Embargos Culturais

Roberto Aguiar, o jurista que desmistificou o imaginário dos juristas

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

4 de agosto de 2019, 8h00

Spacca
O Imaginário dos Juristas é um dos mais lúcidos textos já escritos sobre o pensamento jurídico brasileiro. Para seu autor, Roberto Armando Ramos de Aguiar, “os juristas vivem paradoxo: seu cotidiano está marcado pelo contraditório, mas sua ideologia conservadora está sempre reafirmando a harmonia do mundo”[1]. Essa passagem lapidar resume, ao mesmo tempo, agilidade que se confunde com lentidão e destreza que se embaraça com ilusória calmaria institucional idílica. O Direito é contradição permanente, a profissão do jurista, um oximoro.

Roberto Aguiar morreu no último 12 de julho, aos 78 anos. Neste nosso tempo de subversão de valores, nos quais juristas de araque falam em liberdade para matar a liberdade, a ausência de Roberto Aguiar é perda irreparável. Bacharelou-se (1965) e doutorou-se (1975) pela PUC-SP. Fez pós-doutorado em Yale (1979). Lecionou na PUC-SP (de 1970 a 1977). Foi diretor da Faculdade de Direito da Unimep. Foi pesquisador associado ao Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp. Foi professor titular da UFPA. Foi procurador-geral da UnB, onde ficou, lecionando principalmente na Ciência Política e nas Relações Internacionais. Em 2008, no turbilhão de agitadíssima crise institucional, assumiu a reitoria da universidade um dia sonhada por Darcy Ribeiro e por Anísio Teixeira. Foi professor do programa do mestrado do UniCeub, onde ensinou e orientou, até se afastar por razões de saúde. Por onde passou, Roberto Aguiar atuou com bom senso, temperança e cultura geral oceânica.

Ao longo da década de 1990, Roberto Aguiar associou seu nome a um conjunto de idealistas do Direito, a exemplo de Amilton Bueno de Carvalho, Elício de Cresci Sobrinho, Lédio de Rosa Andrade (que também recentemente perdemos), entre tantos outros que de algum modo seguiam sendas das sementes plantadas por Roberto Lyra Filho, André-Jean Arnaud, Carlos Maria Cárcova e Oscar Correas. Entre os mais jovens, Lenio Streck, um dos poucos corajosos que hoje se insurgem contra a jurisprudência de araque e contra o maquiavelismo disfarçado de querubim. Eram tempos de muita esperança, o pesadelo do autoritarismo ainda estava tão chegado em pretérito tão apinhado de brutalidade.

Roberto Aguiar afirmava que as contradições que a profissão do foro vivemos são periféricas, revelando-se, sempre, em termos interindividuais e “quase sempre, no interior de uma classe, a dominante”[2]. Os juristas se imaginariam “corretores de um mundo turbado por conflitos, que deve ser reencaminhado para seus caminhos ‘naturais’, isto é, para as rotas da harmonia”[3]. Para esses juristas que Roberto Aguiar denunciava, o Estado era um “grande pai equidistante e sempre necessário”[4]. O Direito seria a manifestação mais significativa dessa concepção metafísica de política. Pairava sobre o mundo da vida uma lei desinteressada e não comprometida com as posições dessa figura abstrata e distante que a doutrina denomina legislador”[5]. O sujeito de direitos seria mera abstração, e a decisão judicial mercadoria cujo preço estaria acima dos empobrecidos[6].

Roberto Aguiar também nos deixou (no início da década de 1990) um portentoso estudo sobre a crise da advocacia no Brasil[7]. Propunha uma revisão educacional no combate aos perigos da superficialidade, da alienação da categoria, das práticas atrasadas, da aversão do empírico, da redução do papel social dos advogados, do vicariato e do individualismo.

Estive com Roberto Aguiar uma única vez, em um elevador do UniCeub, aqui em Brasília, creio que no intervalo de uma banca de doutorado. Ele já estava doente, em uma cadeira de rodas. Não resisti e perguntei sobre o Imaginário dos Juristas. Com voz calma e com olhar compreensivo do mundo, Roberto Aguiar me respondia, no compasso desse intenso texto, que “a dimensão operatória dos sonhos, das utopias e da paixão é traduzida pela ousadia”[8]. Apertei sua mão. Despedi-me. A angústia por não ser suficientemente ousado e a ansiedade por ser incomensuravelmente apaixonado, me avisaram, na leitura de Roberto Aguiar, a dimensão operatória de meus sonhos e de minhas utopias.

Perdemos um exuberante pensador e um prático lidador, um denso teórico e um intenso trabalhador. Perdemos o jurista que desmistificou o imaginário dos juristas.


[1] AGUIAR, Roberto, O Imaginário dos Juristas, in CARVALHO, Amilton Bueno, Revista de Direito Alternativo, nº 2, São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 19.
[2] AGUIAR, Roberto, cit., loc. cit.
[3] AGUIAR, Roberto, cit., loc. cit.
[4] AGUIAR, Roberto, cit., loc. cit.
[5] AGUIAR, Roberto, cit., loc. cit.
[6] AGUIAR, Roberto, cit., p. 21.
[7] AGUIAR, Roberto, A Crise da Advocacia no Brasil, São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1991.
[8] AGUIAR, Roberto, O Imaginário dos Juristas, cit., p. 27.

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