legislador prudente deve acomodar da maneira mais conveniente. Quando essas três partes estão bem acomodadas, necessariamente o governo vai bem, e é das diferenças entre essas partes que provêm as suas. O primeiro desses três Poderes é o que delibera sobre os negócios do Estado. O segundo compreende todas as magistraturas ou poderes constituídos, isto é, aqueles de que o Estado precisa para agir, suas atribuições e a maneira de satisfazê-las. O terceiro abrange os cargos de jurisdição (ARISTÓTELES. Política. Brasília: Ed. UnB, 1999, p. 87).
[2] Ressalva-se, para fins analíticos, que o conteúdo da separação de Poderes em Montesquieu deve ser interpretado ao lume do seu horizonte paradigmático. Nesse sentido, é inegável que o autor de O espírito das leis tenha se debruçado com maior ênfase sobre as tarefas de criar e executar leis, destacando as tarefas do Poder Executivo e Legislativo em detrimento do Judiciário, reduzindo-o à “boca da lei”. Com efeito, em sua obra Montesquieu reitera que “os juízes de uma nação não são, como dissemos, mais do que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor” (MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2000, p. 208). Desse modo, a transposição do seu modelo de separação de poderes para a atualidade, como observado, deve ser comedida, especialmente considerando-se as imposições do constitucionalismo contemporâneo e a necessidade hodierna de afirmação de direitos fundamentais, cenário não enfrentado pelo autor.
[3] MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
[4] CÍCERO. Tratado da República. Tradução, introdução e notas de Francisco de Oliveira. Lisboa: Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2008.
[5] LAFER, Celso. O significado de República. Revista Estudos Históricos, v. 2, n. 4, p. 214-224, 1989.
[6] MUÑOZ, Jaime Rodríguez-Arana. Direito fundamental à boa administração pública. Tradução de Daniel Wunder Hachem. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
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