Limite Penal

Um jurista de princípios na solidão de nós mesmos

Autor

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel) especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR) mestre (UFPR) doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza") presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória advogado membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP (hoje Projeto 156/2009-PLS) advogado nos processos da "lava jato" em um pool de escritórios que em conjunto definiam teses e estratégias defensivas.

5 de outubro de 2018, 8h00

Spacca
Nesta época, meu pai conheceu um velho professor de Direito que marcaria para sempre a sua vida. Ele morava ao lado do apartamento em que vivia o meu pai. Eram vizinhos ‘de porta’. Não se falavam muito, mas meu pai tinha uma profunda admiração por ele. Depois viria a ser seu aluno em um curso de pós-graduação que o meu pai fez. Foram dois anos de belo aprendizado. Duas aulas por semana, duas horas de aula. O velho professor nunca faltava. Nesse período, aprendeu menos Direito e mais da vida e dos homens. Não que o velho professor não soubesse Direito. É que meu pai se interessava mais pelas outras coisas que o Mestre ensinava. Ele falava com muito carinho desse velho professor. Chamava-o de Mestre e disse a mim, muitas e muitas vezes, que sentia uma enorme saudade dele, das suas orientações, de suas aulas, do seu jeito, de sua coragem, de sua audácia, de sua erudição (que não era falsa, como ele detestava), de sua oratória, de sua simplicidade e do seu amor à família. Eu sentia que ele se emocionava nos momentos em que recordava o Mestre. Os olhos rasavam. Ele dizia que algumas bobagens que fez na vida depois da morte do professor, não as teria feito caso o velho professor vivo estivesse. Ele o ouvia muitíssimo. Era, aliás, um dos poucos que ele atendia. Meu pai não era de ouvir muita gente não. Ele era um sujeito teimoso. (…)”[1]

O querido amigo Rômulo de Andrade Moreira tem um alter ego que se chama Dino Polari, pseudônimo com o qual escreve crônicas para falar, dentre outras coisas, dele mesmo, quase como se fosse no divã.

Reunidas algumas dessas crônicas, resultou a união em um livro (A história de meu pai, outras histórias e outras coisas…), em grande parte dedicado a esses discursos (feitos pela narrativa maravilhosa de um filho), no que poderia ser um divã. O livro deve ser lido por quem quiser aprender sobre a vida, sobre o que é amar, resistir, solidão, amar, melancolia, amizade, amar, princípios, ética, amar, doença, câncer, amar, referência, professor, amar, aluno, colégios, amar, pais, filhos, amar, Direito, Ministério Público, amar, e por aí vai. Enfim, a vida, em boa parte, como ela é, mesmo porque nem o Dino Polari consegue saber e dizer tudo sobre o Rômulo.

Mas o que diz o Dino (que não é tão “dino”(ssauro) assim, o que se pode ver, por exemplo, quando ele fala da sapiência de sua avó…) é imprescindível para se poder saber um pouco mais sobre ele, Rômulo, seus princípios e sua força, seus medos e suas fraquezas. Basta, quem sabe, saber ouvi-lo, como recomenda a ética, em uma das formas como lida em Psicanálise. E, depois, não arriscar grandes assertivas imperativas porque o Dino (que tem dois polos e que se denuncia pelo nome: Polari) é, antes de tudo, ego (alter), e o ego é, por excelência, o lugar do engano, do imaginário, da palavra que encobre o sujeito. Assim, o Dino falou do (ou O?) Rômulo, mas, por evidente, não falou tudo; e naquilo que não falou está um Rômulo do qual não se pode falar, justo porque se não sabe.

Mas o Dino falou; e no que falou mostrou um Rômulo para além daquele extrovertido, falador, brincalhão, inquebrantável e inquebrável. Mostrou um pouco mais do Rômulo introvertido, tímido, sisudo, manso e que rompe, de tanto em tanto, perdendo a paciência com a violência, o arbítrio e todo o mau e o mal. O Dino mostrou, de certa forma, por que ele, Rômulo, só vai até um determinado ponto que, como limite, não admite que se transpasse. Não disse o porquê, embora não seja difícil presumir que o não sabia. Mas, pelo que disse, já serve para se entender a razão pela qual Rômulo, no que se passa o limite ou quando se passa o limite, responde, fala, xinga, grita, esbraveja. Rômulo não suporta que se avilte, que se enxovalhe. Dino mostra, quiçá, que ele (Rômulo) não suporta isso nem de si mesmo; e é uma virtude. Culpa e sofrimento têm muito a dizer com esse lugar; e o segredo, como sabe qualquer jejuno, é aprender a lidar com isso, mesmo porque a vida segue adiante lidando ou não.

No fundo, pelo que mostrou o Dino, Rômulo, de verdade, ama a vida. Eis por que ama os filhos, a mulher, os parentes bons, as freirinhas boas do primeiro colégio, o Direito, o Ministério Público, os amigos verdadeiros, Calmon de Passos… E a lista segue. Tudo gira, nele, em torno desse amor, do apartamento pequeno no subsolo (onde morou), por conta “de uma boa vizinhança” (eis a vida), à liberdade (mais vida): “A liberdade, definitivamente, não é um milagre. Eu não acredito em milagres, nem metaforicamente. Eu acredito, sim, na vida em liberdade, em todos os sentidos: liberdade de pensar, de existir e de viver como se quer, de amar — ou não amar —, de escrever. No sentido anarquista mesmo: libertarismo e libertário. O limite só pode ser o outro. Sem isso não se opera — para quem acredita — o ‘milagre’ da vida”.

Em suma, Rômulo é um homem de princípios. E não tergiversa por eles; muito menos negocia o absurdo. Ao contrário do que podem pensar os insanos em tempos sombrios como os de hoje, isso não é piegas. Ao revés, é de gente assim que se está a sentir falta; de gente de palavra.

Trabalhei o tema dos homens de princípios em um texto que teve muito pouca repercussão e, quem sabe, não tenha sido lido: “O lugar do poder do juiz em ‘Portas Abertas’, de Leonardo Sciascia”[2]. Nele, para analisar o capolavoro de Sciascia, parti de Ronald Dworkin[3]. Dworkin, porém, ajuda a entender o lugar onde o poder (mais especificamente de um juiz, mas poderia ser de qualquer pessoa) se materializa. A matéria é por demais interessante. No Brasil, dentre outros, a tese do pequeno juiz de Sciascia (que absolve um réu acusado de um triplo homicídio porque teria que aplicar a pena de morte e ele — e os jurados — não a admitia) teria apoio no pensamento de Lenio Streck quando, corretamente, realinha o lugar dos princípios[4].

Um homem de princípios, tudo somado, faz deles — os princípios — sua razão de viver, de pensar e de agir.

Eles, como é elementar, não garantem uma plenitude. Afinal, o ser humano é furado por definição, ou seja, é alguém no qual falta; falta essa que, nele, apresenta-se como sua própria diferença. Aqui se aninha, como se sabe, a dignidade da pessoa humana. Pensar e agir por princípios, porém, garante a indispensável coerência. Um homem de princípios, portanto, não é o espelho da plenitude — como se fosse aquele que porta ou carrega uma Verdade —, mas é coerente, porque não podendo acreditar ingenuamente nela (a Verdade), usa os padrões que tem para, em os respeitando, apresentar a mesma solução para situações iguais.

Rômulo está aqui; justo aqui. Quando se percorre seus pareceres e livros é impossível se quedar imune à observação de um lugar-comum, ou seja, aquele que decorre da retidão com a qual trata os casos penais em face, primordialmente, da Constituição da República e das leis. Opina, assim, em todos os casos, a partir dos princípios que o regem; e pelos princípios e regras que regem os casos. Não é, portanto, a sua moral; que a tem, por suposto. É algo mais; que ele leva a sério, muito sério. Isso é o que se espera, em uma democracia, de alguém comprometido com a verdadeira coisa pública e, portanto, que aja de modo previsível, por força da coerência.

Para ser assim, contudo, não é simples. Como parece sintomático, estar aí, nesse lugar, começa, antes de tudo, para quem nele está, pelo reconhecimento de quem, pelo nome (como registro simbólico), como que lhe outorgou a possibilidade de estar lá. Seria, mutatis mutandis, como um filho que, para ser pai (logo, ocupar o lugar de pai), precise reconhecer o lugar (função) de seu pai, sendo ele ou não.

Neste passo, Rômulo, pelo destino (ou o dedo de Deus?), cruzou seu caminho com o de José Joaquim Calmon de Passos, um dos maiores juristas de todos os tempos, da Bahia e do Brasil. Calmon era, de fato, um homem genial; um homem de princípios; um homem de palavra. Como diz Rômulo, um Mestre, com M maiúsculo. Era correto e sério (ele era um homem do seu tempo, neste aspecto) mas também sempre gentil e cordial, até passarem do limite e pisarem onde não deviam, seja lá quem fosse. Sou testemunha de algo assim e que serve para ilustrar o argumento: em um Congresso Brasileiro de Direito Administrativo, em Belo Horizonte, se a memória não falha no primeiro semestre de 1986, após uma brilhante conferência de Mauro Cappelletti (que falava de acesso a Justiça e de como os juízes respondiam conforme a lei), Calmon de Passos pede a palavra e mostra ao professor de Firenze que no Brasil e, particularmente, na Bahia (que ele dizia conhecer melhor), a coisa não era bem assim; e que os julgamentos eram marcados por voluntarismos e influências provenientes dos detentores do poder. Foi aplaudidíssimo. Cappelletti, na resposta, dentre outras coisas, disse não acreditar naquilo que havia dito Calmon o que, de certa forma, mostraria ser sua tese um tanto ingênua; ou algo assim. Passou, portanto, do limite. Mestre Calmon, com a humildade de sempre, pediu a palavra novamente e… Deram! Com muita gentileza, disse que não era homem de mentiras, mas entendia a posição de Cappelletti; e que ela só mostrava que ele, como sói acontecer com os europeus, não entendia nada do Brasil e que, sendo assim, não era recomendável que falasse dele porque pareceria uma tentativa de estelionato ou algo do gênero. O auditório veio abaixo. E Cappelletti veio lhe dizer, depois (eu estava com ele), que ele, Calmon, estava certo.

Calmon, sem embargo de ser com educação e respeito, disse! E disse o que tinha que ser dito, sem mais, nem menos. Por sinal, como fazem os europeus, de um modo geral, como forma de discutir e maneira de melhor tensionar os argumentos e aprofundar as conclusões, coisa que há muito se perdeu no Brasil, mormente em face de um politicamente correto abominável.

Calmon, a Rômulo, é lugar de referência. Dever-se-ia ser possível dizer: em quase todos os sentidos. Isso, de certo modo, significa dizer que Calmon é como se fosse um outro pai, ao qual Rômulo reconheceu o lugar que ocupa e, mesmo sem saber (isso não é coisa que se saiba), justo por conta disso ganhou, ao que tudo indica, o lugar dele, Calmon. A outorga foi feita pelo próprio Mestre, como mostrou Dino Polari: “No primeiro livro que meu pai escreveu, ele tomou coragem e pediu ao Mestre que o prefaciasse. O velho, que não costumava fazê-lo, fê-lo. E o fez muito bonitamente. No final do prefácio, ele escreveu que concluía… ‘asseverando que tudo quanto dito aqui não foi ditado pelo coração, sim pela razão fria e objetiva de um estudioso do Direito que se rejubila quando se dá conta de que, sendo um apaixonado pelo saber que escolheu e alguém consciente de já estar em fim de jornada, pode recompor suas forças com a certeza de que a grande viagem que é a aventura humana prosseguirá, mesmo sem ele, nos que foram seus alunos e hoje já se podem intitular seus mestre’”.

Rômulo, em verdade, lembra Calmon, em tantos e tantos aspectos. É, por assim dizer, o Calmon que está nele, Rômulo. O diagnóstico disso foi feito por um grande amigo e exemplar professor e advogado soteropolitano, Antônio Vieira. Em post em um grupo de WhatsApp no dia 9 de agosto, Antônio Vieira sentenciou: “Fantástica a entrevista que me fez lembrar, para quem teve a oportunidade de ouvir e conhecer, o mestre CALMON. Penso que Romulo, a cada dia que passa, está cada vez mais parecido com o grande CALMON de Passos”[5].

A homenagem a Rômulo é merecida, mormente porque Calmon de Passos é e sempre foi um ícone da luta democrática e contra o arbítrio. E Rômulo é assim. Ambos têm a cara daquilo que a Bahia, por ser singular, produz de melhor, seja pela fulgurante inteligência, seja pela sensibilidade com a terra e, em especial, sua gente, de Castro Alves a Ruy Barbosa, de Calmon de Passos a Rômulo Moreira.

Rômulo, não obstante tudo, é singular e, neste aspecto, é mais que Calmon. Ao ganhar luz própria fez-se grande, estrela de primeira grandeza. E assim, como mostra o Dino, ama tanto os filhos que reconhece o amor da filha por um outro homem, mas é por ela amado como tal. Sofre no pequeno avião que, como UTI, conduziu a esposa para o tratamento em São Paulo; mas está lá em nome de um amor que é só seu. Tenta iludir os filhos de que gosta mais do filho mais novo e que a vida é gostosa mas, com isso, como ato de amor, faz-se tão só um pai normal, tão normal que é logo desmascarado, porque “No fundo meu pai sabia que a vida não tinha nada de gostosa”. No fundo, no fundo, como disse ele (ainda que pela boca do Dino), “O que nos salva mesmo é viver um grande amor!” Essa singularidade, essa coisa só dele, faz com que seja amado como tal. E isso já é o bastante.

Mas essa singularidade, por outro lado, não atrai só amor: atrai ódio também; e inveja; e maledicência. Com frequência entre os pares, na universidade (ambiente acadêmico) e no Ministério Público e, mais largo ainda, no ambiente da Justiça. Naquela/naquele, a liberdade de cátedra, mesmo que não seja respeitada como deveria, funciona como uma barreira a brecar reações mais perniciosas. As críticas, nesse ambiente, de tanto em tanto são ácidas, mas não passam de críticas. Por outro lado, no âmbito da Justiça e, mais particularmente, naquele do Ministério Público, a crítica maledicente vem, com frequência, acompanhada de atitudes vingativas e comunicações de ilícitos inexistentes ou insubsistentes. Quando não passam de meras críticas, normalmente demonstram ódio ou inveja — ou ambas —, e tendem a ficar, no Rômulo, em um lugar que diz com a indiferença. Como diz o Dino, “Não chegam a ser ofensas a mim ou ataques ferozes ao meu trabalho, mas observações incomodadas, digamos assim… (mesmo porque não me sinto por tais referências nem ofendido nem atacado, logo não o são — Freud explica)”.

Fez questão nele, Rômulo, porém, a crítica que lhe lançou uma jovem promotora em um grupo virtual de debates, a qual sentenciou: “ele não tem amigos!” Mostrando maturidade, trabalhou ele bem o problema, como era de se esperar: “Claro que ela é muito jovem para ter poucos (e bons) amigos. E muito jovem também para compreender que o Ministério Público não é lugar para se ter ódio, nada obstante, o ódio ser do homem. Enquanto não resgatarmos esta gênese do Ministério Público, continuaremos como náufragos em busca de uma ilha. Uns sabem que não vão acha-la (são os sem esperança). Outros são os tolos que pensam ter ‘um milhão de amigos’”. Quem recebe uma lição assim, deveria aprendê-la, porque não é sempre que a pode ter.

Por outro lado, quando além do ódio resultam atitudes visivelmente vingativas, as chances de se ter uma punição aumentam, mesmo porque se tem ambiente — como se pode perceber — de confraria. Nele, qualquer motivo é o bastante para se punir. Em uma das vezes que foi punido — sempre por questões menores e inconsistentes —, um dos motivos era que havia tratado com “linguagem chula” um Conselho Nacional e seus integrantes. Ao protestar, pela voz do Dino, Rômulo mostrou que profissional era, assim como a razão pela qual o perseguiam: “Eles têm que inspecionar o meu trabalho. Se, por exemplo, devolvo os processos no prazo legal. Se há algum processo em meu gabinete, de ontem, por exemplo. Se sou corrupto! Nada. A questão não é funcional, é ideológica. Querem me calar! Jamais conseguirão. Nunca me calarei!”.

É desse Rômulo que trabalha muito e seriamente. Seus pareceres e textos se configuram como um documento histórico, pleno de lições jurídicas e de vida, que deveria ser lido por todos e, em especial, pelos membros do Ministério Público. Um trabalho assim honra o Ministério Público, que um dia haverá de reconhecer a importância dele. Como disse ele mesmo, é “importante deixar algo escrito na prática. Como se fora uma prova”. Pois a prova está aí. Para a história.


[1] POLARI, Dino. A história de meu pai, outras histórias e outras coisas… Salvador: EGBA, 2018, pp. 21-2.
[2] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson. O lugar do poder do juiz em “Portas Abertas”, de Leonardo Sciascia. In STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam. (Org.). Os modelos de juiz: ensaios de direito e literatura. São Paulo: Atlas, 2015, pp. 211-225.
[3] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 59.
[4] STECK, Lenio Luiz. Direito não pode ser corrigido por valores morais. Entrevista a Pedro Canário. São Paulo: ConJur, 2/4/2012. <http://www.conjur.com.br/2012-abr-02/valores-morais-nao-podem-nortear-principios-juridicos-lenio-streck>
[5] <https://m.facebook.com/story.php? story_fbid=812715362268239&id=174128659460249>

Autores

  • é advogado, professor titular de Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. É ainda membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009.

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