Opinião

Inquérito supremo e revolta ministerial: inquisitorialidade na investigação criminal

Autores

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

  • Edson Luís Baldan

    é advogado professor de Direito Penal da PUC-SP e ex-delegado de polícia. Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) e pós-graduado em Criminologia pela Universidade de Leicester (Inglaterra).

19 de abril de 2019, 6h28

O Inquérito 4.781, sob presidência do ministro Alexandre de Moraes, objeto de enorme (e midiático) duelo entre o Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República, constitui apenas mais um exemplo concreto do sistema processual penal inquisitório que vigora no país sem grandes óbices há muitos anos, inclusive com anuência de parcela do Ministério Público[1]. Não custa lembrar que o Brasil é o único país da América Latina a não promover uma reforma de base acusatória no processo penal[2].

Com efeito, sob nítido (e vigoroso) fundamento inquisitivo, surgiu e tem se desenvolvido, como tantos outros, o referido inquérito supremo. A sua instauração foi determinada, em 14 de março, pelo ministro Dias Toffoli, presidente do STF, por meio da Portaria GP 69, sendo no mesmo ato delegada a condução investigativa ao ministro Alexandre de Moraes.

Em 19 de março, por meio de despacho inicial, o ministro Moraes fez referência aos supostos fatos a serem investigados e designou um delegado da Polícia Federal e um delegado de polícia estadual, ambos por indicação de outras autoridades públicas, para auxiliarem nas investigações.

Vale destacar, por oportuno, o que foi descrito como objeto deste inquérito”: “investigação de notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros; bem como de seus familiares, quando houver relação com a dignidade dos Ministros, inclusive o vazamento de informações e documentos sigilosos, com o intuito de atribuir e/ou insinuar a prática de atos ilícitos por membros da Suprema Corte, por parte daqueles que tem o dever legal de preservar o sigilo; e a verificação da existência de esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e ao Estado de Direito”.

De imediato, saltam aos olhos o nível de generalização do objeto investigativo[3], bem como a escolha pessoal tanto do ministro responsável pela “condução do feito” quanto dos delegados “auxiliares” da investigação. Tudo isso não parece combinar com a exigência fundamental de respeito ao devido processo legal (CF, artigo 5º, LIV,) também na fase de investigação preliminar processual penal[4], que, implica, dentre outras tantas coisas, na necessária impessoalidade apuratória (leia aqui).

Ainda quanto ao despacho inicialdessa investigação suprema, necessário sublinhar o alegado fundamento normativo: artigo 43 do Regimento Interno da corte. Tudo se funda no chamado poder de polícia do tribunal. Tanto no Regimento Interno do STF (artigo 43) quanto do STJ (artigo 58) consta a seguinte regra procedimental: Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependências do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro. § 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente. § 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do Tribunal”.

Justamente com base nessas previsões regimentais, existentes também em outras instâncias do Judiciário brasileiro, que são desenvolvidas, para além dos casos de foro especial por prerrogativa de função, inúmeras investigações judiciais (modelo de juiz investigador). Esses renitentes cistos autoritários apenas desnudam uma arraigada mentalidade inquisitória conectada à cultura herdada de um superado modelo de processo penal com origem e inspiração fascistas que se imaginava suficientemente solapado (ou, pelo menos, constrangido) pelo trabalho de fina sistematização empreendida nas três últimas décadas pela melhor dogmática pátria e por círculos jurisdicionais progressistas, empenhados na edificação de um modelo minimamente acusatório e mais afeiçoado aos novos paradigmas constitucionais e às inflexões saudáveis de modelos comparados de justiça criminal.

Ademais, num ideal modelo democrático e republicano, uma corte suprema, erigida à guardiã da higidez constitucional, não deveria figurar como instância penal originária em nenhuma hipótese; menos ainda poderia avocar uma atribuição investigatória que não se sustenta, como já mencionado, senão pela exegese literal de dispositivo insulado de seu próprio regimento (nesse particular não recepcionado pela Carta Política de 1988). A emolduração de um modelo minimamente acusatório deduzido a partir da promoção privativa (ou, ao menos, preferencial) da ação penal pelo Ministério Público (CF, artigo 129, parágrafos I e 5º, LIX) e a demarcação de exclusividade do exercício da polícia judiciária da União em favor da Polícia Federal (CF, artigo 144, parágrafo 1º, I e IV), numa correta hermenêutica, bastariam, tacitamente, arredar o fragílimo arrimo sobre norma administrativa invocado na portaria instauradora do aberrante procedimento investigatório judicial (tanto mais nefasto, neste caso concreto, porque produtor de ilegítimas restrições sobre a liberdade de expressão e de informação). Magistrados que, a pretexto de autodefesa da honra pessoal, olvidam de escudar a normativa constitucional que é, ao fim e ao cabo, a razão mesma de existência de uma suprema corte, fazem perigar a inteira ordem jurídica.

Não por outro motivo, setores minoritários da doutrina processual penal vêm defendendo a adoção do princípio do “investigante natural”, como consectário lógico dos axiomas do juiz natural e do promotor natural. Somente pode empunhar as pesadas ferramentas da persecução penal na fase antejudicial aqueles agentes e agências estatais aos quais a lei (e não ato normativo de qualquer nomenclatura ou topografia) tenha acometido, expressamente, tais atribuições, em nome da segurança jurídica do indivíduo e do correto funcionamento da administração pública (naquela esfera denominada sistema de justiça criminal).

O oposto implica potencial atuação descontrolada e descoordenada de múltiplos tentáculos investigatórios do Estado contra o cidadão, a dano da moralidade, legalidade, impessoalidade, eficiência e publicidade administrativas e, sobretudo, um evidente risco a garantias individuais daquele que não deve ser tomado como objeto da investigação, mas, corretamente, sujeito de direitos que estarão previsivelmente expostos a vulneração durante a apuração criminal (sigilo de comunicações telefônicas, inviolabilidade domiciliar, liberdade pessoal, intimidade, honra etc). Em tal cenário encapelado é que devem ser estimuladas as iniciativas tendentes à construção da investigação defensiva[5], único instrumento capaz de contrapor-se ao arbítrio estatal na missão de indicação de fontes de provas e coleta de elementos de convicção, em especial na fase da investigação preliminar.

Nesse caso específico, emerge, ainda, um elemento complicador. Abstraídas as tipificações insustentáveis e teratológicas calcadas na famigerada Lei de Segurança Nacional, LSN (Lei 7.170/83), tem-se, como remanescente e plausível plataforma fático-jurídica, um possível caso de crimes contra a honra de funcionários públicos em razão de suas funções, subsistindo, por conseguinte, legitimidade concorrente (e não complementar ou consecutiva) para exercício da ação penal, podendo, assim, ser esta intentada tanto através de denúncia, pelo órgão do Ministério Público, desde que suprida a condição de procedibilidade consistente de representação das vítimas (CF, artigo 129, parágrafo I e CP, artigo 145, parágrafo único) quanto por queixa-crime a ser promovida por advogado patrocinando os interesses dos servidores ofendidos (Súmula 714 do Supremo Tribunal Federal).

Por esse singelo motivo, rigorosamente, não poderia a Procuradoria-Geral da República pugnar pelo arquivamento sumário de um procedimento investigatório que não se conecta finalisticamente à formação exclusiva da opinio delicti do acusador público, mas, igualmente, do eventual querelante. Não pode o Ministério Público dispor, sem arrimo em norma legal expressa, de interesses e direitos do particular. Nesse quadro, portanto, assistiriam aos ministros do Supremo Tribunal Federal atingidos, em tese, em sua honra pessoal e funcional, duas alternativas: i) oferecer representação à Polícia Federal e ou à Procuradoria-Geral da República a fim de que se instaurasse, por um ou outro, a devida investigação penal visando à futura propositura de denúncia ou, então, ii) requerer à Polícia Federal a instauração de inquérito policial objetivando amealhar elementos indiciários de autoria e materialidade delitiva hábeis a fundamentar queixa-crime a ser ofertada por advogado constituído pelos querelados.

No segundo caso, o Ministério Público atuaria não como dominus litis, mas exclusivamente como custus legis. Somente falece juridicidade procedimental na instalação de inusitada disquisição criminal sob presidência direta de ministro do STF. Às vezes, o fácil é o certo, e o caminho iluminado pela estrita legalidade o mais seguro para se trafegar.

Paga-se, agora, em praça pública, a dano da respeitabilidade e integridade das instituições judiciais e ministeriais, elevado preço pela sedimentação da anomia no processo penal e, com maior abrangência e intensidade, na fase preparatória da ação processual penal, onde já não mais deitam eficácia as cristalinas normas constitucionais e ordinárias regentes do processo e da investigação criminal. Conquanto não aquinhoado com atribuições investigatórias diretas pelo legislador constituinte e tampouco pelo ordinário, o Ministério Público hauriu essa pretensão corporativa, tortuosamente, a partir de entendimento da própria suprema corte[6]. Desde então (e mesmo antes disso) agentes do parquet vem ganhando espaços jurídicos e midiáticos em ações pirotécnicas em que se apresentam coadjuvados por outras agências oficiais de igual maneira deslegitimadas à investigação criminal (por exemplo, polícias militares e guardas municipais). Em síntese, hoje: quem acusa também investiga; aquele que julga igualmente apura; somente não pode investigar aquele que defende e que ora se vê oprimido e comprimido, inerme, nesse embate de titãs.

Post scriptum: em que pese toda abordagem jurídico-processual, talvez o duelo STF e PGR possa ser melhor compreendido mesmo a partir da sociologia bourdieusiana ou da própria psicanálise freudiana ou lacaniana. É, no fundo, de poder que se trata!


[1] Confira, por todos, COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os Sistemas Processuais Penais: escritos do professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018.
[2] Todos os outros países da América Latina, mesmo com a peculiaridade do caso argentino (alteração nas províncias e discussão em trâmite na justiça federal), promoveram uma reforma processual penal de viés acusatório. Vide: FANDIÑO, Marco; FUCHS, Marie-Christine; GONZÁLEZ, Leonel. La Justicia Penal Adversarial en América Latina: hacia la gestión del conflicto y la fortaleza de la ley. Santiago-Chile: CEJA / Bogotá-Colômbia: Fundación Konrad Adenauer, 2018 / BINDER, Alberto M. Fundamentos para a Reforma da Justiça Penal. Trad. Augusto Jobim do Amaral. 01 ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017 / POSTIGO, Leonel González. Pensar na Reforma Judicial no Brasil: conhecimento teórico e práticas transformadoras. Trad. Fauzi Hassan Choukr. 01 ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2018.
[3] Sobre a importância de delimitação do objeto investigativo a partir da ideia de notícia-crime e fato (passado) aparentemente delitivo, confira: MACHADO, Leonardo Marcondes. Introdução Crítica à Investigação Preliminar. 01 ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, pp. 102-104.
[4] “Premissa basilar, como acentuado, é que a persecução penal apresenta dois momentos distintos: o da investigação e o da ação penal. Embora dotada de dois instantes, a persecução é, em si, una, indivisível. Daí que a cláusula do devido processo legal (due process of law, ou do giusto processo) deva ungir a ação estatal durante esse todo indivisível. Por esse raciocínio, não só o acusado (na fase judicial) mas também o imputado (na fase preliminar de investigação ou, mesmo, aquém desta) deve gozar, na plenitude da garantia individual do devido processo legal” (BALDAN, Édson Luís. Devida investigação legal como derivação do devido processo legal e como garantia fundamental do imputado. In: KHALED JR., Salah (coord.). Sistema penal e Poder Punitivo: estudos em homenagem ao prof. Aury Lopes Jr.. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 165).
[5] Provimento 188/2018 do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, art. 1º: “compreende-se por investigação defensiva o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido pelo advogado, com ou sem assistência de consultor técnico ou outros profissionais legalmente habilitados, em qualquer fase da persecução penal, procedimento ou grau de jurisdição, visando à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para a tutela de direitos de seu constituinte”.

[6] STF, RE 593.297/MG, Repercussão geral, Relator Min.Cézar Peluso, Relator para acórdão Min Gilmar Mendes, j. 14.05.2015, pub. 08.09.2015.

Autores

  • é delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação. Contato: www.leonardomarcondesmachado.com.br

  • é advogado, professor de Direito Penal da PUC-SP e ex-delegado de polícia. Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) e pós-graduado em Criminologia pela Universidade de Leicester (Inglaterra).

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