Direito Civil Atual

Pode-se falar em um Direito Civil pós-moderno? (Parte 1)

Autor

  • Venceslau Tavares Costa Filho

    é doutor em Direito pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) professor adjunto da Faculdade de Direito da UPE (Universidade de Pernambuco) e da UniFafire membro da Comissão Especial de Responsabilidade Civil do Conselho Federal da OAB e advogado.

3 de setembro de 2018, 8h00

Spacca
Venceslau Tavares Filho [Spacca]Costuma-se dizer que o Direito Civil dito “tradicional” está em crise. Nelson Saldanha enxerga esta crise do Direito Civil dito tradicional (bem como do positivismo em geral) como um processo cíclico em todos os campos do saber. O apogeu de determinada formação histórica marca o seu ponto alto, mas também o início de sua crise, de modo que a crise do classicismo dos séculos XVII e XVIII resulta no romantismo, com os seus resgates (aos costumes, à tradição, à teologia, ao medievo) e com a valorização da vida e do concreto. Assim, a crise das codificações e do Direito Civil estaria relacionada à crise do classicismo e do racionalismo1.

Daí a desconfiança quanto ao mos geometricum, às certezas dogmáticas, à onipotência do método e à autonomia do jurídico na vida social. O direito deveria ser encontrado na consciência, relegando-se a segundo plano o objetivismo de outrora. Isto suscita uma reflexão acerca dos limites entre o Direito Civil e o Direito Penal, assim como entre o Direito Civil e o Direito Constitucional, de modo que os juristas se voltam ao estudo dos elementos que pertinem a determinado ramo mas que se revelam em outro. Assim é que ocorre a releitura daquilo que estando no texto constitucional diria respeito às matérias de Direito Civil ou Processual Civil, ocorrendo uma constante interpenetração entre todas as disciplinas jurídicas e, de modo específico, entre o Direito Civil e o Direito Constitucional.

O fenômeno da “constitucionalização” do Direito Civil guarda relação com a crise do classicismo jurídico e, portanto, com um romantismo revigorado2, a partir da perspectiva de Nelson Saldanha. O classicismo é caracterizado pelo recurso ao pensamento classificatório e a valorização da análise, pelo que uma tendência analítica do jurista situado nesta zona de influência. O romantismo, por sua vez, não se caracteriza pela identificação do diferente, mas por um favorecimento à igualitarização3. Ou seja, pode-se identificar como reflexo do romantismo no direito a tendência à unificação do tratamento jurídico dispensado em matéria de Direito Público ou de Direito Privado, de modo que é lugar comum atualmente dizer que cada vez mais torna-se dispensável a distinção que se faz entre direito público e direito privado.

Esta tensão que se verifica entre classicismo e romantismo em Direito Civil aproxima-se da relação entre as visões de Direito Civil em gros caractéres ou em petits caractéres4. No Direito Civil em gros caractéres, remete-se às ideias de um Direito Privado reunido em um só bloco, unitário, completo, coerente e global5. Já o Direito Civil em petits caractéres é fragmentário, sem visão de conjunto, sem arquitetura6. Esta última concepção de Direito Civil (en petits caractéres) guarda relação com a teoria dos microssistemas de Direito Privado de Ricardo Luis Lorenzetti, um dos responsáveis pela redação do atual Código Civil e Comercial da Argentina (que foi objeto de excelente análise feita por Otávio Luiz Rodrigues Jr aqui na ConJur)7.

De acordo com o civilista argentino, o surgimento de leis especiais que de certa forma contribuíram para o relativo “esvaziamento” do Código Civil (como é o caso do Código de Defesa do Consumidor, do Estatuto da Criança e do Adolescente, da Lei do Divórcio etc.) produz uma perda da unidade sistemática do Direito Privado (que residia no Código Civil), mas não conduz a uma assistematicidade do Direito Privado, já que estas disciplinas (Direito do Consumidor, Direito da Criança e do Adolescente etc.) devem ser tratados como microssistemas.

Com a descodificação e a constitucionalização do Direito Civil: “O Código é substituído pela constitucionalização do Direito Civil, e o ordenamento codificado pelo sistema de normas fundamentais. A explosão do Código produziu um fracionamento da ordem jurídica, semelhante ao sistema planetário. Criaram-se microssistemas jurídicos que, da mesma forma como os planetas, giram com autonomia própria, sua vida é independente; o Código é como o sol, ilumina-os, colabora em suas vidas, mas já não pode incidir diretamente sobre eles”8.

Por ora, não tecerei críticas a esta tese de Ricardo Lorenzetti; que já foi questionada com brilhantismo por autores de elevada estatura intelectual; a exemplo de Rodrigo Xavier Leonardo9, Bruno de Ávila Borgarelli10, Fernando Leal11 e Lenio Streck12. Outrossim, de acordo com Luís Roberto Barroso (atual ministro do Supremo Tribunal Federal), são estas as principais características do direito a partir de uma visão clássica: a) o recurso à lógica formal; b) a ideia de plenitude do direito; c) a cientificidade do direito; d) a racionalidade da lei e a pretensão de neutralidade na interpretação e aplicação da norma (por meio da subsunção)13.

Tais ideias sofrerão forte oposição dos adeptos do movimento do neoconstitucionalismo, a mais importante expressão deste romantismo revigorado no direito atual. Susanna Pozzollo aponta o uso de certas noções peculiares como caracterizadoras da corrente chamada de “Neoconstitucionalismo”14.

Contudo, é a defesa de certas teses que permite relacioná-los no âmbito desta corrente, quais sejam15: 1) o ordenamento jurídico não se limita às regras: o ordenamento jurídico seria composto por normas jurídicas que não se reduzem às regras, abarcando também os princípios entre as espécies de normas. Os princípios se diferenciariam das regras em razão de certas características: “la dimensión de peso o de importância y la no aplicabilidad del llamado modo del “todo o nada”, según el cual son aplicables al caso concreto solo prima facie”. Em geral, os princípios são vistos como valores morais positivados. Mais uma vez, remeto a consistente crítica feita por Lênio Streck a ideia de que “princípios são valores”16; 2) o recurso a ponderação: os princípios recorrem ao método da ponderação ou balanceamento; de forma que uma hierarquia de valores construída é construída em concreto pelo intérprete, e não em abstrato; pelo que é estruturada em vista do caso analisado e, portanto, pode ser modificada de acordo com as circunstâncias específicas de cada caso. Assim, a relação axiológica se instaura para cada situação específica tomando por base juízos de valor formulados pelo juiz individual17. O “ponderômetro” ou balança imaginária e imaginada, contudo, não é apresentado a fim de demonstrar porque se levou em consideração determinados fatos ou interesses jurídicos (e não outros), e como o resultado foi alcançado18; 3) Centralidade da Constituição: Se a subordinação da lei parece ser uma tese óbvia desde quando se defende a supremacia da constituição; a peculiaridade deste ponto de vista é a atitude quanto à “matéria” ou “substância” da constituição. Com isto se afirma que o escopo da constituição ultrapassa a distribuição e organização dos poderes, apresentando um conteúdo substancial que condiciona a validade das normas infraconstitucionais. A lei, portanto, cede espaço à constituição, e “se converte em um instrumento de mediação entre exigências práticas e exigências constitucionais”19. Uma expansão dos limites da Constituição como esta pode “resultar na perda de autonomia sistêmica do direito constitucional, comprometendo a própria razão de ser da disciplina”20; 4) Juízes versus liberdade do legislador: ao juiz, diante dos instrumentais disponíveis (princípios, ponderação, condicionamento infraconstitucional ao conteúdo substancial da constituição etc.), se imputa uma contínua adequação da legislação aos comandos constitucionais. Se antes o juiz interpretava/aplicava o direito sem considerar os valores pertinentes ao caso em concreto, agora o “juiz deve interpretar o direito à luz das exigências de justiça trazidas pelo caso”.

Destarte, em face do papel assumido pelo juiz neste contexto, ele passaria a desempenhar uma fundamental função enquanto elemento racionalizador do sistema jurídico21. Ao nosso sentir, a grande confiança depositada nos juízes constitui-se em um excessivo e perigoso otimismo, que pode por em xeque os fundamentos da dogmática jurídica contemporânea. Na segunda parte desta coluna, prosseguiremos com as nossas análises sobre a influência da cultura dita “pós-moderna” no direito e porque tal fenômeno guarda relação com a decadência de uma cultura ocidental.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA e UFRJ).


1 SALDANHA, Nelson. Sobre o “Direito Civil Constitucional” (Notas sobre a crise do classicismo jurídico). Revista trimestral de direito civil. – v.9 (janeiro/março 2002), ano 2. – Rio de Janeiro: Padma, p. 190.

2 SALDANHA, Nelson. Sobre o “Direito Civil Constitucional” (Notas sobre a crise do classicismo jurídico). Revista trimestral de direito civil. – v.9 (janeiro/março 2002), ano 2. – Rio de Janeiro: Padma, p. 191.

3 SALDANHA, Nelson. Sobre o “Direito Civil Constitucional” (Notas sobre a crise do classicismo jurídico). Revista trimestral de direito civil. – v.9 (janeiro/março 2002), ano 2. – Rio de Janeiro: Padma, p. 189.

4 De acordo com Grua: “Il y a le droit privé en gros caractères, constitué par le Code civil proprement dit, et le droit privé en petits caractères, fait d´une multitude de textes extérieurs”. (GRUA, François. Le code civil, code résiduel? Revue trimestrielle de droit civil, nº 2 (avril/juin 2005). Paris: Dalloz, p. 253).

5 GRUA, François. Le code civil, code résiduel? Revue trimestrielle de droit civil, nº 2 (avril/juin 2005). Paris: Dalloz, p. 253.

6 GRUA, François. Le code civil, code résiduel? Revue trimestrielle de droit civil, nº 2 (avril/juin 2005). Paris: Dalloz, p. 253.

8 LORENZETTI, Ricardo Luis. A descodificação e a possibilidade de ressistematização do direito civil. In: NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; FIÚZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 221-222.

12 STRECK, Lenio. As várias faces da discricionariedade no Direito Civil brasileiro: o "reaparecimento" do Movimento do Direito Livre em terrae brasilis. Revista de Direito Civil Contemporâneo, a. 3, v. 8 (jul./set. de 2016). São Paulo: RT, p. 37-48.

13 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista diálogo jurídico, ano I, vol. I, nº 6 (setembro de 2001). Salvador: Centro de Atualização Jurídica, p. 09.

14 Este não é um movimento que se possa chamar de unitário, abarcando pensamentos divergentes dentro da denominação, tais como os de Robert Alexy e Ronald Dworkin.

15 POZZOLLO, Susanna. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. Tradução de Josep M. Vilajosana. Doxa, 21-II (1998), p. 339. Disponível em: www.cervantesvirtual.com/portal/DOXA Acesso em: 05 de janeiro de 2010.

16 POZZOLLO, Susanna. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. Tradução de Josep M. Vilajosana. Doxa, 21-II (1998), p. 340. Disponível em: www.cervantesvirtual.com/portal/DOXA Acesso em: 05 de janeiro de 2010.

17 POZZOLLO, Susanna. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. Tradução de Josep M. Vilajosana. Doxa, 21-II (1998), p. 340-341. Disponível em: www.cervantesvirtual.com/portal/DOXA Acesso em: 05 de janeiro de 2010.

18 AMADO, Juan Antonio García. La esencial intercambiabilidad del método ponderativo-subsuntivo y el interpretativo-subsuntivo y las ventajas e inconvenientes de cada uno (Al hilo de la sentencia del Tribunal Supremo, Sala Civil, de 10 de diciembre de 2010). Disponível em: https://www.garciamado.es/2014/06/ponderacion-y-subsuncion-metodos-intercambiables/ Acesso em: 09 de agosto de 2018.

19 POZZOLLO, Susanna. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. Tradução de Josep M. Vilajosana. Doxa, 21-II (1998), p. 341. Disponível em: www.cervantesvirtual.com/portal/DOXA Acesso em: 05 de janeiro de 2010.

20 COSTA FILHO, Venceslau Tavares; ALVES, Pedro de Oliveira. Tribunal Constitucional Federal alemão: decisões anotadas de direitos fundamentais, de Leonardo Martins. Revista de Direito Civil Contemporâneo, a. 4, v. 13 (out.-dez. 2017). São Paulo: RT, p. 530. Disponível em: https://www.academia.edu/36366335/Resenha_da_obra_Tribunal_Constitucional_Federal_alem%C3%A3o_decis%C3%B5es_anotadas_de_direitos_fundamentais_de_Leonardo_Martins Acesso em: 09 de agosto de 2018.

21 POZZOLLO, Susanna. Neoconstitucionalismo y especificidad de la interpretación constitucional. Tradução de Josep M. Vilajosana. Doxa, 21-II (1998), p. 341-342. Disponível em: www.cervantesvirtual.com/portal/DOXA Acesso em: 05 de janeiro de 2010.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco (UPE) e da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), além de diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

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