Ambiente Jurídico

Uso de norma imprópria nas sanções administrativas ambientais

Autor

  • Talden Farias

    é advogado professor associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB.

20 de outubro de 2018, 10h39

Spacca
É sabido que na aplicação de sanções administrativas ambientais muitos órgãos estaduais e municipais de meio ambiente fazem uso do Decreto Federal n. 6.514/2008, o qual dispõe sobre o assunto e estabelece o processo administrativo federal para a apuração dessas infrações. Esse decreto regulamenta o Capítulo VI da Lei n. 9.605/98, que cuida de tal modalidade de infrações e de sanções.

Nada parece impedir que um ente estadual ou federal faça uso de uma norma federal, ainda que se trate de regra infralegal. Com efeito, não há problema em o Estado ou o Município se servir do decreto federal desde que haja expressa previsão legal nesse sentido.

No entanto, não existe a mesma aceitação se esse ente utiliza o decreto federal quando possui disciplina normativa própria sobre o assunto. É que nesse caso haveria um choque entre essa norma e a lei ou o decreto municipal.

Em princípio seriam duas as situações recorrentes: na primeira o ente possui norma específica mas só usa a federal, enquanto que na segunda o ente possui norma específica e ora usa sua norma ora usa a norma federal. Na prática, contudo, não existe tanta diferença entre as duas hipóteses, porque em ambos se verifica ao menos a possibilidade de escolha da ordem jurídica a ser seguida.

Esse fenômeno, que envolve a um só tempo um conflito de competência administrativa e legislativa, tornou-se comum com a descentralização da gestão ambiental iniciado a partir da Resolução n. 237/97 do CONAMA, e depois aprofundado pela Lei Complementar n. 140/2011. De fato, é cada vez maior o número de Municípios a desempenhar as atribuições administrativas nessa matéria, em especial a fiscalização, as sanções administrativas e o licenciamento.

Impende dizer que a discussão é de ordem financeira, uma vez que sob o aspecto formal não existe diferença na aplicação das demais sanções administrativas ambientais, a exemplo de embargo, suspensão, demolição etc. Na verdade, o problema todo são as penas pecuniárias, dado que os valores previstos na legislação federal são em regra bem mais altos do que os da legislação estadual ou municipal. Por exemplo, no decreto federal há multas que chegam a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) e a 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais), respectivamente.

Pois bem. São vários os aspectos a serem observados.

O primeiro é que não parece coerente que a decisão acerca da norma aplicável fique a cargo do agente de fiscalização ou mesmo do gestor do órgão ambiental, já que a esses cabe a execução de políticas públicas e não a deliberação sobre a espécie normativa a ser adotada. Todavia, não se trata de uma questão de razoabilidade ou de juízo de mera conveniência ou oportunidade, pois as implicações jurídicas são inegáveis.

É possível constatar o desrespeito à autonomia política dos entes federativos, valor que foi consagrada pela Constituição Federal de 1988. Se o ente estabeleceu uma norma específica é porque ele quer que a mesma seja levada consideração, sendo vedado ao fiscal ou a quem quer que seja passar por cima disso. Não cabe a ele afrontar a sua própria autonomia, de forma que para escolher um conjunto de normas de outro ente administrativo ele teria de revogar a sua própria norma primeiro.

A separação dos poderes é outro valor fundamental, uma vez que a opção do Poder Legislativo não pode ser menosprezada pelo Poder Executivo. A Administração Pública deve aplicar a lei, não sendo esse um juízo discricionário.

Também se faz presente o desrespeito ao princípio da legalidade, pois a laboração da Administração Pública está vinculada ao que determina a lei. Isso implica dizer que não se pode deixar de aplicar a lei própria em face de um decreto de outro nível federativo.

Argumento de maior relevância, a autonomia política dos entes federativos justifica a prevalência da norma municipal, seja ela lei ou decreto. Já a separação dos poderes e o princípio da legalidade dizem respeito à lei enquanto espécia normativa, independente de ser ela ordinária ou complementar.

Destarte, fica evidente que nada justifica a aplicação de um decreto federal quando o Estado ou o Município dispõem de norma específica sobre o assunto. Isso é ainda mais evidente quando a temática é disciplinada diretamente por lei.

Os entes estaduais e municipais estão mais próximos da população, o que reclama a aplicação do princípio da subsidiariedade. Logo, a presunção legal é que as normas desses entes gozam de maior especialização e legitimidade [1].

De mais a mais, admitir o entendimento contrário significa deixar margem para o agente público escolher a multa mais leve quando quiser ser flexíveis ou a mais pesada quando quiser ser rigoroso, o que abre espaço para injustiças e até para práticas de corrupção. Não deve ocorrer discricionariedade no ato de multar nem no ato de decidir qual referência de multa utilizar.

O que a sociedade espera é que o ente federativo conheça e faça uso do seu arcabouço normativo. E se houver alguma deficiência da norma que o próprio ente federativo a atualize e modifique, pois o que não se pode permitir é a aplicação de norma imprópria nas sanções administrativas ambientais.


[1] AMBIENTAL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AUSÊNCIA DE LICENÇA AMBIENTAL. MULTA. LEI ESTADUAL DE PERNAMBUCO. CORRESPONDENTE AO VALOR DA LICENÇA. AGRAVO NÃO PROVIDO. – Preliminar de ilegitimidade ativa não provida. Conquanto o auto de infração ter sido assinado por representante da empresa, a tipificação da infração é dirigida a esta, motivo pelo qual é parte legítima para propor a presente demanda. – A questão de mérito a ser analisada neste agravo diz respeito à norma legal aplicável à quantificação de multa ambiental aplicada pelo IBAMA, não integrando o objeto da discussão o cabimento de citada penalidade. – A empresa demandante foi multada por funcionar sem a devida licença ambiental, já que sua atividade (fabricação de gesso) é potencialmente poluidora (art. 66, Decreto 6.514/08). – A Constituição Federal determina que em relação à proteção do meio ambiente legislam concorrente a União, os Estados e o Distrito Federal. Os Estados poderão exercer competência legislativa plena quando inerte a União, mas devendo se adequar a uma superveniente norma federal. Ainda no âmbito da competência legislativa concorrente, a União deverá estabelecer normas gerais, enquanto os Estados poderão suplementá-las, ou seja, poderão instituir normas específicas, a fim de adequá-las a realidade regional ou para preencher uma lacuna da legislação federal. – Agiu bem o magistrado a quo ao aplicar, no caso dos autos, Lei do Estado de Pernambuco (nº 12.916/05) que determina de forma um pouco mais específica o valor de multa aplicável aos casos de falta de licenciamento ambiental. – O Decreto federal 6.514/08 determina o valor mínimo e máximo de multa aplicável para os casos de funcionamento de estabelecimento sem a devida licença ambiental entre R$ 500,00 (quinhentos reais) e 10.000.000,00 (dez milhões de reais). Por sua vez, a Lei Estadual estipula três faixas de valores por tipo de infração (infrações leves, graves e gravíssimas), incluindo valor específico para a falta de licenciamento ambiental, motivo pelo qual não há que se falar de incompatibilidade entre as normas federal e estadual. Ressalva deve ser feita apenas quanto ao valor mínimo aplicável às infrações leves que deverá ser de R$ 500,00 (quinhentos reais) e não de R$ 50,00 (cinquenta reais) como estabelecido pela lei estadual. – Agravo de instrumento não provido. (TRF-5 – AGTR: 103813 PE 0127677-22.2009.4.05.0000, Relator: Desembargador Federal Paulo Gadelha, Data de Julgamento: 27/04/2010, Segunda Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário da Justiça Eletrônico – Data: 13/05/2010 – Página: 426 – Ano: 2010).

MULTA AMBIENTAL. Capital. Ação anulatória e repetição do indébito. Poda sem autorização de árvore situada em residência. LM nº 10.365/87. LF nº 9.605/98. DF nº 6.514/08, art. 72. Dupla autuação. 1. Poda de árvore. LM nº 10.365/87. A LM nº 10.365/87, de natureza ambiental, regula a supressão e poda da vegetação arbórea no município de São Paulo; estabelece procedimentos e sanciona a conduta indevida. A lei local prevalece sobre a LF nº 9.605/98 e DF nº 6.514/08, ante o critério da especialidade. Inviabilidade de a administração sancionar aplicar duas multas baseadas nas duas leis, em inaceitável 'bis in idem'. 2. Poda de árvore. LF nº 9.605/98 e DF nº 6.514/08. Ainda que se admitisse a aplicação da lei federal, a mesma especialidade implica no enquadramento da conduta no art. 56 do regulamento (infrações contra a flora), não no art. 72 (infrações contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural). Revogação da Resolução CADES nº 124/08, que assim determinava, pela Resolução CADES nº 154/13. Nulidade da multa aplicada pela Secretaria do Verde e do Meio Ambiente e da inscrição da dívida. 3. Restituição. O município deve restituir ao autor o valor da multa e despesas por ele recolhidos ao erário para evitar o prosseguimento da cobrança. Improcedência. Recurso do autor provido. (…) Poda de árvore. Tipificação. A peculiaridade do caso recomenda o prosseguimento da análise. O juiz pode adaptar o direito (o enquadramento legal) ao fato, se demonstrado; poder-se-ia então manter a autuação lavrada pela Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, mas enquadrada a conduta no art. 56 do DF nº 6.514/98 e reduzida a multa ao ali previsto. /A questão não é tão simples. A LM nº 10.365/87 não é uma lei de simples posturas municipais ou de uso do solo urbano, mas uma lei de proteção ambiental do município; e se a questão foi regulamentada no município, não há razão para que o próprio município aplique as sanções previstas na lei federal. A competência para autuar, se a Subprefeitura (aplicação da lei municipal) ou se a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (aplicação da lei federal), é irrelevante; não se admite a dupla sanção pelo mesmo fato nem a aplicação da lei geral se a lei local disciplina exata e especificamente a conduta praticada. Isso leva à conclusão, aqui formulada 'orbiter dicta', de que sequer a conclusão a que chegou o CADES na 150ª Reunião está correta; pois cabe à Prefeitura aplicar a sanção prevista na LM nº 10.365/87 e não, perpetuando a dualidade, aquela prevista no art. 56 do DF nº 6.514/08. Não são leis que regulem coisas diferentes, o direito de construir e o dever de preservar; são leis que regulam a mesma coisa, a proteção à flora urbana e a necessidade de prévia licença municipal para a poda ou supressão da vegetação arbórea./Daí a conclusão de que as autuações lavradas pela Secretaria Municipal são nulas por erro de enquadramento e pela inaplicação da legislação citada; e porque a conduta foi sancionada pela própria administração da forma correta. (TJ/SP – Apelação n. 0055353-46.2012.8.26.0053, Relator: Desembargador Ricardo Cintra Torres de Carvalho – 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente – Julgamento: 02/10/2014).

Autores

  • é advogado e professor da UFPB, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), doutor em Recursos Naturais (UFCG) e em Direito da Cidade (Uerj). Autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Minerário.

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