Crime e Castigo

Aumento de pena e criminalidade transnacional: efeitos sobre a segurança pública?

Autor

  • Ney Bello

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor da Universidade de Brasília (UnB) pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

7 de julho de 2019, 11h25

Spacca
A criminalidade internacional, que extrapola as fronteiras dos países e firma suas garras para além dos limites do Estado nacional, é uma das facetas contemporâneas do crime.

Ela movimenta mais valores do que os delitos internos e vincula-se à criminalidade intra Estadual, dotando-a de força e potência. As quadrilhas e os bandos não conseguiriam ter a amplitude que têm se não fossem os seus braços transfronteiriços a fornecer as armas e as drogas e a lavar o dinheiro obtido com o crime.

Basta perceber que as quadrilhas de assaltos a bancos utilizam armamento potente, privativo das forças armadas, o que lhes garante uma violência bem maior do que haveria, acaso usassem armas fabricadas em território nacional, ou de aquisição permitida.

Da mesma maneira é o recebimento de droga através do traficante internacional que permite a existência de quadrilhas de distribuidores do pó ilícito em morros, favelas, asfalto e festas de elite.

Para a legalização do dinheiro de todas as organizações criminosas, faz-se mister um doleiro, um corretor, um banqueiro, ou um especialista em lavagem de dinheiro fora do país. O crime não usa mais as lavanderias como na Chicago do século passado, mas sim empresas, instituições financeiras e offshore.

Esse vínculo entre a criminalidade internacional e as milícias ou as organizações de tráfico de drogas e grandes assaltos – todas elas com assistência penitenciária – merece ser visto também sob a ótica do direito internacional comparado.

O Direito Penal Internacional – ou aquela parte específica vincada em Tratados e Convenções – cuidou de disciplinar a questão por meio da Convenção das Nações Unidas Contra a Criminalidade Transnacional – plasmando a necessidade de coibir o tráfico de armas, o tráfico de drogas, o tráfico de animais silvestres, o tráfico de bens culturais, a lavagem de dinheiro, o tráfico de pessoas e o tráfico de migrantes. Fácil perceber que o Brasil, de uma forma ou de outra, sofre com todos esses tipos de criminalidade.

O Direito Internacional Penal, com a adesão do Brasil, determina o estabelecimento, no plano interno, de fatos típicos de fundamental importância para o combate à criminalidade internacional: participação em organização criminosa, lavagem de dinheiro, obstrução de justiça e corrupção. Muito em razão do atendimento dos termos da convenção, a legislação brasileira já estabeleceu todos os tipos penais indicados pelo direito internacional. Não é mais o caso de se reclamar de lei, para a resolução de um problema factual.

Além da tipificação necessária, outros movimentos, realizados por diversos países, precisam ser observados, para que o combate às organizações criminosas milicianas ou às organizações criminosas de tráfico ou roubo possam ser desestruturadas sem desvio de foco.

Uma questão de tantas que surge diz com o aumento das penas e, consequentemente, do encarceramento proposto. Deveríamos prever mais tempo de encarceramento e reduzir os benefícios e as possibilidades do período de execução de pena, sustentam alguns.

Aumentar o tempo de encarceramento conduz a algum resultado satisfatório para a segurança do cidadão? Qual a relação entre o aumento de pena e a criminalidade organizada com braço internacional?

Na Itália se reconhece hoje que o aumento da pena aplicada ao criminoso internacional não reduz a participação de outros jovens na mesma organização, pois essas peças descartáveis são sempre substituídas por outra, e por outra, e por outra num movimento sem fim. Prender indefinidamente “mulas” ou “pequenos soldados” apenas nos permite retirá-los das ruas e remetê-los para a escola de formação do miliciano, do assaltante ou do traficante, que é o nosso sistema penitenciário.

Uma das questões prioritárias a ser observada é a atitude do Estado contemporâneo de encarcerar por pequenos delitos e assim permitir a recolha, pela organização criminosa, de um novo soldado.

A máfia ainda existe malgrado toda a modificação do sistema penal italiano com aumentos de penas e todo um sistema paralelo de persecução e imputação.

Os traficantes ainda existem, mesmo com penas e prisões elevadas aqui no Brasil.

Há respostas?

Seguir o dinheiro, ou follow the money, permitirá conhecer quem lucra com o crime organizado e com as associações de tipo miliciano e permitirá por asfixia, retirar-lhes a força. Reduzir a amplitude do poder do crime através do rastreamento e bloqueio de valores é fundamental. Valerá a pena o estudo acerca das medidas preventivas antimáfia, criadas na Itália.

Organizar e controlar o sistema carcerário de maneira que as associações não possam fazer assistência penitenciária para os detentos e nem se organizarem dentro do próprio sistema, também é muito importante. Ao perder o controle dos presídios e deixar fluírem as ameaças; ao perder o comando da força e da violência e do fluxo de informações dentro da carceragem, o Estado permitiu a organização e o crescimento do crime dentro de seu próprio seio. Controlá-lo é fundamental.

As fiscalizações em fronteira carecem de muita atenção haja vista a necessidade que estas organizações possuem de receber armas e cocaína através dos países vizinhos. As organizações do crime não teriam igual potência se não houvesse armas contrabandeadas, nem cigarros a serem vendidos sem controle na periferia, se não houvesse cocaína a ser vendida. A nossa fronteira sem controle responde pelo fluxo necessário ao delito organizado. Um controle sobre os fluxos fronteiriços é mais importante do que diversas mulas presas e encarceradas, que só fazem aumentar a rotatividade do peão!

Os mecanismos existentes, como o Coaf e os métodos de compliance e controle das instituições bancárias devem ser utilizados para vigilância e controle do sistema para verificação do fluxo de dinheiro que provém da ilicitude: seguir o dinheiro.

Demais disso, e talvez o mais importante, o Estado brasileiro deve ser opção presente na vida das pessoas. A periferia precisa sentir a presença do Estado, pois ele, sim, e não a organização miliciana ou os traficantes de armas e drogas, deve ser responsável por serviços públicos e pela segurança e cuidado dos cidadãos.

Consequentemente, o jovem precisa ter a percepção de que há vida fora da milícia, há vida fora do tráfico, e não há a necessidade de fazer uma escolha por uma associação criminosa, ainda na adolescência, por questão de sobrevivência e de futuro.

O que concretamente fez a máfia recuar em diversos espaços italianos foi a massiva presença do Estado onde antes só havia a família mafiosa.

Usando como parâmetro o que se percebe em Itália, é possível dizer que vencer essa guerra tem mais a ver com disputa de espaço do que com aumento de pena! A guerra contra a máfia, assim como a guerra contra as milícias e as organizações de assalto e tráfico no Brasil, só será ganha quando, aliada à estratégia penal clássica, tivermos a ocupação do Estado, com seus serviços, sua segurança e sua assistência aumentando a percepção de liberdade dos cidadãos, para que as comunidades possam buscar um futuro melhor!

Alterações no Código Penal e no Código de Processo Penal para prender mais e por mais tempo podem ser úteis – em alguns casos – mas na grande maioria sequer ferem o problema da segurança pública.

Dessa maneira, ao menos para quem não acredita que a pena moderna seja um modo de vingança ou de retribuição, é necessário focar mais no fato sociológico criminal, entendê-lo e avaliá-lo. A forma mais simples – aumentar as penas e o encarceramento – não funciona isoladamente. Sem mexer nas estruturas que geram e fortalecem o crime organizado, não reduziremos a criminalidade. Nesse caminho, continuaremos a ser uma das maiores populações carcerárias, além de um dos países mais violentos do mundo contemporâneo.

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  • é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.

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