O STF e a tensão entre a liberdade religiosa e o dever de proteção dos animais
26 de abril de 2019, 8h08
Em 28 de março, o STF finalmente — depois de mais de 12 anos de tramitação — concluiu o julgamento do RE 494.601-RS (relator originário ministro Marco Aurélio e redator para o acórdão ministro Luiz Edson Fachin), no qual se discutia a constitucionalidade da Lei estadual 12.131/2004, que acrescentou o parágrafo único ao artigo 2º da Lei 11.915/2003 do Rio Grande do Sul (Código Estadual de Proteção aos Animais). De acordo com a corte, tanto no que diz com a alegação de inconstitucionalidade formal (vício de iniciativa) quanto de incompatibilidade material com a CF, o recurso é improcedente.
Na perspectiva formal, a corte entendeu inexistir qualquer ofensa ao esquema de distribuição de competências constitucional, visto que a legislação estadual impugnada não versa sobre matéria penal, não descrevendo tipos penais e respectivas sanções, mas apenas inseriu regra de natureza administrativa, ao excluir precisamente a responsabilidade administrativa do agente em virtude do abate de animais durante e para cultos e rituais religiosos.
De acordo com a síntese publicada no boletim informativo do STF, de acordo com os julgadores, “igualmente não se pode considerar ofensa à competência da União para editar normas gerais de proteção do meio ambiente, sobretudo ante o silêncio da legislação federal acerca do sacrifício de animais com finalidade religiosa. Os dispositivos apontados pelo recorrente (arts. 29 e 37 (2) da Lei 9.605/1988) cuidam tão somente do abate de animais silvestres, sem abranger os domésticos, utilizados nos rituais”.
Ainda reproduzindo trechos do citado BI, “a par disso, as regras federais foram editadas em contexto alheio aos cultos religiosos, voltando-se à tutela da fauna silvestre, especialmente em atividades de caça. O quadro impõe o reconhecimento de que a União não legislou sobre a imolação de animais. A omissão na edição de normas gerais sobre meio ambiente outorga ao estado liberdade para estabelecer regras a respeito, observado o § 3º (3) do art. 24 da CF”.
Já no que diz respeito à perspectiva substancial, o STF igualmente sustentou a constitucionalidade da nova versão do Código de Proteção dos Animais do Rio Grande do Sul, que teve por objetivo permitir, de modo a salvaguardar a liberdade religiosa, de culto e de ritual, o sacrifício de animas em cultos de matriz africana e seus desenvolvimentos no Brasil.
Para melhor compreender os argumentos principais colacionados quando do julgamento — registrando-se que ainda não foi disponibilizado o inteiro teor do acórdão, mas apenas alguns votos —, calha transcrever o teor do dispositivo da lei objeto da irresignação veiculada pela Procuradoria-Geral de Justiça do Rio Grande do Sul mediante o RE ora comentado, em relação à decisão do TJ-RS que havia, por maioria dos votos dos integrantes do seu Órgão Especial, reconhecido a constitucionalidade da legislação.
Assim, a teor do artigo 2º da Lei 11.915/2003 do estado do RS:
“É vedado: I – ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência; II – manter animais em local completamente desprovido de asseio ou que lhes impeçam a movimentação, o descanso ou os privem de ar e luminosidade; III – obrigar animais a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem sua força; IV – não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo; V – exercer a venda ambulante de animais para menores desacompanhados por responsável legal; VI – enclausurar animais com outros que os molestem ou aterrorizem; VII – sacrificar animais com venenos ou outros métodos não preconizados pela Organização Mundial da Saúde – OMS –, nos programas de profilaxia da raiva.
Parágrafo único (objeto precípuo da controvérsia judicializada). Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana” (grifo nosso).
Como bem pontuado no julgamento, trata-se de mais uma hipótese (como se verificou, guardadas as relevantes diferenças) de uma situação de conflito entre o dever estatal de proteção do ambiente, em particular — para o caso — da proteção dos animais e correlata proibição de crueldade para com os mesmos (artigo 225, parágrafo 1º, VII, CF), desta feita não apenas com os deveres (e direitos) gerais relativos à proteção — e promoção — do pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, ademais do dever de apoio, incentivo e difusão das manifestações culturais (artigo 215, caput, CF), mas, de modo especial, com o dever do Estado no sentido de — parágrafo 1º, CF — proteger “as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.
Além disso, diferentemente do que se deu nos julgamentos emblemáticos da farra do boi, da rinha de galo e da vaquejada, nos quais o STF reconheceu a ilegitimidade constitucional das respectivas práticas e manifestações de “natureza cultural e desportiva” (?), no presente caso o que estava em causa é — e por isso o particular destaque a ser dado ao julgamento — a proteção/garantia da liberdade religiosa plenamente assegurada pela CF, no seu artigo 5º, VI, a teor do qual “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (grifo nosso).
Note-se, ainda, que a decisão ora comentada, como já adiantado, apresenta outro diferencial de relevo em relação aos referidos precedentes, qual seja, o elemento étnico-racial (e a correspondente proibição constitucional de toda e qualquer forma de discriminação — artigo 5º, caput) e, nessa mesma toada, a proteção e promoção de particular manifestação e prática religiosa-cultural de matriz africana, ainda que não exercida apenas por integrantes da comunidade afro-brasileira.
Em linhas centrais e aqui sumariamente apresentadas, importa sublinhar que o STF estruturou seu entendimento em prol da constitucionalidade material da exceção inserida pela lei gaúcha em torno de alguns eixos argumentativos, sem que aqui se possa reproduzir todos nem adentrar em diversas das peculiaridades envolvendo os votos de todos os ministros, a maior parte (exceção de três) ainda não liberada para o público.
Numa primeira aproximação, é de se destacar o peso atribuído pelo STF ao princípio e dever de laicidade implicitamente (porquanto não expressamente previsto) estabelecido pela CF e à posição da liberdade religiosa, incluindo a de culto e de ritos, na arquitetura constitucional brasileira. Vinculando, outrossim, o dever de laicidade com o princípio geral da igualdade e o dever de neutralidade em matéria religiosa, consubstanciado principalmente — entre outros aspectos — pelo dever de abstenção e independência estatal nessa seara e de tratamento paritário e sem privilégios de toda e qualquer manifestação religiosa (artigo 19, I, CF) a corte considerou também não existir inconstitucionalidade com base nesse fundamento.
Nesse contexto, os julgadores pontuaram que a proteção legal (acrescente-se, o dever constitucional de proteção) assegurada às manifestações religiosas de matriz africana não representa uma modalidade de privilégio, mas, sim, encontra suporte, não apenas na liberdade religiosa como tal, mas em especial no parágrafo 1º do artigo 225 da CF acima referido (proteção das culturas populares das populações indígenas e afro-brasileiras). Ainda nessa senda, foi sublinhado pelos ministros o alto nível de preconceito e estigmatização que atinge a população afro-brasileira, o que deve ser computado no conjunto de argumentos a indicarem que se trata de cultos e rituais a merecerem particular atenção e proteção.
Outrossim, possivelmente a parte mais delicada e de difícil equacionamento diz respeito ao juízo de ponderação levado a efeito pelo STF ao colocar na balança — em relação à proteção da liberdade religiosa — o dever constitucional de proteção da fauna e a proibição de crueldade com os animais.
Para a corte, novamente em apertada síntese, a negação da constitucionalidade da lei estadual rio-grandense, permitindo sacrifício de animais em rituais religiosos, implicaria uma afetação desproporcional da liberdade religiosa quando se trata de um rito central de uma cultura e tradição religiosa, ainda mais quando o abate de animais para fins de consumo da carne é, em regra, atendidos parâmetros legais, permitida.
Note-se, além disso, embora acompanhando no substancial a posição majoritária da corte, os ministros Marco Aurélio (relator), Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes votaram no sentido da constitucionalidade da lei, mas para o efeito de lhe dar interpretação conforme à Constituição, de modo a incluir na exceção legal e excludente questionada no RE, cultos e rituais de qualquer manifestação religiosa envolvendo o abate de animais, desde que não incorrendo em maus-tratos e tortura. Para o ministro Marco Aurélio, além disso, o abate só poderia ser admitido caso a carne fosse destinada ao consumo.
À vista da sumária apresentação do caso, da decisão e dos argumentos esgrimidos pelos julgadores, várias são as inquietudes e considerações que poderiam ser manifestadas e tecidas, seja sobre o resultado, seja sobre as razões que embasaram o julgamento, entre outras.
Tendo em conta a natureza da presente coluna, limitar-nos-emos a realçar alguns aspectos.
Numa primeira aproximação e tendo em mente os precedentes do STF nos casos envolvendo a assim chamada farra do boi, da rinha de galo e da vaquejada, nos quais a corte — também não de modo incontroverso — decidiu pela ilegitimidade constitucional de tais práticas, fazendo prevalecer, no contexto de uma ponderação, o dever constitucional de proteção dos animais em face de manifestações culturais e desportivas de determinados segmentos da população, a decisão ora comentada poderia, a depender do ponto de vista, soar como contraditória e mesmo de caráter retrocessivo.
Todavia, basta um olhar mais detido para que se perceba que no mínimo um juízo de valor mais conclusivo não pode deixar de considerar as relevantes diferenças entre o caso do sacrifício ritual de animais e os precedentes referidos, onde eventual conflito de direitos e/ou bens jurídicos de estatura constitucional, não envolvia a liberdade religiosa, tão íntima da própria noção de dignidade humana e da própria liberdade de consciência.
Além disso, o que também foi objeto de referência na decisão, outro ingrediente de alto impacto e que imprime contornos diferenciados ao problema e ao seu equacionamento, é o da discriminação de natureza étnico racial, associado aos níveis sabidamente muito mais elevados de estigmatização das manifestações religiosas de matriz africana em relação a outras orientações religiosas.
Pior do que isso, de acordo com dados publicados pela revista IstoÉ de 17/10/2018, entre 2011 e 2016 houve um crescimento de 4.960% no que diz com registros de casos de intolerância religiosa no Brasil, dos quais 63% envolvendo religiões afro-brasileiras[1], sinalizando que a questão se transformou em agenda atual e urgente a ser equacionada.
A decisão do STF — assim como a do TJ-RS, atacada mediante o RE ora comentado — não pode, portanto, ser, salvo melhor juízo, de incoerente em relação aos precedentes acima referidos, porquanto substancialmente diverso o quadro fático, mas também distinto (pelo menos em parte) a natureza do conflito na sua dimensão jurídica.
Tendo sido pontuado pela corte que a decisão pela constitucionalidade da lei gaúcha inclui a necessidade de respeito à proibição constitucional de crueldade com os animais e de salvaguardar a saúde pública, o tribunal não abriu mão de sua posição consolidada na matéria, promovendo uma sustentável — na perspectiva dos critérios da proporcionalidade — concordância prática entre os direitos e bens jurídicos em causa.
Ademais disso, questões tão profundamente enraizadas em manifestações e práticas culturais e, no caso, religiosas centenárias e mesmo milenares, exigem uma particular posição prudencial e equilibrada pelo Estado e mesmo pela sociedade civil quanto à sua regulamentação e equacionamento de eventuais tensões e mesmo conflitos com outras manifestações de natureza similar, ou mesmo outros interesses, direitos e bens jurídicos.
Que isso não afasta, por si só, importantes e mesmo fortes críticas da parte dos que consideram a decisão equivocada quanto ao desenlace e/ou fundamentação, resulta evidente, além do que o embate entre a liberdade religiosa e o dever de proteção dos animais tem sido objeto de constantes embates e frequentemente acaba desaguando nos tribunais nacionais e supranacionais.
Por isso, o que aqui se pretendeu foi apenas destacar alguns pontos relativos a um problema tão complexo e atrair, quem sabe, mais alguns interessados em refletir sobre a temática.
[1] Cf. VARGAS, André; LAVIERI, Fernando. Violência em Nome de Deus, revista IstoÉ, 17.10.2018, p. 54-56.
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