Opinião

A decisão de recebimento de denúncia: análise de julgados da 2ª Turma do STF

Autores

  • Marcelo Turbay Freiria

    é sócio do escritório Almeida Castro Castro e Turbay Advogados Associados mestre em Direito pelo IDP pós-graduado pela Universidade de Coimbra (Portugal) professor da UnB (Universidade de Brasília) presidente da Comissão de Investigação Defensiva do Conselho Federal da OAB.

  • Ananda França

    é advogada criminalista e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Sistemas Penais Econômicos do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

3 de setembro de 2018, 6h20

O despacho de recebimento de denúncia no processo penal sempre foi tema extremamente controverso, sobretudo após a reforma parcial do CPP empreendida em 20081, quando se criou, equivocadamente — segundo muitos autores acreditam, dentre os quais o emérito professor Antônio Scarance Fernandes2 — dois momentos de análise técnico-jurídica da viabilidade da acusação, o primeiro previsto no artigo 396, e o segundo, no artigo 397.

E exatamente 11 anos atrás, em 28 de agosto de 2007, quando do recebimento da denúncia no chamado “caso mensalão” (Inq 2.245/STF), o ministro Gilmar Mendes já criticava duramente uma prática então consolidada pelos juízes de primeira instância: o recebimento de denúncia por carimbo3, que se limitava a um despacho, sem conteúdo decisório, que se esgotava na singela fórmula “Recebo a denúncia. Cite-se o acusado para fins de defesa prévia”.

De lá pra cá, a doutrina e os tribunais renderam-se à necessidade de fundamentação do recebimento da denúncia no procedimento comum ordinário do Código de Processo Penal. Atualmente é prática consolidada em todas as instâncias e procedimentos processuais penais o recebimento fundamentado das peças acusatórias. E, ao longo dos anos, foram sendo desenvolvidas técnicas e certos mecanismos decisórios de índole protecionista para, mais uma vez, tentar transformar a decisão de recebimento numa simples formalidade, uma mera análise superficial de admissibilidade acusatória.

Alguns magistrados passaram a invocar, inclusive, o chamado princípio do in dubio pro societate, aliás, flagrantemente inconstitucional, para receber denúncias sem precisarem se delongar em análises jurídicas de viabilidade técnica da acusação, limitando-se a importar o princípio do tribunal, simplificando a tarefa e menosprezando a responsabilidade judicante.

Em 2013, foi promulgada a Lei 12.850, que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal. Tal diploma legal aperfeiçoou, do ponto de vista legislativo, o instituto da delação premiada, mais tarde popularizado e ostensivamente empregado pela operação "lava jato".

E tal massificação da delação também tem produzido reflexos na decisão de recebimento da denúncia. Alguns magistrados, e mesmo ministros dos tribunais superiores, passaram a novamente invocar o princípio do in dubio pro societate ou a simplesmente aplicar fórmulas prontas de admissibilidade para receber denúncias sem maiores considerações jurídicas, inclusive aquelas embasadas exclusivamente ou fundamentalmente em delações premiadas.

O momento é preocupante e de profundo retrocesso, pois aparentemente estaria a se firmar uma jurisprudência protetiva que renega quase uma década de evolução e compreensão do recebimento de denúncia como um ato judicial de conteúdo decisório denso e responsável, apto a barrar acusações temerárias e/ou fadadas ao insucesso, prevenindo assim que se lançasse indignamente sobre o cidadão a pecha de réu quando a acusação não guardava plausibilidade e/ou verossimilhança.

E as denúncias fundadas tão somente em delações premiadas traziam — como trazem ainda — uma característica particular: não podem, por si só, conduzir a uma condenação sem elementos extrínsecos de corroboração da delação, por expressa vedação do artigo 4º, parágrafo 16, da Lei 12.850/13.

Indo além. Aquelas denúncias confeccionadas sobre o trilho da delação e que trazem em seu rol de testemunhas acusatórias tão somente os mesmos delatores que lhe deram substância, sem outro pedido de produção de provas, devem ser, inequivocamente, e por imperativo legal, rejeitadas, pois estão fadadas ao óbice do artigo supracitado.

Mas essa preocupante jurisprudência agora sofre ataques de notável envergadura técnica e densidade doutrinária, capitaneados por ministros da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal.

A atual composição da corte suprema tem apresentado clara dicotomia de posicionamentos entre a 1ª e a 2ª Turma, em especial quanto à matéria penal e processual penal. A 2ª Turma tem se notabilizado por posicionamentos que prestigiam a preservação de direitos fundamentais em matéria criminal, enquanto alguns ministros da 1ª Turma têm se postado de forma mais conservadora, optando por juízos de admissibilidade acusatória mais restritivos de direitos, que não raro relegam à instrução penal a solução dos problemas de viabilidade da acusação.

O momento de recebimento da denúncia tem representado, portanto, ao lado de temas sensíveis como a prisão preventiva e a condução coercitiva, o grande foco de divergência entre as duas turmas do Supremo Tribunal Federal.

Em 12 de setembro de 2017, ao apresentar voto em dois inquéritos (Inq 3.980 e Inq 4.118), o ministro Dias Toffoli inaugurou profunda discussão a respeito da necessária rejeição de denúncias embasadas tão somente em relatos de colaboradores premiados, em contraposição ao decidido quando do julgamento do Inq 3.983, pelo Plenário do Supremo, em que se consignou que “o objeto da delação premiada não serve, por si só, à condenação. Serve, em termos de indícios de autoria, ao recebimento da denúncia”4.

O ministro Toffoli expôs inovadoras reflexões sobre a ausência de justa causa para a ação penal nos casos em que inexistem elementos extrínsecos de corroboração da colaboração, fazendo consignar que “a necessidade de existência de justa causa funciona como mecanismo para impedir, em hipótese, a ocorrência de imputação infundada, temerária, leviana, caluniosa e profundamente imoral”5.

E pautando-se na jurisprudência do próprio Supremo Tribunal, sedimentou a indispensabilidade de efetiva justa causa para o prosseguimento da persecução penal, devendo a acusação estar pautada em acervo fático-probatório, “a fim de que o exercício desse grave dever-poder não se transforme em instrumento de injusta persecução estatal”6, utilizando-se das palavras do ministro decano.

Passando a avaliar o “tormentoso” tema da valoração dos depoimentos de colaborador premiado, o ministro relembrou já ter analisado a questão no voto condutor do HC 127.483, no Pleno, quando discorreu acerca da normativa italiana, na qual os referidos depoimentos têm de ser sempre confrontados com as declarações do acusado conexo e da testemunha assistida, além de serem ponderados conjuntamente com outros elementos de prova aptos a atestar sua credibilidade. Aquele Código Processual da Itália, em seu artigo 191, inclusive, proíbe a utilização das declarações caso não estejam amparadas por outros elementos de prova, inutilizando-as.

Partindo desse pressuposto é que o ministro Toffoli fez consignar em seu voto:

(…) Se os depoimentos do réu colaborador, sem outras provas minimamente consistentes de corroboração, não podem conduzir à condenação, também não podem autorizar a instauração da ação penal, por padecerem, parafraseando Vittorio Grevi, da mesma presunção relativa de falta de fidedignidade7.

Assim, concluiu-se que as colaborações sem lastreio em provas idôneas de corroboração não são suficientes para fundamentar o juízo de admissibilidade da pretensão acusatória, em razão da ausência de fumus commissi delicti.

Importante pontuar que a convergência entre depoimentos de colaboradores, bem como documentos produzidos de forma unilateral pelo próprio colaborador, tais como anotações e planilhas, igualmente não têm o condão de ensejar a justa causa para a ação penal, devendo ser apresentadas provas externas que atestem a veracidade dos depoimentos prestados, segundo o entendimento inaugurado pelo ministro Toffoli.

No julgamento em questão (Inq 3.980 e Inq 4.118), após os pedidos de vista, o ministro Gilmar Mendes acompanhou a divergência apresentada. Não obstante já ter sinalizado que também se filiava à compreensão ora apreciada, o ministro Lewandowski entendeu existirem, naqueles casos concretos, indícios suficientes para o recebimento das denúncias, nos termos do voto do relator (ministro Fachin), o qual foi também acompanhado pelo ministro Celso de Mello.

Já em 18 de dezembro de 2017, ao apresentar voto-vista no julgamento de recebimento de denúncia em dois outros inquéritos (Inq 3.994 e Inq 3.998), o ministro Toffoli retomou a discussão apresentada, recordando os ensinamentos já discorridos, oportunidade em que foram rejeitadas ambas denúncias nos termos de seu voto, vencido o ministro Fachin, então relator dos feitos.

A partir desses dois casos mais recentes, parece ter se consolidado, na 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, a compreensão de que a palavra do colaborador, sem elementos de prova externos que a confirmem, não é suficiente para a instauração da ação penal.

Nessa linha, no dia 14 de agosto, esse mesmo colegiado avançou ainda mais, sofisticando e aprofundando a análise de (in)viabilidade da acusação no momento processual de recebimento da denúncia. A 2ª Turma, continuando o julgamento no Inq 4.074, então interrompido em pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, por maioria, rejeitou a denúncia, nos termos das já analisadas lições proferidas em voto pelo ministro Toffoli, mas contando com valiosas contribuições dos demais ministros sobre o tema.

O ministro Gilmar Mendes, ao concordar com a tese, privilegiou o princípio da presunção de inocência, esclarecendo que:

A desconfiança com os atos de colaboração decorre da presunção de inocência, a qual como regra probatória e de julgamento impõe à acusação o ônus de provar a culpa, além da dúvida razoável, reproduzindo provas contra terceiros que o delator obtenha a remissão de suas penas, ou seja, um ânimo de auto-esculpação ou de eterno-inculpação8.

O ministro recordou, ademais, que a corte suprema tem sido severa no escrutínio do recebimento de denúncias, pois as que não apresentam perspectiva de conduzir à condenação não devem tramitar, afirmando que “o processo penal representa um gravame considerável em sua mera tramitação, de modo que sua abertura deve ser razoavelmente justificada”9.

Nota-se que, especialmente em razão das mazelas do sistema carcerário brasileiro, o qual já teve estado de coisas inconstitucional reconhecido por aquela corte, na ADPF 347, parece extremamente acertada a opinião exposta, ao se ponderar que o processo pode levar um cidadão ao flagelo com base exclusivamente na imaginação frutífera de criminosos confessos.

Nesse sentido, o ministro Lewandowski reiterou a insuperável dúvida que deve pairar sobre depoimentos de colaboração, ao colocar que “pondero que se deve dar pouca ou nenhuma credibilidade à palavra de criminosos confessos, que têm evidente interesse no desfecho da demanda para obter benefícios penais”10.

Não obstante o brilhantismo da íntegra do voto elaborado pelo ministro Lewandowski, talvez o trecho mais relevante e de fundamental destaque seja sua colocação acerca da impossibilidade de se considerar o in dubio pro societate para efeitos de recebimento de denúncia:

(…) Preparando um curso de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo sobre exatamente os princípios constitucionais que regem o processo penal, e eu acabei chegando à conclusão que a dúvida milita em favor do réu mesmo nessa fase até a fase final do julgamento. Eu penso que os doutrinadores e mesmo a jurisprudência equivocadamente têm repetido esse brocado sem, data vênia, uma maior reflexão, o que permite o recebimento de certas denúncias sem maior consistência de elementos que possam levar avante uma denúncia minimamente hígida11.

Assim, não apenas a 2ª Turma vem apresentando posicionamento firme quanto à ausência de justa causa em denúncias lastreadas tão somente na palavra de colaboradores premiados, mas também agora começa a edificar a impossibilidade de se aplicar o in dubio pro societate na fase de recebimento de denúncia, rompendo um entendimento que perigosamente se firmava e, assim, privilegiando o princípio constitucional do in dubio pro reo em todas as fases do processo penal.

Quer nos parecer, assim, que o viés utilitarista do direito que defende a concepção do in dubio pro societate não condiz com os ideais democráticos do Estado brasileiro, de modo que acertada e em boa hora a discussão do tema. Há de ser assegurado ao juiz, por conseguinte, o efetivo exame probatório que lhe reserva a lei processual durante toda a persecução penal, mesmo no momento de recebimento da denúncia, que não pode se restringir a uma análise superficialista e desinteressada de viabilidade da acusação.

Infelizmente, cresce excessivamente o número de julgados que ampliam o filtro de análise da pretensão acusatória, seja no recebimento da denúncia, ou na pronúncia, a ponto de exigir do acusado que produza prova negativa absoluta para fazer naufragar uma acusação mesmo trôpega e fadada ao insucesso. Ora, não podem os tribunais regerem-se por uma lógica de resultados ou estatísticas, não podem criar fórmulas prontas para se furtarem à imensa responsabilidade de lançar a pecha de réu ao denunciado.

O momento de recebimento da denúncia é fundamental, deve ser o divisor de águas para a preservação da dignidade da pessoa humana, bem como para a segurança jurídica e para o ideal de celeridade tantas vezes erroneamente invocado para legitimar atropelos processuais.

Ora, a denúncia claudicante, desprovida de base empírica consistente, bem como aquela fundada tão somente em delação premiada, é a que mais onera o Estado, que causa desnecessário dispêndio de tempo e dinheiro público, além de massacrar e humilhar publicamente e de forma desnecessária o cidadão.

A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal tem se postado e se erguido de forma contundente nessa nobre e honrosa posição de garantidora dos direitos e garantias que assistem ao cidadão que responde às investidas penais do Estado, realizando o juízo de admissibilidade acusatória de forma técnica e com notável densidade jurídica, como deve ser.


1 Texto incluído/alterado pela Lei 11.719/08.
2 FERNANDES, Antonio Scarance; LOPES, Mariângela. O recebimento da denúncia no novo procedimento, Boletim IBCCRIM nº 190, setembro de 2008. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/3715-O-recebimento-da-denuncia-no-novo-procedimento. Acesso em 28/8/2018.
3 STF, Inq. 2.245/MG, Min. Joaquim Barbosa, Pleno, julgado em 28/8/2007, fl. 843 do acórdão.
4 Inq 3983, Relator Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 3/3/2016. DJe 12/5/2016.
5 MOURA, Maria Thereza de Assis. Justa causa para a ação penal – doutrina e jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 247.
6 HC 73.371/SP, Relator Min. CELSO DE MELLO. Primeira Turma. DJ de 4/10/1996.
7 Inq 3980, Relator Min. Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 6/3/2018, DJE 7/6/2018.
8 Inq 4074, Relator Min. Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 14/8/2018, pendente de publicação. Transcrição livre do julgamento.
9 Idem.
10 Idem.
11 Idem.

Autores

  • é advogado criminalista, mestre, professor de Direito Penal e coordenador do Grupo de Pesquisa Sistemas Penais Econômicos do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

  • é advogada criminalista e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Sistemas Penais Econômicos do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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