Academia de Polícia

É possível opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

11 de setembro de 2018, 8h05

Spacca
Em consequência da natureza inquisitória do inquérito policial, bem como de seu caráter informativo, afirma-se que não haveria um direito subjetivo do imputado de arguir a suspeição ou o impedimento do delegado de polícia responsável pelo caso nos moldes da exceção prevista em relação ao magistrado. Caberia somente à própria autoridade policial declarar-se suspeita ou impedida, quando presente alguma circunstância legal para tanto, e afastar-se da direção do inquérito.

Aliás, essa é a redação do artigo 107 do CPP, in verbis: “Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos atos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal”.

Nessa linha, a jurisprudência do STJ: “O art. 107 do Código de Processo Penal dispõe, expressamente, não ser cabível a exceção contra as autoridades policiais, quando presidem o inquérito, em razão de sua natureza (peça inquisitorial) como procedimento preparatório da ação penal (…) no que se refere à aparente contradição, que prevê que as autoridades policiais devem declarar-se suspeitas, havendo motivo legal, entendo que deveria a parte interessada ter solicitado o afastamento da autoridade policial ao Delegado-Geral de Polícia ou, sendo o pleito recusado, ao Secretário da Segurança Pública, o que não se deu. A questão torna-se, então, administrativa, pois existe recomendação legal para que o afastamento ocorra. Por ordem superior, isso pode acontecer”[1]. Ademais, entende há muito o STF que “a suspeição de autoridade policial não é motivo de nulidade do processo”, sob o fundamento de ser o inquérito “mera peça informativa”[2].

A doutrina majoritária sustenta não haver qualquer problema na ausência de exceção de suspeição quanto ao delegado de polícia, uma vez que os atos de investigação seriam repetidos na fase processual, bem como que eventual direito do imputado em contestar a isenção da autoridade policial presidente do feito poderia atrapalhar o curso normal das investigações[3].

Os argumentos, data venia, não nos convencem. A uma, porque no modelo brasileiro existem certas provas (não repetíveis) que são produzidas no inquérito policial e também uma permissão legal (típica do modelo processual inquisitório) para valoração dos elementos de informação da fase investigativa na sentença criminal (artigo 155 do CPP). A duas, porque a tese de “perturbação” das investigações policiais em virtude do reconhecimento de garantias constitucionais ligadas ao devido procedimento legal (artigo 5º, LIV, CRFB) vai na contramão de um modelo de Justiça criminal fundada no Estado de Direito.

Em que pese distante do posicionamento da maioria (doutrinária e jurisprudencial), sustentamos que o fato do CPP não prever exceção de suspeição no tocante ao delegado de polícia em nada altera o dever constitucional de impessoalidade que deve existir também na fase de investigação preliminar. Não custa lembrar que são princípios básicos que regem toda a atividade da administração pública (e, portanto, também o mister investigativo do delegado de polícia) a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (artigo 37, caput, da CRFB). Por óbvio, a condução de uma investigação por autoridade policial vinculada, de modo positivo (ex.: amigo íntimo) ou negativo (ex.: inimigo capital), a quaisquer dos envolvidos no caso ou, então, por outro motivo interessada diretamente naquela instrução preliminar, transforma o procedimento em algo ilegal, imoral e pessoal, que pode, ainda, comprometer a própria eficiência e o nível regular de publicidade da persecução penal. Em resumo, uma completa violação à ordem constitucional.

Com efeito, em todo e qualquer procedimento persecutório criminal, é pressuposto ético-jurídico que o responsável pela sua presidência não possua qualquer espécie de interesse no resultado do caso. Não pode apresentar relação de proximidade com quaisquer dos sujeitos (imputado, vítima etc.), a fim de assegurar igualdade de tratamento e isenção na apuração dos fatos. O objetivo é um só: evitar favorecimentos indevidos ou discriminações injustificadas.

Nesse sentido, sob um paradigma democrático constitucional, aplica-se ao delegado de polícia o dever fundamental de impessoalidade e, por analogia, as causas de suspeição (artigo 254 do CPP) e impedimento (artigo 252 do CPP) previstas à autoridade judicial. Somente dessa maneira fica garantida a necessária desvinculação e equidistância em relação às diversas pessoas implicadas na relação investigativa criminal (impessoalidade subjetiva), bem como no tocante aos interesses ou pretensões em jogo (impessoalidade objetiva).

Portanto, incumbe, em primeiro lugar, ao próprio delegado de polícia o (auto)reconhecimento de causas violadoras do dever (funcional) de isenção e, por consequência, a sua renúncia da presidência investigativa do caso. Se a autoridade policial não se afastar por iniciativa própria, caberá ao interessado provocá-la nesse sentido por simples petição nos autos do inquérito. Em não sendo acolhida a tese de quebra da impessoalidade pelo delegado presidente do feito, possível a interposição de recurso administrativo à autoridade hierarquicamente superior[4], inclusive ao delegado-geral de polícia e ao secretário de segurança pública, sem prejuízo de eventual reclamação junto ao órgão correcional e ao Ministério Público. Por fim, em nada se resolvendo na esfera administrativa, ganha sentido a provocação jurisdicional por meio de mandado de segurança (artigo 5º, LXIX, da CRFB) ou, em casos extremos, quando caracterizada ofensa à liberdade de locomoção, mediante Habeas Corpus (artigo 5º, LXVIII, da CRFB).

Em tempo, quanto à primeira parte do artigo 107 do CPP de 1941, a sua não recepção diante da ordem constitucional de 1988 parece flagrante, motivo pelo qual sem qualquer efeito válido no atual modelo de investigação preliminar.


[1] STJ – Sexta Turma – HC 309.299/MS Rel Min. Sebastião Reis Júnior – j. em 06.08.2015 – DJe de 26.08.2015.
[2] STF – Segunda Turma – RHC 131.450/DF – Rel. Min. Carmen Lúcia – j. em 03.05.2016 – DJe 100 de 16.05.2016 / STF – Segunda Turma – RHC 43.878/SP – Rel. Min. Evandro Lins – j. em 21.02.1967 – DJ de 05.04.1967.
[3] LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal Comentado. 02. ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 371.
[4] Registre-se a possibilidade (excepcional) quanto à avocação/redistribuição dos autos de inquérito policial por superior hierárquico desde que precedida, por óbvio, da correspondente fundamentação, fática e jurídica, vinculada ao interesse público (art. 2º, § 4º, da Lei n. 12.830/13). Nada mais pertinente que a violação ao dever de impessoalidade do delegado de polícia responsável pelas investigações criminais. O que, no entanto, depende sempre de comprovação regular pelo interessado, a fim de evitar uma interferência desarrazoada dos superiores hierárquicos nas apurações preliminares dos casos criminais.

Autores

  • Brave

    é delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.

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