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(Re)pactuaremos o Título VIII – "Da Ordem Social" da nossa Constituição?

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26 de fevereiro de 2019, 8h00

Spacca
Nosso contrato social celebrado há quase trinta e um anos está na centralidade do debate político-econômico de 2019. Um redesenho profundo se avizinha sem que a sociedade brasileira tenha suficiente clareza do que será repactuado em termos de direitos e deveres. Tampouco há evidências abrangentes sobre quem ganha e perde, sobre quem paga a conta e quem dela se beneficia ou se omite.

Na tensão maniqueísta e falseadamente polarizada entre Estado e mercado, a sociedade mal compreende os custos e riscos da proposta de migrar da universalização para a focalização de serviços públicos… A desigualdade segue desafiadora e muros simbólicos são erguidos em meio aos extremismos analíticos de lado a lado.

Fato é que, em 1988, havíamos nos comprometido, no Título VIII da nossa Constituição Cidadã, com uma "Ordem Social" baseada no primado do trabalho e finalisticamente orientada para alcançar os objetivos do bem-estar e da justiça sociais (artigo 193). Nesse paradigmático catálogo de 42 artigos distribuídos em oito capítulos, foram fixados os pilares constitucionais do regime jurídico dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais em nosso país (seguridade social; educação, cultura e desporto; ciência, tecnologia e inovação; comunicação social; meio ambiente; família, criança, adolescente, jovem e idoso e, por fim, mas não menos importante, índios).

Ali no Título "Da Ordem Social", entre receitas vinculadas e pisos de custeio, é (era?) possível encontrar a estrutura da identidade fiscal do nosso pacto civilizatório. Mas, ao longo das últimas três décadas, aludido contrato não foi cumprido e sua deterioração hipocritamente foi remetida, em emendas paulatinas e sucessivas, ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Como não nos cansamos de lembrar, parafraseando Oscar Wilde, o ADCT se tornou um casuístico "Retrato de Dorian Gray" da Constituição de 1988. Disso nos dão prova tanto a perenização da desvinculação de receitas da União (DRU) por força de oito emendas (vigência de 1994 a 2023), quanto o próprio "Novo Regime Fiscal" (vigência de 2017 a 2036). Paradoxal aqui é a constatação de que a aventada "transitoriedade" de ambas as soluções de exceção ao texto permanente da Constituição de 1988 alcança, respectivamente, 30 e 20 anos.

Agora, contudo, os arremedos episódicos de solução reformista parecem soar insuficientes e, a pretexto de uma grande reestruturação previdenciária, somos chamados à desconstitucionalização de significativas passagens do nosso contrato social. Estamos em vias de trocar o paliativo do ADCT por leis complementares a serem editadas sabe-se lá quando e como: insegurança jurídica é uma boa síntese das muitas perplexidades que nos vêm à mente.

Eis o contexto em que, no dia 20 deste mês, foi oficialmente encaminhada ao Congresso a proposta de “reforma previdenciária”, na forma da Proposta de Emenda à Constituição nº 6/2019[1], que "modifica o sistema de previdência social, estabelece regras de transição e disposições transitórias, e dá outras providências".

A ousadia da aludida PEC se mede, logo de saída, por sua extensão: 47 (QUARENTA E SETE!) artigos. Se aprovada, será a maior emenda à Constituição para desconstitucionalizar – mais um paradoxo?! – algumas das suas passagens mais sensíveis. Para que tenhamos uma dimensão proporcional, vale lembrar que a maioria das 99 emendas promulgadas tem, no máximo, 6 artigos, sendo que a mais extensa delas é a Emenda 19/1998 (reforma administrativa aprovada no 1º mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso), que conta com 34 artigos.

Com o recorrente tom fatalista[2] e em nome da governabilidade econômica, o Congresso Nacional e a sociedade somos – mais uma vez – chamados a debater o tamanho do Estado brasileiro e o custo dos direitos sociais em nosso ordenamento constitucional no bojo de proposta que pode vir a ser a sétima[3] emenda constitucional de reforma previdenciária.

Ora, desde meados da década de 1990, o Estado brasileiro tem sido questionado no mérito da sua capacidade de alocação (in)eficiente de recursos – tomados à sociedade e ao mercado –, ainda mais se se considerar que, dado o crescimento da dívida pública e da extrema dificuldade de geri-la, ele supostamente sequer continuaria sendo capaz de conformar maior inclusão cidadã, tão dispendiosa e inchada se tornara a sua máquina.

Assim, segundo Diniz[4], estaríamos permanentemente às voltas de uma "crise de governabilidade", que, há trinta anos, tem sido reiteradamente alçada à condição de uma espécie de "bomba-relógio" armada contra a própria democracia reformista. Em outras palavras, estar-se-ia diante de uma explosão de demandas (questão tomada a Samuel Huntington) incentivada por um Estado mais aberto à pluralidade de reivindicações, o que, por si só, colocaria em xeque a continuidade de tal sistema, na medida em que o Estado, diante de restrições orçamentárias e institucionais, não mais conseguiria processar e responder a todas elas.

Ao invés de enfrentar as causas estruturais do mal-estar nas finanças públicas brasileiras (desequilíbrio e descoordenação entre as políticas fiscal, cambial, monetária e creditícia), são apresentados parciais diagnósticos de contenção das despesas primárias para fazer face ao impasse fiscal em que temos vivido desde nossa redemocratização, como se houvesse excesso de direitos em um país tão desigual e fiscalmente iníquo, a começar por sua inconteste regressividade tributária.

Seis, daqui a pouco, muito provavelmente sete reformas previdenciárias, ao que se somam diversas estratégias de redução do microssistema de tutela do custeio dos direitos fundamentais ocultam os conflitos distributivos decorrentes de uma perversa opacidade orçamentária, incidente, sobretudo, nas seguintes dimensões: (1) falta de limites para as dívidas mobiliária e consolidada federal (art. 48, XIV e art. 52, VI da Constituição Federal); (2) frágil fiscalização das contrapartidas e condições de vigência das renúncias fiscais e dos créditos subsidiados; e (3) incestuosa e desbalanceada relação entre Tesouro e Banco Central.

Assim chegamos aos presentes dias em que há a defesa explícita da desconstitucionalização[5] de todas as normas de finanças públicas, em clara rota de esvaziamento pragmático da eficácia imediata dos direitos fundamentais: um "estado de sítio fiscal"?[6].

Liberdade decisória na agenda econômica e fragilidade fiscal para as políticas públicas basilares têm sido uma constante argumentativa das três décadas de vigência da nossa Constituição. Todavia, é preciso reconhecer, com equidistância, que vivemos uma clara tendência de disputa fratricida entre a previdência e os demais direitos sociais… Ilustrativa, a esse respeito, é a circunstância de diversos Estados da federação incluírem em seus pisos educacionais a cobertura de passivos previdenciários: no Supremo Tribunal Federal tramitam atualmente a ADI 5691 (Espírito Santo), 5719 (São Paulo) e 6049 (Goiás).

Daí decorre nosso convencimento de que, sim, é necessária uma equalização do gasto previdenciário. No mérito da PEC 6/2019, pois, parece-nos adequado propor limites variáveis de idade mínima para aposentação condicionados ao aumento da expectativa de sobrevida da população brasileira, até porque é inegável a transição demográfica pela qual o Brasil tem passado.

Por outro lado, reputamos correta a aplicação da progressividade tributária ao regime jurídico das contribuições previdenciárias para todos os segurados, o que não desincumbe o Executivo de buscar reconhecer e equalizar os passivos financeiros e atuariais históricos, como os que ocorreram, por exemplo, com a efetivação de servidores celetistas a pretexto de unificação do regime jurídico estatutário e mesmo com os rombos causados pelo desvio puro e simples dos recursos dos RPPS.

Igualmente merecedores de apoio são os §§11 e 11-A do art. 195, onde se pretende combater a sonegação das contribuições previdenciárias, racionalizar sua efetiva cobrança e vedar renúncias fiscais nessa seara, a despeito de o art. 38 da PEC 06/2019 estabilizar efeitos de todas as renúncias fiscais em vigor até a data da sua promulgação. Mas a propagada extinção da DRU, noutra mirada, não passa de simples redução do seu alcance, excluindo tão somente da sua incidência as contribuições sociais (art. 39), sem que haja a revogação completa do instituto.

Regras de transição podem ser mais ou menos gravosas, mas a tendência geral de equiparação entre os regimes próprio e geral de previdência social se apresenta como medida de equidade intertemporal, sobretudo se os militares – que não foram abarcados pela aludida PEC – também forem submetidos ao mesmo movimento de uniformização.

Uma reforma previdenciária que mantenha disparidade tão acintosa de regimes em favor dos militares, incluída aqui a pensão vitalícia para as filhas dos militares, que tenham ingressado no serviço público até 2001, revela-se como – de plano – iníqua.

Aliás, simbolicamente uma revolução interpretativa ocorreria no debate político da agenda previdenciária se começássemos o debate pela alteração dos artigos 31 e 32 da Medida Provisória 2215-10/2001:

Art. 31. Fica assegurada aos atuais militares, mediante contribuição específica de um vírgula cinco por cento das parcelas constantes do art. 10 desta Medida Provisória, a manutenção dos benefícios previstos na Lei no 3.765, de 1960, até 29 de dezembro de 2000.

§ 1o Poderá ocorrer a renúncia, em caráter irrevogável, ao disposto no caput, que deverá ser expressa até 31 de agosto de 2001.

§ 2o Os beneficiários diretos ou por futura reversão das pensionistas são também destinatários da manutenção dos benefícios previstos na Lei no 3.765, de 1960, até 29 de dezembro de 2000.

Art. 32. Ficam assegurados os direitos dos militares que até 29 de dezembro de 2000, contribuíam para a pensão militar correspondente a um ou dois postos ou graduações acima da que fizerem jus.

§ 1o O direito à pensão fica condicionado ao recebimento de vinte e quatro contribuições mensais que será deixado aos beneficiários, permitindo-se a estes fazerem o respectivo pagamento, ou completarem o que faltar.

§ 2o O militar que, preenchendo as condições legais para ser transferido para a reserva remunerada ou reformado, com proventos calculados sobre o soldo do posto ou graduação superior, venha a falecer na ativa, deixará pensão correspondente a esta situação, observado o disposto no caput deste artigo.

A pretensão de manter, em tempos e fluxos apartados de reformulação, os diversos regimes de previdência não aproveita ao próprio processo de aprendizagem da sociedade sobre a distribuição equitativa dos custos entre todos os afetados. Tantas são as frentes de batalha que não se pode preterir a chance de provar que efetivamente serão equalizadas – de fato e de direito – severas disparidades que existem no RPPS dos militares.

Não bastasse tal opção equivocada de excluir os militares temporal e semanticamente da agenda reformista em curso, ainda há diversas outras fragilidades na PEC 6/2019. Nesse sentido, é preciso que tenhamos particular cuidado com a proposta de adoção irrestrita do regime de capitalização (art. 201-A) e com o retrocesso na desvinculação do benefício de prestação continuada (BPC) ao salário-mínimo para os idosos de 65 a 70 anos (art. 203, VI).

Igualmente causa-nos grande preocupação a redação proposta para o art. 195, §5º de que decisão judicial não possa enfrentar lesões ou ameaças de lesão a direito (art. 5º, XXXV) sem indicar "a correspondente fonte de custeio".

Assim como soa intertemporalmente temerária a proposta de nova redação para o §4º do art. 167, onde se estabelece, no seu inciso II, a possibilidade de novas vinculações de impostos e transferências de impostos para cobrir rombos previdenciários. Daqui a pouco os pisos de custeio da saúde e educação serão ainda mais esvaziados para saldar o passivo da irresponsabilidade previdenciária nos mais diversos entes da federação.

Em breves linhas, neste estudo que se pretende meramente perfunctório, aqui levantamos mais angústias e dúvidas do que considerações conclusivas acerca desse profundo redesenho, como já dissemos, que está em debate não só para a seguridade social em sentido estrito, mas para todo o Título "Da Ordem Social".

Quiçá a maior omissão que aqui registramos como nuclear na PEC 6/2019 e mesmo na Emenda 95/2016 e em todas as alterações de mesmo viés em nosso pacto constitucional civilizatório seja a falta de um dispositivo normativo que vede tanto (1) a criação ou expansão de programas e linhas de financiamento, bem como a remissão, renegociação ou refinanciamento de dívidas que impliquem ampliação das despesas com subsídios e subvenções; quanto (2) a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária, enquanto não forem fixados os limites a que se referem o art. 48, XIV e art. 52, VI da Constituição Federal.

Somente com a promulgação de tal norma estruturante de equidade fiscal será possível acreditar em repactuação justa dos nossos compromissos constitucionais em prol das presentes e futuras gerações, sem abrirmos mão do desiderato inscrito no artigo 193 da nossa Constituição Cidadã: bem-estar e justiça sociais.


[1] Cujo inteiro teor está disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=BA6D6A2849093D6DC52F0C13FB2E24E3.proposicoesWebExterno2?codteor=1712459&filename=PEC+6/2019

[2] O discurso de justificação da Emenda 95/2016 e da Emenda 19/1998, assim como das Emendas 20/1998, 41/2003 e 47/2005 (reformas previdenciárias anteriores) também fora marcado pela tônica da urgência econômica e da univocidade técnica, como se não houvesse pluralidade interpretativa sobre as teses ali suscitadas.

[3] As seis anteriores são EC nº 3/1993, EC nº 20/1998, EC nº 41/2003, EC nº 47/2005, EC nº 70/2012 e EC nº 88/2015 (https://economia.estadao.com.br/blogs/o-seguro-morreu-de-velho/brasil-ja-fez-seis-reformas-nas-regras-da-previdencia/ )

[4] Como bem suscita a autora, “apontando a ingovernabilidade do país como um dos principais desafios da atualidade brasileira, o diagnóstico dominante enfatiza os efeitos perversos advindos da democratização crescente da ordem social e política. […] Nessa linha de raciocínio, a liberação das demandas reprimidas pelos vinte anos de regime autoritário e a exacerbação das expectativas por políticas sociais mais efetivas reforçariam as restrições do Governo acossado pela multiplicidade de pressões contraditórias, gerando paralisia decisória e perda de credibilidade”. (DINIZ, Eli. Governabilidade, governance e reforma do estado: considerações sobre o novo paradigma. Revista do Serviço Público. Brasília: Fundação Centro de Formação do Servidor Público , v. 120, n. 2, p. 05-21, maio/ago. 1996, p. 8-9)

[5] Como debatido em https://www.valor.com.br/brasil/5626351/persio-arida-gestao-economica-deve-ser-desconstitucionalizada e https://www.valor.com.br/brasil/5998809/novo-governo-desenha-pec-da-liberdade-orcamentaria

[6] Tal como Salomão Ximenes e esta articulista tivemos a oportunidade de escrever em http://www.scielo.br/pdf/es/v39n145/1678-4626-es-39-145-980.pdf

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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