Ambiente jurídico

Princípios do desenvolvimento sustentável e da solidariedade intergeracional

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17 de agosto de 2019, 10h14

Spacca
Sem a pretensão de ingressar na teoria dos princípios e nas diversas controvérsias sobre o assunto, é possível afirmar que os princípios de Direito Ambiental são normas que visam a concretizar o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado e servem também como norte interpretativo.

A literatura ambientalista classifica de forma diferenciada os princípios do Direito Ambiental, embora exista consenso quanto à existência de alguns.[1] Vamos neste e nos próximos artigos, aqui na Coluna Ambiente Jurídico, abordar os princípios de direito ambiental a começar, hoje, pelos princípios do desenvolvimento sustentável e da solidariedade ou equidade intergeracional.

O princípio do desenvolvimento sustentável, reconhecido há quase 50 anos no âmbito do direito internacional, entre nós encontra esteio no preâmbulo e nos artigos 225 e 170 da Constituição Cidadã. Tal dignidade, importante referir, foi já expressamente reconhecida, em histórico julgamento, pelo egrégio Supremo Tribunal Federal[2], não dando azo mais a qualquer debate sério, concernente a sua existência, no país.

O desenvolvimento socioeconômico, por assim dizer, deve dar-se com governança, respeito ao meio ambiente e ao princípio da dignidade da pessoa humana. O Estado e os indivíduos têm o dever constitucional fundamental de responder aos anseios das gerações presentes sem comprometer as necessidades das gerações futuras.[3]

A Declaração de Estocolmo de 1972 trouxe uma noção internacionalmente conhecida de desenvolvimento sustentável ao estabelecer a importância de se proteger a “vida digna e o bem-estar” com o resguardo dos recursos naturais para as gerações presentes e futuras.

No ano de 1987, o Relatório Bruntland, formulado no âmbito da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, mediante documento intitulado Nosso Futuro Comum, representou um grande passo na definição do desenvolvimento sustentável, ao concebê-lo como aquele que atende às gerações presentes sem comprometer a possibilidade de as futuras atenderem às suas próprias necessidades.[4]

Posteriormente, o Princípio 4 da Declaração do Rio de 1992 estatuiu: “A fim de alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção do ambiente deverá constituir-se como parte integrante do processo de desenvolvimento e não poderá ser considerada de forma isolada”.

O Relatório Bruntland, de inegável relevância, foi criticado como sendo excessivamente antropocêntrico [5] e, nos dias atuais, para além desta crítica, pode-se observar que seus autores pecaram gravemente, também, ao não inserir a boa governança como um dos seus alicerces. Carece o conceito do princípio, pois, de aperfeiçoamento, uma vez que a sustentabilidade (elemento integrante deste, que é princípio mais amplo e denso) não se resume ao suprimento das necessidades materiais, mas também inclui valores imateriais, como a liberdade, a segurança, a educação, a justiça e o próprio meio ambiente saudável.[6]

Este conceito, de fato, foi posteriormente alargado por Robert Solow, que acrescentou a ideia de desenvolvimento sustentável a exigência de que se mantenha para as futuras gerações o mesmo ou melhor padrão de vida que desfrutamos na atualidade.[7] Amartya Sen, contudo, ainda considera insuficiente esta concepção, porquanto “a importância da vida humana não reside apenas em nosso padrão de vida e na satisfação das necessidades, mas também na liberdade que desfrutamos”. O economista indiano reformula as propostas contidas no Relatório Brundtland e no pensamento de Solow para incluir no conceito de desenvolvimento sustentável “a preservação e, quando possível, a expansão das liberdades e capacidades substantivas das pessoas de hoje ‘sem comprometer a capacidade das gerações futuras’ de ter liberdade semelhante ou maior”.[8]

O princípio do desenvolvimento sustentável, em seu vetusto conceito, abrangia, pois, três pilares: social, econômico e ambiental. Esse modelo é encontrado na Declaração do Rio de 1992 e na Declaração de Joanesburgo de 2002. A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável de 2012 (“Rio+20”) sufragou essa concepção mais abrangente, com amplo debate acerca da integração entre a economia, a sociedade e o meio ambiente. No documento final, The Future We Want, foram reafirmados os princípios da Rio/92 e renovado o compromisso em favor de um futuro sustentável do ponto de vista econômico, social e ambiental para nosso planeta e para as gerações presentes e futuras.

Após a formulação dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio, no âmbito da Conferência de 2012 (“Rio+20”), foram aprovados, em 2015, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, por meio do documento Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável– sob conhecida e forte influência do Professor da Columbia University Jeffrey Sachs.

Referidos objetivos, por sinal, visam avanços nas metas anteriores não alcançadas e, como já se disse, são integrados, indivisíveis e mesclam, de forma equilibrada, as antigas três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social, a ambiental. Soma-se a esta uma quarta dimensão, a “boa governança”.[9] Grife-se, contudo, a relevância de não se admitir, nem por gracejo, um falso pilar econômico para o princípio do desenvolvimento sustentável calcado nos combustíveis fósseis ou em hidrelétricas ambientalmente insustentáveis, mister é a imediata guinada para matrizes energéticas renováveis nesta era de mudanças climáticas.[10]

O princípio da equidade ou solidariedade intergeracional, por sua vez, ganha notável importância em um momento em que os limites de resiliência do planeta, dentro dos quais a humanidade pode se desenvolver e prosperar para as gerações presentes e futuras estão, um a um, sendo ultrapassados. Os limites relacionados à integridade da biosfera, ao fluxo biogeoquímico, à alteração do funcionamento do solo e às mudanças climáticas já foram superados ou estão seriamente ameaçados.[11]

A percepção da progressiva escassez dos recursos naturais e das limitações do Planeta em absorver os impactos da atividade humana lança luz sobre o problema da capacidade da biosfera de suportar a vida presente e futura diante das agressões empreendidas pela humanidade. O princípio da equidade ou solidariedade intergeracional apresenta evidente correlação com o princípio do desenvolvimento sustentável (do qual o da sustentabilidade é uma das suas manifestações e decorrências) e evoluiu, conforme analisado anteriormente, desde uma análise de necessidades materiais das gerações presentes e futuras, avançando para a consideração do padrão de vida e, com Sen, das liberdades e capacidades substantivas das pessoas.

Independentemente da formulação que se adote para o desenvolvimento sustentável, como lembra Veiga, “nenhuma delas pode deixar de contemplar seu âmago: a novíssima ideia de que as futuras gerações merecem tanta atenção quanto as atuais”.[12]

Consoante Milaré, há dois tipos de solidariedade: a sincrônica e a diacrônica. A sincrônica “fomenta as relações de cooperação com as gerações presentes, nossas contemporâneas”. Já a diacrônica “é aquela que se refere às gerações do após, ou seja, as que virão depois de nós, na sucessão do tempo”. Prefere-se referir, porém, a “solidariedade intergeracional, porque traduz os vínculos solidários entre as gerações presentes e com as futuras”.[13]

Também é possível encontrar a seguinte classificação: a) justiça intrageracional, atinente à solidariedade entre pessoas da mesma geração; b) justiça intergeracional, que se relaciona com a solidariedade entre gerações diversas, presentes e futuras; e c) justiça interespécies, que inclui o respeito pelo ambiente não humano.

A justiça intergeracional, assim, reconhece que todas as gerações humanas – do passado, presente e futuro – possuem igual posição normativa em relação ao sistema natural, e as gerações presentes têm o dever de proteger o ambiente para os ainda não nascidos.[14] Visão, aliás, de cunho holístico, mas totalmente compatível com o texto constitucional de 1988 que permitiu a elevação do meio ambiente equilibrado a direito fundamental de novíssima geração ou de terceira dimensão.


[1] Para uma análise aprofundada dos princípios de direito ambiental tendo como pano de fundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, ver: WEDY, Gabriel; Moreira, Rafael. Manual de Direito Ambiental: de acordo com a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019.

[2] “O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações” (STF, ADI-MC 3540, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 05.05.2009).

[3] Sobre o princípio do desenvolvimento sustentável e da análise deste como direito e dever constitucional fundamental na Era das mudanças climáticas, com base em estudos realizados na Columbia Law School, especificamente, no Sabin Center for Climate Change Law e no Earth Institute, vide: WEDY, Gabriel. Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças Climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2018.

[4] SEN, Amartya. Development as freedom. New York: Random House, 1999. p. 282-6.

[5] BOSSELMANN, Klaus. The Principle of Sustainability: Transforming Law and Governance. Farnham: Ashgate, 2008.p. 50.

[6] Ibid., p. 52-3.

[7] SEN, Amartya. The Idea of Justice. Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 2011. p. 284-285.

[8] Ibid., p. 286.

[9] Sobre as quatro dimensões do desenvolvimento sustentável, vide: WEDY, Gabriel. Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças Climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2018. Sobre o mesmo tema, vide: WEDY, Gabriel. O desenvolvimento sustentável: governança, meio ambiente, dignidade da pessoa humana e economia. Curitiba: Prismas, 2017.

[10] WEDY, Gabriel. O desenvolvimento sustentável: governança, meio ambiente, dignidade da pessoa humana e economia. Curitiba: Prismas, 2017.

[11] Esses limites planetários (planetary boundaries) são estudados pelo Centro de Resiliência de Estocolmo (STOCKHOLM RESILIENCE CENTER. Sustainability Science for Biosphere Stewardship. Planetary boundaries research. Disponível em: <http://www.stockholmresilience.org/research/planetary-boundaries.html>. Acesso em: 13 ago. 2019). Para Sachs, os limites planetários, que poderão ser superados pela humanidade, se não forem adotadas estratégias para se alcançar o desenvolvimento sustentável, envolvem nove grandes áreas: mudanças climáticas, acidificação do oceano, redução da camada de ozônio, contaminação causada por fluxos excessivos de nitrogênio e fósforo, em especial pelo uso intensivo de fertilizantes químicos, superexploração da água doce, mudanças no uso do solo, perda da biodiversidade, carga de aerosol atmosférica e contaminação química (SACHS, Jeffrey. The Age of Sustainable Development. New York: Columbia University Press, 2015. p. 66 e 224-234). Sobre o direito das mudanças climáticas, vide: WEDY, Gabriel. Climate legislation and litigation in Brazil. New York: Columbia University, 2017. Disponível em: <http://columbiaclimatelaw.com/files.2017/10/Wedy-2017-10-Climate- Legislation-and-Litigation-in-Brazil.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2018; WEDY, Gabriel. Sustainable development and the Brazilian judge. New York: Columbia University, 2015. Disponível em: <https://web.law.columbia.edu/sites/default/files/ microsites/climate-change/wedy_-_sustainable_development_and_brazilian_judges. pdf>. Acesso em: 20 jan. 2019; e WEDY, Gabriel. Climate change and sustainable development in Brazilian law. New York: Columbia University, 2016. Disponível em: <https://web.law.columbia.edu/ sites/default/files/microsites/climate-change/files/Publications/Collaborations-Visiting- Scholars/wedy_-_cc_sustainable_development_in_ brazilian_law.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2019.

[12] VEIGA, José Eli da. Para entender o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora 34, 2015.

[13] MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 259.

[14] WEISS, Edith Brown. O Direito da Biodiversidade no interesse das gerações presentes e futuras. Revista CEJ, Brasília, v. 3, n. 8, maio/ago. 1999. Disponível em: <http://www.jf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/view/194/356>. Acesso em: 21 jun. 2019.

Autores

  • é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito e visiting scholar pela Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law.

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