Opinião

A interrupção da prescrição pela sentença absolutória no projeto "anticrime"

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14 de abril de 2019, 6h55

A prescrição penal está inserida no artigo 107, IV, Código Penal como uma das causas de extinção da punibilidade, que representa a perda do direito de punir do Estado em função do decurso do tempo, podendo se dar de duas formas, ou seja, antes do proferimento da sentença condenatória com trânsito em julgado (prescrição da pretensão punitiva) ou depois do momento que se deve executar a pena fixada (prescrição da pretensão executória)[1].

A regra no sistema jurídico é a prescritibilidade dos crimes, prevendo a Constituição Federal situações excepcionais da imprescritibilidade, tais como a prática de racismo (artigo 5º, XLII)[2], a ação de grupos armados, civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (artigo 5º, XLIV).

Como ensina a doutrina, existem fundamentos políticos para a existência da prescrição no ordenamento jurídico, como, por exemplo: (i) com o transcurso do tempo, o crime é esquecido pela sociedade; (ii) as provas do delito se deterioram e se fragilizam com o decorrer do tempo; e (iii) os fins da pena perdem o sentido após certo lapso temporal[3].

Nessa linha de raciocínio, a legislação penal definiu causas de interrupção do prazo prescricional ao longo do processo, ou seja, os fatos e atos que servem de marco para o cálculo da prescrição. A presença de parâmetros delimita “o empenho do interesse do Estado em exercer o poder punitivo e que, justamente por isso, afastam a possibilidade de inércia e de desinteresse que estão na base da ideia de prescrição”[4], garantindo-se, ainda, “uma solução da demanda em prazo razoável”, a partir da fixação de prazos em cada uma das etapas do processo.

Por sua vez, especificamente no artigo 117, do Código Penal, encontram-se as causas interruptivas da prescrição, quais sejam: pelo recebimento da denúncia ou da queixa; pela pronúncia; pela decisão confirmatória da pronúncia, pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis; pelo início da continuação do cumprimento da pena; pela reincidência.

Para fins do tema delimitado no presente trabalho, importa examinar o artigo 117, IV, o qual estabeleceu a interrupção da prescrição em face da publicação da sentença e do acórdão condenatórios recorríveis. Em outras palavras, assentou-se que a decisão condenatória de primeira instância, ou o acórdão condenatório prolatado a partir de uma sentença absolutória figurem como causas interruptivas, iniciando-se, por sua vez, novo prazo prescricional. Trata-se de situação trazida pelo legislador em que claramente não se interromperá o prazo prescricional em caso de sentença absolutória.

Diante das breves considerações expostas acima, deve-se destacar que dentre os diversos pontos polêmicos questionados pelos estudiosos em relação ao projeto "anticrime" do Ministério da Justiça[5], um que talvez tenha passado despercebido[6] diz respeito exatamente à sistemática da interrupção da prescrição. Isso porque o projeto traz a seguinte redação como medida a ser readequada no Código Penal: "Art.117 (…) IV – pela publicação da sentença ou do acordão recorríveis".

Ou seja, propõe-se no projeto de lei definir a interrupção da prescrição da pretensão punitiva tanto para a sentença condenatória quanto para a absolutória, em evidente norma prejudicial aos acusados. A mudança é relevante porque não se encontram motivos plausíveis para a modificação, visto que a proposição legislativa apenas menciona a importância de se alterar o artigo 117, do Código Penal, sem tecer um único comentário que seja ao tema[7].

A definição legal de condenação/absolvição é importante porque, em caso de sentença condenatória na qual se comprova a autoria e materialidade após o devido processo legal, o acusado sofrerá o ônus de reinício do prazo prescricional, com a ampliação do tempo disponível para a incidência de eventual prescrição da pretensão punitiva, visto que o exercício do direito de punir do Estado deu-se de forma correta e com a confirmação do pleito de acusação, ainda que precária da infração penal, pois sujeita a recurso às instâncias superiores.

No mesmo sentido, em estudo elaborado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, apresentou-se parecer contrário à proposta ora apresentada, sustentando o seguinte:

(…) Tendo em conta que a pretensão punitiva vai sendo concretizada com a sentença condenatória de primeira instância, podendo ir se confirmando ao longo da caminhada processual, até que chegue o trânsito em julgado, que há de sacramentar a culpa do condenado, é que no afã de preservar esse interesse estatal, desde que plausível, hipótese em que há elementos probatórios contundentes de autoria e materialidade, justifica-se usar a sentença condenatória recorrível como causa de interrupção. Contudo, quando o próprio Estado reconhece não ter provas para condenar e inocenta o réu, temos a tradução de que sua pretensão não se concretizou, inexistindo, por conseguinte, o que ser preservado da deterioração pela ação do tempo (…)[8].

Ou seja, a plausibilidade da tese acusatória consubstanciada na sentença ou acórdão condenatórios recorríveis justifica a interrupção do prazo prescricional. Nesta linha de raciocínio, se há sentença absolutória não há como se fundamentar a ampliação do prazo prescricional, por meio de nova contagem de lapso temporal, sob pena de desvirtuamento do próprio sistema de proteção ao acusado (presunção de inocência), visto que a proposta trazida pela acusação não se comprova ao longo do trâmite processual.

Na mesma esteira, a Ordem dos Advogados do Brasil manifestou-se de forma desfavorável à modificação:

Em conclusão, o GT – OAB considera inoportuna e inadequada a medida, especialmente pelo fato de considerar a decisão e acórdão absolutórios como causa de interrupção da prescrição, o que na prática tornaria praticamente todos os crimes como potencialmente imprescritíveis, em violação à constituição ou porque o sistema atual, com a reforma de 2010, já dificulta em muito a incidência da prescrição[9].

O argumento da instituição é relevante em função da constatação de que, se acatada a modificação legislativa, os prazos prescricionais se mostrariam desarrazoados, especialmente à luz da alteração ocorrida pela Lei 12.234/10, que acabou com a prescrição da pretensão punitiva na forma retroativa antes do recebimento da denúncia (artigo 110, parágrafo 1º, CP), sem que se possa falar em contribuição para a eficiência do sistema de Justiça criminal.

É de se pensar ainda o efeito contraproducente à razoável duração do processo, tendo em vista que, mesmo em situações de absolvição, não se colocaria qualquer ônus ao Estado-juiz de se viabilizar movimentações mais céleres para deslinde de suas ações penais, bem como desfecho dos casos penais para cessação dos estigmas produzidos pela condição de ser réu.

Ademais, a título de comparação, no processo penal após o proferimento de sentença absolutória, as medidas cautelares aplicadas deverão ser revogadas pelo magistrado (cf. artigo 387, II, CPP), tendo em vista que o fumus comissi delicti deixa de existir no caso examinado, não podendo sobrevir prejuízo à liberdade ou patrimônio, eis que há a preponderância da presunção de inocência[10].

Portanto, sob qualquer aspecto que seja examinada a questão, não faz o menor sentido que a sentença declaratória de inocência — antes presumida e agora devidamente reconhecida[11] — tenha o condão de trazer prejuízo à esfera de direitos do acusado, visto que o Estado teria o restabelecimento de todo o prazo prescricional disponível para exercer a pretensão punitiva, a qual, ainda que de forma recorrível, já se mostrou desacertada.


[1] FUHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Prescrição penal – apontamentos. Revista do Tribunais. vol. 640/1989, p. 267 – 273, Fev/1989.
[2] Conforme orientação do Superior Tribunal de Justiça, o crime de injúria racial, introduzido no Código Penal pela Lei 9.459/97, também deve ser entendido como imprescritível, em razão da sua proximidade com o cenário de racismo (AgRg no AREsp 686.965/DF, Rel. Ministro ERICSON MARANHO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), SEXTA TURMA, julgado em 18/08/2015, DJe 31/08/2015).
[3] MARTINELLI, João Paulo Orsini; DE BEM, Leonardo Schmitt. Lições fundamentais de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 947.
[4] FRANCO, Alberto Silva (Org.). Código penal e sua interpretação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 606.
[5] TORON, Alberto Zacarias. Toron critica ambição encarceradora e restrição de direitos em projeto de Moro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-fev-27/alberto-toron-critica-restricao-direitos-projeto-anticrime. Acesso em: 9 abr.2019.
[6] O tema ora abordado deu-se em razão de conversa com o advogado Pedro Faraco Neto na sede da Ordem dos Advogados do Brasil, subseção Londrina (SP).
[7] “O passo seguinte da reforma é o acréscimo de incisos aos artigos 116 e 117 do Código Penal, que tratam da prescrição. Sabidamente, esta é a válvula de escape da maior parte de criminosos para furtar-se à aplicação da lei. Os embargos de declaração, muitas vezes, não têm o objetivo de aclarar os acórdãos nos Tribunais Superiores, mas sim de adiar o julgamento final. Interpostos mais de uma vez no mesmo processo conseguem, não raramente, alcançar o objetivo. Por outro lado, a interrupção passa a ocorrer sempre que as decisões colegiadas sejam publicadas ou tenha início a execução da pena. Estes aspectos, aparentemente pouco significativos, darão mais efetividade à ação estatal”. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1712088&filename=PL+882/2019. Acesso em: 10 abr.2019.
[8] Parecer da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros. Disponível em: https://www.iabnacional.org.br/pareceres/pareceres-para-votacao/download/2414_8cde702f5dc63c45269886eb512e58dc. Acesso em: 8 abr.2019.
[9] OAB é contra propostas de Moro quanto a acordo penal e à execução antecipada. https://www.migalhas.com.br/arquivos/2019/4/art20190408-10.pdf. Acesso em: 8 abr.2019.
[10] PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. MEDIDAS ASSECURATÓRIAS. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. LEVANTAMENTO DOS BENS ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO. POSSIBILIDADE. ART. 386, PARÁGRAFO ÚNICO, II, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. 1. Não há incompatibilidade entre os arts. 131, III, e 386, parágrafo único, II, do Código de Processo Penal. A sentença absolutória, ainda que recorrível, implica a revogação das medidas assecuratórias, desde que os bens objeto da constrição não mais interessem ao processo. Caso contrário, impõe-se aguardar o trânsito em julgado. Sobre o tema, veja-se, do STF, a decisão proferida na AP 470, Rel. Ministro JOAQUIM BARBOSA, DJe 26/3/2013. 2. O sequestro, de um lado, se justifica quando há indícios veementes da proveniência ilícita do bem, dando primazia à efetividade do processo penal. De outro lado, a absolvição, mesmo não transitada em julgado, afirma a presunção de inocência do acusado. Precedentes deste Superior Tribunal. 3. Na espécie dos autos, a Corte de origem não constatou a necessidade de manter a constrição, o que não é sindicável em sede mandamental, porquanto vedada, aqui, a dilação probatória. 4. Recurso ordinário em mandado de segurança a que se nega provimento.
(RMS 49.801/RS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 05/04/2016, DJe 15/04/2016).

[11] Nota técnica do Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais. Projeto de Lei 882/2019 – Pacote Anticrime. Disponível em: http://www.condege.org.br/images/condege/arquivos-2019/abril/NOTA_T%C3%89CNICA_CONDEGE_-_PL_882_2-compactado.pdf. Acesso em. 10 abr2019.

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