Opinião

Recurso cabível contra decisão que nega seguimento a recurso

Autor

  • José Henrique Mouta Araújo

    é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) doutor e mestre (Universidade Federal do Pará) professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) procurador do estado do Pará e advogado.

14 de agosto de 2019, 6h46

Um dos problemas mais enfrentados pelos nossos tribunais, em matéria de recurso, é a verificação de sua correta utilização e as consequências em caso de erro considerado grosseiro.

Neste ensaio, serão enfrentados, de acordo com a jurisprudência do STJ e do STF, aspectos ligados à unirrecorribilidade e as variáveis relacionadas ao juízo de admissibilidade dos recursos especial e extraordinário, inclusive no que respeita à afetação do cabimento de reclamação (RCL 36.476).

Com efeito, é necessária parcimônia na interpretação do artigo 1.030 do CPC/15, com a redação proveniente da Lei 13.256/2016.

O ponto de partida para a análise do recurso cabível em face da negativa de seguimento ao RE ou REsp é enfrentar os motivos que geraram tal decisão. Em resumo, estas condutas podem ser adotadas (artigo 1.030 do CPC) pelo tribunal local:

  • negativa de seguimento: (i) RE sem repercussão geral já declarada pelo STF ou quando a decisão local está em conformidade com o entendimento exarado pelo Supremo no regime da repercussão geral; (ii) RE ou REsp interposto contra acórdão decidido em conformidade com o entendimento do tribunal superior advindo de julgamento de recurso repetitivo;
  • remessa dos autos ao órgão julgador para o juízo de retratação, nos casos em que o acórdão local divergir do entendimento do tribunal superior advindo de recurso repetitivo ou repercussão geral;
  • sobrestamento recursal, nos casos em que a controvérsia submetida a regime repetitivo ainda não foi apreciada pelo tribunal superior;
  • seleção do recurso como representativo de controvérsia; e
  • realização do juízo de admissibilidade regular, com a remessa, em caso positivo, do feito ao STJ e/ou STF, desde que atendidos os pressupostos do artigo 1030, V, a a c, do CPC.

Partindo dessas múltiplas possibilidades, duas perguntas devem ser formuladas: qual o recurso cabível para impugnar a decisão que obstou a subida do RE ou o REsp? Em caso de manuseio da peça errada, é possível a aplicação da fungibilidade recursal, em atendimento à primazia de mérito e à cooperação? O CPC procurou resolver esses questionamentos, com o regramento contido no artigo 1.030, parágrafos 1º e 2º, a saber: AREsp ou ARE é cabível apenas quando a decisão de inadmissibilidade for pautada no inciso V, deste mesmo artigo, ficando as demais hipóteses sendo impugnadas por AgInt (artigo 1.021 c.c artigo 1.030, parágrafo 2º).

Contudo, é fato que em alguns casos a decisão é duvidosa, pois não apresenta expressa indicação, dentro das variáveis do artigo 1.030, do CPC, de qual o dispositivo que gerou a negativa de seguimento. Aliás, ao aplicar os precedentes do STF ou STJ, muitas vezes os tribunais locais adentram no mérito recursal, ultrapassando os próprios limites da admissibilidade[1]. Nesses casos, seriam cabíveis EDs para a correta integralização do julgado? Particularmente entendo que sim, tendo em vista que o artigo 1.022, do CPC consagra a possibilidade de manejo dos aclaratórios contra qualquer decisão[2].

Contudo, o STJ tem afirmado que os EDs não são cabíveis contra as decisões de inadmissibilidade e que, se acaso manejados, não interrompem o prazo para o recurso correto[3].

Também o STF tem precedentes contrários ao cabimento de EDs contra decisão local de inadmissibilidade de RE (ED no ARE 685.079 – rel. min. Celso de Mello, j. em 28/8/2012, DJe de 10/10/2012; AgReg no AI 588.190- rel. min. Ricardo Lewandowski – j. em 3/4/2007 – DJ de 8/6/2007; AgRg no ARE 813.750 – rel. min. Cármen Lúcia – j. em 28/10/2016).

Este posicionamento deve ser revisitado, consoante alguns registros isolados[4], por várias razões: a) o CPC é expresso ao consagrar o cabimento de EDs contra qualquer pronunciamento judicial; b) a negativa de seguimento de RE e REsp é conceituada como decisão e poderá conter uma omissão, obscuridade, contradição ou erro material; c) diante das múltiplas situações presentes do artigo 1.030, do CPC, é comum que a decisão que nega seguimento ao recurso gere dúvidas quanto ao cabimento de AgInt ou ARE/AREsp. Neste caso, a boa-fé do embargante está mais do que demonstrada, inclusive pelo entendimento predominante no sentido de que não há fungibilidade entre estes agravos; d) caso o STJ ou STF, após o conhecimento e apreciação meritória dos EDs, pelo tribunal local, e posterior recebimento do AREsp ou ARE, venha a decretar a intempestividade do agravo pelo erro na utilização dos aclaratórios, estará ferindo de morte a boa-fé, à primazia de mérito e a própria cooperação, tendo em vista que o recorrente já teve direito adquirido ao adiamento da formação da coisa julgada material.

Aliás, em julgamento ainda na vigência do CPC/73, o STJ reconheceu a justa expectativa, nos casos em que o tribunal local conhece dos embargos declaratórios (AgRg no AREsp 37.144 / RS – rel. min. Teori Albino Zavascki – 1ª T – j. em 17/5/2012 – DJe de 24/5/2012)[5].

Aliás, penso que esse entendimento de não cabimento dos EDs é um dos maiores equívocos interpretativos que vem sendo mantido nestes primeiros anos de vigência do CPC/15, que, inclusive, pode fulminar, além do direito ao recurso, o próprio manejo da ação rescisória (caso a decisão embargada tenha sido proferida há mais de dois anos da data do não conhecimento do agravo). Eventual má-fé no manejo dos aclaratórios pode ser punível com a aplicação da multa, não se tratando, portanto, de erro grosseiro à sua oposição, em que pese o entendimento jurisprudencial exposto acima.

De outra banda, como mencionado acima, o CPC consagra que, dependendo da fundamentação apresentada na decisão que nega seguimento ao RE ou REsp, será cabível AgInt (artigo 1.030, I, a e b c/c parágrafo 2º, do CPC) ou ARE/AREsp (artigo 1.030, V, parágrafo 1º c.c artigo 1.042, do CPC). Portanto, como exceção à unirrecorribilidade, a parte deve interpor os dois agravos, sendo primeiramente apreciado o recurso local para, dependendo de seu resultado, a remessa dos autos ao STF ou STJ.

A corte da cidadania tem diversos precedentes sobre esse tema[6][7]. Aliás, o Conselho da Justiça Federal editou o Enunciado 77, tentando colocar uma última pá de cal na discussão.

E não é só. Como já mencionado, o STJ[8] e STF têm precedentes contrários à fungibilidade entre os dois agravos, configurando erro grosseiro o manejo do recurso incabível e, como consequência, não correu a interrupção do prazo recursal, especialmente após o julgamento da Questão de Ordem no AI 760.358/SE (rel. min. Gilmar Mendes, DJe de 19/2/2010).

No caso em comento, os tribunais também têm aplicado a Súmula 322 do STF, que possui a seguinte redação: “não terá seguimento pedido ou recurso dirigido ao Supremo Tribunal Federal, quando manifestamente incabível, ou apresentado fora do prazo, ou quando for evidente a incompetência do Tribunal”. Portanto, além de não admitir a fungibilidade, ocorre o trânsito em julgado precoce da decisão recorrida pelo agravo equivocado.

Logo, deve o intérprete ter muita cautela em relação ao juízo de admissibilidade no âmbito do RE e REsp. Há a necessidade de verificar a fundamentação legal para o correto manejo do agravo do artigo 1.021 do CPC ou do artigo 1.042 do CPC. De acordo com o entendimento dos tribunais superiores, os aclaratórios são incabíveis, bem como não é admitida a fungibilidade entre os agravos, sendo, em caso de equívoco recursal, considerado erro grosseiro e, consequentemente, inexistindo interrupção do prazo.

Na mesma pisada, há divergência interpretativa em relação à medida cabível após o julgamento do AgInt que mantém a inadmissibilidade recursal fundada no artigo 1.030, I, do CPC: novo RE ou REsp, ARE ou AREsp ao tribunal superior ou reclamação[9], com o objetivo de suscitar a superação/distinção?

A questão a ser enfrentada é: se a parte pretende discutir a distinção, o erro na aplicação ou mesmo a superação do precedente utilizado pelo tribunal de origem poderá fazer uso de qual instrumento processual? O STJ tem julgados no sentido de que, após o AgInt, nenhuma outra medida é cabível[10].

Contudo, existem precedentes que enfrentam o cabimento de reclamação[11], pelo que é razoável apresentar duas conclusões acerca deste ponto: a) o entendimento firmado no CPC/73 de que a distinção em relação à aplicação do precedente se resolve no âmbito do tribunal local não deve prevalecer; b) há dúvida objetiva em relação à medida processual cabível após o julgamento do AgInt: ARE/AREsp; novo RE/REsp e/ou reclamação.

Neste tema, entendo que a reclamação é admissível. De toda sorte, não pode ser considerado erro grosseiro o manejo de quaisquer dessas medidas, tendo em vista a clara dúvida e a inexistência de uniformidade de entendimento doutrinário e jurisprudencial.

Portanto, atendendo à primazia de mérito e à cooperação, deve ser aproveitada a medida judicial adotada pela parte, em razão da clara dúvida interpretativa.

A propósito, a 2ª Seção do STJ, na sessão de 26 de junho, resolveu afetar para julgamento na Corte Especial a Reclamação 36.476, com o objetivo de buscar a uniformização do tema. A solução final desta controvérsia, portanto, passa pela uniformização de entendimento no STJ, que poderá ocorrer com o julgamento dessa reclamação pela Corte Especial e pelo STF.

Aguardemos.


[1] Vale citar as lições de Lucas Buril de Macêdo: “quando há precedente obrigatório, o mérito é analisado no próprio tribunal a quo, no sentido de que será ele que fará o juízo de identidade entre o precedente e o caso, “negando seguimento” ao recuso caso entenda que a ratio decidendi é aplicável. O juízo pretensamente de admissibilidade, portanto, nada mais é do que uma análise do mérito recursal, na medida em que o objeto do próprio recurso é a decisão fundada em precedente, ou seja, ele versa sobre a aplicação da sua ratio ou não ao caso”. A análise dos Recursos Excepcionais pelos Tribunais Intermediários – o pernicioso art. 1.030 do CPC e sua inadequação técnica como fruto de uma compreensão equivocada do sistema de precedentes vinculantes”. Revista de Processo n. 262, São Paulo : Revista dos Tribunais, dezembro/2016, p. 202.
[2] Como bem apontam Fredie Didier Jr e Leonardo Carneiro da Cunha: “a partir do CPC-2015, portanto, perde o sentido qualquer discussão sobre o cabimento de embargos de declaração contra decisão interlocutória, decisão de relator ou decisão de Presidente ou Vice-Presidente do tribunal, que havia ao tempo do CPC-1973. Agora, qualquer decisão é embargável”. Curso de direito processual civil. Vol. 3, 13ª edição, Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p, 259.
[3] No tema, ver, no STJ, o ARESP 980.304 (de 21.09.2016 – DJe de 30.09.2016) e o próprio AgInt neste ARESp 980.304 (DJ de 15.03.2017).
[4] Mesmo na vigência do CPC/73, o STJ já tinha alguns posicionamentos contrários à sua jurisprudência dominante, como nos EDs em AgRg em Resp. 275,615 – Rel. Min, Ari Pargendler – J. 13.03.14 – DJ de 24.3.14.
[5] Nos termos do voto do Relator, ao enfrentar a jurisprudência dominante da Corte quanto ao incabimento de Eds contra decisão que não admite RESp: “o caso concreto apresenta a peculiaridade de que o Tribunal de origem conheceu dos embargos para, a seguir, rejeitá-los (fls. 392/393). Assim, dada a existência de justa expectativa da parte de que os embargos de declaração opostos haviam interrompido o prazo para a interposição do agravo em recurso especial, esta não pode ser penalizada com a declaração da intempestividade de seu recurso”.
[6] Inclusive na vigência do CPC/73, como a QO no Ag 1154599 / SP (Rel. Min. Cesar Asfor Rocha – Corte Especial – J. em 16/02/2011 – DJe 12/05/2011). RSTJ vol. 223 p. 57; Rcl 9404 / RJ (Rel. Min. Herman Benjamin – 1a Seção – J. em 14/08/2013 – DJe 11/09/2013).
[7] "AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CAPITALIZAÇÃO DE JUROS E JUROS REMUNERATÓRIOS. INADMISSÃO DO RECURSO ESPECIAL COM BASE NO ART. 543-C, § 7º, I, DO CPC. DESCABIMENTO DE AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESCARACTERIZAÇÃO DA MORA. PRESSUPOSTO NÃO EVIDENCIADO. POSSIBILIDADE. INSCRIÇÃO DO DEVEDOR NOS CADASTROS DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO. 1. É incabível agravo interposto contra decisão que nega seguimento a recurso especial fundado no art. 543-C, § 7º, I, do CPC, quando o acórdão recorrido tiver decidido no mesmo sentido daquele proferido pelo STJ em recurso representativo de controvérsia. (…) 4. Agravo regimental desprovido" (STJ, AgRg no AREsp 500.011/RS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, DJe de 03/11/2015). Vale também a leitura do AgInt no AREsp 1020811 / MS – Rel. Min. Maria Isabel Gallotti – 4ª T – J. em 16/05/2017 – DJe 22/05/2017.

[8] Vale citar o item II, da Ementa do AgReg na SS 416: “A APLICAÇÃO DO PRINCIPIO DA FUNGIBILIDADE RECURSAL, QUE PRESSUPÕE A EXISTENCIA DE DUVIDA OBJETIVA QUANTO AO RECURSO CABIVEL, AFIGURA-SE INVIAVEL ANTE A PREVISÃO EXPRESSA DO RECURSO ADEQUADO” (AgRg na SS 416 / BA – Rel. Min. AMÉRICO LUZ – Corte Especial – J. em 17/04/1996 – DJ de 27/05/1996 p. 17796 – LEXSTJ vol. 86 p. 250).
[9] Fredie Didier Jr e Leonardo Carneiro da Cunha admitem o cabimento de reclamação, como se observa na seguinte passagem: “esse agravo interno cumprirá o papel de servir como veículo do direito à distinção: o recorrente poderá demonstrar que seu caso é distinto, a justificar a não aplicação dos precedentes obrigatórios referidos no inciso I do art. 1.030, do CPC. Não provido o agravo interno, ao recorrente caberá reclamação para o STF ou STJ, nos termos do inciso II, do §5º do art. 988 do CPC: o agravo interno terá exaurido as instâncias ordinárias de impugnação da decisão e, com isso, terá sido preenchido o pressuposto da reclamação para o STF ou STJ previsto nesse inciso”. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3, 13ª edição, JusPodivm, 2016, p. 317.
[10] Dentre outras, ver: AgRg no AREsp 617.182/RJ, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, 2ª T, DJe de 12/02/2015); AgRg no AREsp – 652.000/PB, Rel. Ministro Sérgio Kukina, 1ª T, DJe de 17/06/2015; STJ, AgRg no AREsp 535.840/PB, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, 1ª T, DJe de 16/09/2014 e, já na vigência do CPC/15: AREsp 1170332 (Rel. Min. Luis Felipe Salomão – DJe 07/11/2017).
[11] No STF: Rcl 4.374/PE, Rcl 25.078 AgR/SP, RCL 26928 / SE e 32532/PE.

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    é advogado, procurador do estado do Pará, professor do Cesupa (PA) e do IDP, pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

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