Ambiente Jurídico

O crime do artigo 60 da Lei 9.605/98 como de perigo abstrato

Autor

  • Eduardo Coral Viegas

    é promotor de Justiça no MP-RS graduado em Direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) especialista em Direito Civil mestre em Direito Ambiental palestrante ex-professor de graduação universitária atualmente ministrando cursos e treinamentos e integrante da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. Autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

29 de setembro de 2018, 8h00

Spacca
Um dos tipos penais mais recorrentes no meio jurídico ambiental é o do artigo 60 da Lei 9.605/98. A doutrina e a jurisprudência divergem sobre sua caracterização, porém a posição prevalente sempre foi no sentido de que se trata de delito de mera conduta, sem a necessidade de produção de resultado naturalístico, e de perigo abstrato, dispensando-se a produção de prova pericial.

No entanto, mais recentemente diversas decisões dos tribunais vêm caracterizando o delito como de perigo concreto ou até como crime de dano. Nesse sentido, aliás, citamos aresto monocrático do STJ, proferido no âmbito da 6ª Turma:

Para caracterizar a materialidade do delito previsto no art. 60, caput, da Lei n. 9.605/1998, exige-se a comprovação da ocorrência de efetivo dano ao meio ambiente, porquanto o simples fato de a atividade exigir licença ambiental para sua instalação e funcionamento não pode, por si só, criar a presunção de que esta seja potencialmente poluidora[1].

No entanto, esse posicionamento não expressa a orientação pacífica do STJ. Mais recentemente, a 5ª Turma teve oportunidade de se manifestar sobre o tema, registrando na ementa do acórdão o caráter de perigo abstrato do delito, verbis:

VII – O crime previsto no art. 60 da Lei n. 9.605/98 é de perigo abstrato, do qual não se exige prova do dano ambiental, sendo certo que a conduta ilícita se configura com a mera inobservância ou descumprimento da norma, pois o dispositivo em questão pune a conduta do agente que pratica atividades potencialmente poluidoras, sem licença ambiental[2].

Nesse contexto, surge a dúvida a respeito de qual orientação está em consonância com a essência do tipo penal em evidência. E para elucidá-la faz-se necessário avaliar o propósito da norma em exame.

Sabemos que o Direito Ambiental está inserido no contexto de uma sociedade de risco, na qual os princípios da prevenção e da precaução ganham especial destaque. Nessa sociedade, há uma preocupação com os comportamentos da sociedade e de sua repercussão no meio ambiente.

Percebe-se que a complexidade é característica da sociedade pós-moderna. Se os problemas criados sobretudo pelo homem são complexos, não se pode querer resolvê-los de modo simplista. A tomada de decisões é, como nunca antes, extremamente séria. O mundo está interligado, pelo que as repercussões do que se decide em algum lugar do planeta não respeitam fronteiras. Beck enfrenta esta e outras relevantes questões da chamada sociedade de risco global, merecendo transcrição a seguinte passagem de sua análise:

Al contrario que los riesgos empresariales y profesionales del siglo XIX y de la primera mitad del siglo XX, estos riesgos ya no se limitan a lugares y grupos, sino que contienen una tendencia a la globalización que abarca la producción y la reproducción y no respeta las fronteras de los Estados nacionales, con lo cual surgen unas amenazas globales que en este sentido son supranacionales y no específicas de una clase y poseen una dinámica social y política nueva[3].

E o Direito Penal Ambiental alcança esses elementos, prevendo condutas ilícitas no plano abstrato que apresentam consumação antecipada. Ou seja, não se espera a ocorrência do dano para que se possa punir o agente. O caráter punitivo fica em segundo plano muitas vezes, para que se privilegie o caráter preventivo ou precaucional.

A diferença que se estabelece entre os princípios da prevenção e da precaução reside no fato de que, na primeira hipótese, os riscos são certos, enquanto na segunda são potenciais ou abstratos, típicos da sociedade de risco.

Sob a ótica ambiental, os referidos princípios estruturantes visam ao alcance da sustentabilidade. Melhor dizendo com um exemplo, busca-se prevenir — pelos princípios da prevenção e precaução — um dano ambiental para que o desenvolvimento humano se dê de forma sustentável, assim protegendo-se o bem ambiental, que é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

O delito do artigo 60 pode ser desmembrado em duas espécies: os diversos verbos nucleares se resumem em empreender sem licença ou autorização da autoridade competente, quando a atividade for potencialmente poluidora; ou quando a atividade, mesmo prescindindo de licença, se dá em desconformidade com os regulamentos ou, havendo licença, em desacordo com esta. Aqui o verbo principal pode ser resumido em contrariar, como assevera Marchesan[4].

Um dos verbos mais comuns é o de construir empreendimento que seja potencialmente poluidor sem licença ambiental. Veja-se que a mera conduta de fazer a obra sem passar anteriormente pelo processo de licenciamento já coloca o meio ambiente em risco, e é por isso que o delito se consuma antecipadamente.

Se a construção vier a causar dano ambiental, o crime já será outro, não raramente o próprio tipo do artigo 54 da Lei dos Crimes Ambientais, que se caracteriza quando a ação humana causa poluição em níveis tais, por exemplo, que cause a mortandade de animais.

Mas como saber se a atividade é potencialmente poluidora sem uma perícia?

Acontece que estamos frente a um delito caracterizado como norma penal em branco. A integração do tipo penal como outros elementos normativos se dá tanto na esfera federal quanto estadual ou municipal. Assim, não é qualquer atividade que pode configurar o ilícito. Somente devem ser consideradas aquelas que constam em listas, tabelas, enfim, em atos administrativos ou em normas propriamente ditas que elenquem um rol de atividades potencialmente poluidoras.

A verificação da ocorrência do crime depende apenas da verificação se a atividade empreendida ou que tenha sido praticada em contrariedade com o regulamento está listada como potencialmente poluidora. Grande parte delas constam da Resolução Conama 237/97, mas esse rol não é exaustivo. Podem os estados e os municípios listar outras atividades como potencialmente poluidoras, dado que compete a todos os entes federados a defesa do meio ambiente, na forma do artigo 23, VI, da CF.

Enfim, embora se admita que o assunto é polêmico, defendemos, na esteira da mais moderna orientação do STJ, que o crime do artigo 60 da Lei dos Crimes Ambientais é de mera conduta e de perigo abstrato.


[1] REsp 1.530.690/RS, julgado em 15/6/2015.
[2] Recurso em Habeas Corpus 89.461/AM, julgado em 17/5/2018.
[3] BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Trad. de Jorge Navarro, Daniel Juménez e Maria Rosa Borrás. Barcelona: Paidós, 1998.
[4] MARCHESAN, Ana Maria Moreira. Analisando o artigo 60 da Lei dos Crimes Ambientais no contexto da sociedade de riscos – irradiação do princípio da precaução à esfera penal. In. Licenciamento, ética e sustentabilidade (http://www.planetaverde.org/arquivos/biblioteca/arquivo_20131201044633_7701.pdf. Acesso em 20/8/2018).

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    é promotor de Justiça no MP-RS, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Civil e mestre em Direito Ambiental. Foi professor de graduação universitária e atualmente ministra aulas em cursos de pós-graduação e extensão. Integra a Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. É autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

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