Opinião

Uma visão infraconstitucional da prisão antes do trânsito em julgado

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23 de fevereiro de 2019, 6h23

Há aproximadamente três anos, uma intensa discussão tem atraído as atenções de penalistas e constitucionalistas. Trata-se da possibilidade ou da impossibilidade da chamada “execução provisória” da prisão criminal antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

O debate tomou um corpo maior a partir de 17 de fevereiro de 2016, quando o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, ao apreciar o Habeas Corpus 126.292, entendeu pela possibilidade de início da execução da prisão após a confirmação da sentença em segundo grau de jurisdição. Esse julgamento representou uma alteração da compreensão que predominava no STF desde o julgamento do HC 84.078, concluído na sessão plenária de 5 de fevereiro de 2009, quando se entendeu, por maioria, que a prisão antes do trânsito em julgado só poderia se dar a título cautelar, tendo em consideração o disposto no artigo 5º, LVII, da Constituição, que estatui que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.

Muito já foi escrito sobre os dois julgamentos e, particularmente, sobre o alcance semântico que pode ser dado ao disposto no inciso LVII do artigo 5º da Constituição. E muito ainda haverá de ser escrito, sobretudo nos próximos meses, tendo em vista que o STF se prepara para revisitar uma vez mais o tema em 10 de abril de 2019[1], quando se discutirão duas ações declaratórias de constitucionalidade que se propõem a afirmar, em síntese, a validade constitucional do disposto no artigo 283 do Código de Processo Penal, segundo o qual “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”, que veio a ser introduzido por força da Lei 12.403, de 4 de maio de 2011.

Sem pretensões de ofertar uma resposta para os contornos da normatividade do inciso LVII do artigo 5º da Constituição, há que se evidenciar a relevância de uma questão bastante negligenciada nesse grande debate nacional, que é a circunstância de que, em rigor, não é função do Judiciário, nem mesmo do STF, fazer política criminal ou penitenciária, instituindo o que chamam de “execução provisória” da pena de prisão criminal.

Diversamente, nos termos da Constituição, a política criminal e penitenciária sobre o início de cumprimento da pena de prisão relaciona-se com a competência da União para legislar sobre Direito Processual Penal (artigo 22, I), por meio do Congresso Nacional, com sanção do presidente da República (artigo 48, caput). Assim, é possível intuir que, independentemente do que diz a Constituição em seu artigo 5º, LVII, só será possível prender alguém num processo judicial nas hipóteses e nos casos especificados previamente em lei processual penal em sentido estrito.

Isso significa que a discussão em torno dos limites semânticos do inciso LVII do artigo 5º da Constituição só tem alguma utilidade prática e concreta num contexto em que haja a possibilidade reconhecida em lei de se executar um comando condenatório penal ainda não transitado em julgado.

Recorde-se, por exemplo, que o CPP em vigor, instituído pelo Decreto-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941, estipulava em seu artigo 393 — dispositivo que permaneceu em vigor até ser expressamente revogado pela já mencionada Lei 12.403, de 2011 — que era efeito da sentença condenatória recorrível “ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança” (inciso I), além de “ser o nome do réu lançado no rol dos culpados” (inciso II). Na mesma linha do artigo 393, I, do CPP, aparecem os termos do artigo 669 do mesmo código, que ainda não foram expressamente revogados, que estabelecem que “só depois de passar em julgado, será exequível a sentença, salvo” (caput): “quando condenatória, para o efeito de sujeitar o réu a prisão, ainda no caso de crime afiançável, enquanto não for prestada a fiança” (inciso I); “quando absolutória, para o fim de imediata soltura do réu, desde que não proferida em processo por crime a que a lei comine pena de reclusão, no máximo, por tempo igual ou superior a oito anos” (inciso II).

É dizer: sem entrar no mérito do que diz a Constituição no inciso LVII do artigo 5º, a sentença penal condenatória, mesmo que questionável por apelação, por si só já era título para a prisão do condenado na sistemática original do CPP, por força de seus artigos 393, I e 669, I. O órgão deliberante não precisava fundamentar casuisticamente a necessidade concreta de prisão, pois essa avaliação já havia sido feita politicamente pelo legislador de modo genérico. Em caso de crime inafiançável, nada poderia fazer o condenado contra esse efeito automático da sentença condenatória; em caso de crime afiançável, o não recolhimento à prisão dependia da prestação de fiança.

Na sistemática original do CPP, a prisão derivada da sentença condenatória recorrível não era precisamente uma decorrência da ausência de efeito suspensivo da apelação, pois o CPP dispunha — e até hoje dispõe — em seu artigo 597, que a apelação tem, sim, efeito suspensivo, ressalvando expressamente, porém, os termos do artigo 393, que impunham a prisão automática. A conferir: “a apelação da sentença condenatória terá efeito suspensivo, salvo o disposto no art. 393, a aplicação provisória de interdições de direito e de medidas de segurança (ars. 374 e 378) e o caso de suspensão condicional da pena”. A prisão decorrente de sentença condenatória recorrida, nesse contexto, exsurgia como um efeito automático seu, e não a título exatamente de uma “execução provisória”, pois esse instituto, próprio do Direito Processo Civil, depende do recebimento de um recurso não dotado de efeito suspensivo, e corre por iniciativa e responsabilidade do exequente — algo muito difícil de se conceber em sede processual penal.

A prisão decorrente de sentença penal condenatória recorrível não ostentava natureza estritamente cautelar, ao menos não no sentido atualmente previsto no artigo 312 do CPP, que trata da prisão preventiva como garantia da “ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente da autoria”. Era um efeito automático da sentença e não uma contingência de fatos e circunstâncias concretas e específicas do condenado, uma vez que o legislador da época, bem ou mal, já havia feito genericamente a escolha política pelo encarceramento imediato, apesar dos potenciais danos irreversíveis aos presos que poderiam vir a ser inocentados em grau de apelação ou em recursos subsequentes. Diversamente, presente uma sentença condenatória recorrível, o não recolhimento à prisão, esse, sim, ostentava natureza cautelar, e só era possível, pela redação do inciso I do artigo 393 do CPP, nos crimes afiançáveis, e desde que o condenado prestasse fiança.

Reforçando da prisão como efeito automático da sentença penal condenatória, em detrimento da liberdade dos condenados, a redação original do artigo 594 do CPP previa abstrata e genericamente o recolhimento à prisão, ou a prestação de fiança, como requisitos de admissibilidade da própria apelação: “o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se condenado por crime de que se livre solto”. Subsequentemente, o rigor da lei processual penal foi amainado com a superveniência da Lei 5.941, de 22 de novembro de 1973, que deu nova redação ao artigo 594 do CPP, para permitir que se apelasse sem o recolhimento à prisão também nos casos de condenados primários e de bons antecedentes e, obviamente, nos casos de condenação por crime de que se livrasse solto, verbis: “o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto”.

A regra do recolhimento à prisão para apelar vigorou na sistemática do CPP até a superveniência da Lei 11.719, de 20 de junho de 2008, que tratou de revogar o disposto no artigo 594 do Código. Já o disposto no artigo 393, I, do CPP, que impunha, como regra, a prisão após a sentença de primeiro grau, só veio a ser revogado expressamente por força do início da vigência da Lei 403, de 2011. Por sua vez, o disposto no artigo 669, I, do CPP, embora não tenha sido expressamente revogado até hoje, é incompatível com os dizeres em vigor do artigo 283, estipulados pela Lei 12.403, de 2011, que trazem as modalidades de prisão permitidas, sem prever aquela decorrente da sentença recorrível.

O certo é que até maio de 2011 havia autorização da legislação processual penal ordinária para o recolhimento à prisão como efeito da sentença recorrível. E era nesse contexto que o STF entendia por denegar pretensões de liberdade contra sentenças condenatórias não transitadas em julgado, a exemplo do que constou do voto do ministro Aldir Passarinho, na qualidade de relator, durante o julgamento do Recurso em Habeas Corpus 67.857, na sessão de 19 de junho de 1990, da 2ª Turma do STF, no qual, para além de ofertar uma visão acerca da extensão da garantia do inciso LVII do artigo 5º da Constituição, entendeu que as regras do CPP que permitiam a prisão decorrente de sentença recorrível não haviam sido revogadas com o advento da nova ordem constitucional. A conferir:

“[…] o item LVII do art. 5º da Constituição Federal, exatamente tem limitações que são previstas no próprio texto constitucional, não estando revogados, portanto, os dispositivos do Código de Processo Penal que estabelecem a possibilidade de prisão, havendo sentença condenatória, quando ela se impõe.
No caso, é de observar que o paciente, embora tivesse sido condenado por assalto a mão armada, se encontra em regime semi-aberto.
Gostaria, ainda, de fazer uma observação a latare.
Penso que a Constituição não poderia, jamais, ter abrigado liberalidade de tal amplitude, como a pretendida na impetração. Com a onda de criminalidade que assola o país, havendo, por isso mesmo, estudos para elaboração de leis aplicando sanções mais severas que as atuais, para repressão de crimes de maior gravidade, que forem considerados hediondos, tendo chegado mesmo a ser cogitada a inclusão da pena de morte, em preceito constitucional, quando da elaboração da nova Carta Política, não seria possível pretender-se que criminosos que se revelassem da mais alta periculosidade mas até então fossem considerados de bons antecedentes, só pudessem ser afastados do convívio social, com a prisão, após o trânsito em julgado da sentença condenatória”.

Em sentido semelhante, o ministro Néri da Silveira, na condição de relator, durante o julgamento do HC 72.517, na sessão da 2ª Turma do STF de 18 de abril de 1990, reconheceu a regularidade da prisão decorrente de sentença recorrível imposta pelos artigos 393, I, e 594 do CPP, verbis:

É inafastável a observação de não possuir o paciente bons antecedentes, o que, por si só, é bastante ao não reconhecimento do direito a apelar em liberdade, decorrente do art. 594 do Código de Processo Penal, que pressupõe seja o réu primário e de bons antecedentes. Tem esta Turma decidido que o art. 594 do CPP foi recepcionado pela nova ordem constitucional. Não se cuida, na custódia para apelar, de prisão meramente preventiva, senão que decorre da sentença condenatória. De acordo com o art. 393, I, do CPP, é efeito da sentença condenatória recorrível, além de outro, ‘ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança’. O título, portanto, da prisão do paciente é, já, a sentença condenatória recorrível e não mais o decreto de custódia preventiva.
Damásio de Jesus, acerca do art. 594 do CPP, anota: ‘Recolhimento do réu à prisão como condição de apelação. É regra. Exceções: a) quando condenado por crime que se livra solto; b) prestação de fiança; c) primário e de bons antecedentes desde que reconhecidas essas circunstâncias na sentença condenatória’ (‘in’ Código de Processo Penal Anotado, 3ª ed., pág. 357)”.

Bem vistos esses acórdãos, nota-se que o STF não decidia com base apenas no texto constitucional. Decidia sobretudo com base na legislação processual penal, a qual, em seu entendimento, não teria sido revogada pela Constituição.

Hoje, porém, o ordenamento processual penal é outro. Muito embora não sejam dotados de efeito suspensivo os recursos especial e extraordinário, e a redação do artigo 637 do CPP estranhamente remanesça dispondo que “o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença”, sem especificar em que termos seria possível essa execução, não existe nenhum dispositivo de lei ordinária que não tenha sido revogado tácita ou expressamente pela Lei 12.403, de 2011, que institua a prisão como efeito da sentença de primeiro grau, do acórdão de segundo grau ou de acórdão do Superior Tribunal de Justiça ainda não transitado em julgado. Tampouco na legislação processual penal vigoram atualmente disposições legislativas sobre como se daria eventual execução provisória da pena de prisão, ainda mais considerando que, nos termos do artigo 105 da Lei 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execuções Penais), a execução da prisão tem por pressuposto o trânsito em julgado: “transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução”.

Desde a expressa revogação do artigo 393, I, do CPP e da revogação tácita do artigo 669, I, do CPP, pela Lei 12.403, de 2011, como não existe nenhum dispositivo de lei processual regulando a pena de prisão antes do trânsito em julgado, não se pode dizer que o julgamento do HC 126.292, em 2016, representa um retorno ao entendimento que o STF ostentava antes do julgamento do RHC 84.078, em 2009. O que se pode dizer, sim, é que toda execução da pena de prisão antes do trânsito em julgado atualmente representa afronta aos termos do artigos 22, I, e 48, caput, da Constituição, independentemente do alcance mais ou menos estrito que se queira dar à cláusula “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, o que não acontecia anteriormente a 2011, quando veio a lume a Lei 12.403, de 2011, revogando expressamente o artigo 393, I, do CPP, e dispondo no artigo 283 do CPP, de modo incompatível com o que consta no vetusto artigo 669, I, do CPP, que hoje não passa de detrito legislativo.

Porém, se amanhã o Congresso Nacional vier a aprovar uma lei instituindo a imposição automática de prisão criminal na pendência de apelação, de recursos especial ou extraordinário, aí, sim, fará sentido discutir o alcance prático do inciso LVII do artigo 5º da Constituição. Não antes. A Constituição pode até permitir ou não vedar a execução da prisão antes do trânsito em julgado, mas, desde que não imponha por si o recolhimento à prisão antes do trânsito em julgado, é a legislação processual penal ordinária que deve ser investigada, num primeiro lanço, a ver se o ordenamento jurídico brasileiro adota ou não a chamada “execução provisória” da pena de prisão ou a prisão como efeito de sentença, ou de acórdão recorrível. Por enquanto, o debate nem sequer deveria tocar na Constituição, pois o que falta é lei processual penal em vigor estipulando as condições para que se prenda antes do trânsito em julgado, fora das hipóteses de flagrante e de prisões cautelares.

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