Deontologia do Direito

"Direito não pode ser corrigido por valores morais"

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2 de abril de 2012, 17h57

Qual a validade, como prova, da menção a fatos de terceiros em telefonema grampeado? Levando em consideração a prerrogativa de foro de parlamentares, uma escuta pode ser perpetrada pela Polícia mesmo que o investigado esteja conversando com um senador da República? As questões vieram à tona com a investigação aberta pelo Supremo Tribunal Federal contra o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), depois que o Ministério Público Federal pediu inquérito para apurar sua ligação com o bicheiro Carlinhos Cachoeira. 

Criminalistas ouvidos pela ConJur na semana passada foram unânimes: a menção a fatos em grampos de terceiro não tem qualquer validade como prova e não pode motivar uma ação penal. No máximo, pode servir de indício para uma investigação posterior. Caso a Polícia Federal soubesse que o interlocutor das conversas era um senador, deveria encaminhar imediatamente a investigação ao tribunal competente — senadores têm foro no STF.

A opinião é compartilhada inclusive por membros do Ministério Público. Lênio Streck, procurador de Justiça do Rio Grande do Sul, corrobora a análise dos advogados e afirma que, em tese, deve ser aplicada ao caso a teoria dos frutos da árvore envenenada, ou seja, se os meios de colher provas foram ilegais, as provas também o são.

Streck respondeu a questionamento da ConJur sobre o tema durante o fim de semana. O procurador e professor de Direito Constitucional trouxe o debate para a Teoria do Direito e discutiu os rumos que a disciplina deve caminhar no Brasil.

Para ele, podem ser feitas duas interpretações em relação ao caso. A primeira é a de que os princípios do Direito são teleológicos, ou relacionados a valores morais, que evoluem conforme a sociedade. “Nessa perspectiva, os princípios seriam fatores de abertura da legalidade formal, para possibilitarem a busca por uma Justiça material”, explica.

Mas essa tese não o agrada, pois, diz, fragiliza a autonomia do Direito, já que ninguém seria capaz de definir o que são valores morais. “Essa palavra, ‘valores’, sofre de uma doença chamada ‘anemia significativa’. Qualquer jurista coloca um sentido que lhe convier. O Direito não pode ser ‘corrigido’ por argumentos políticos ou morais. Ou por argumentos ‘morais-políticos’”.

A tese que agrada a Streck é a de que os princípios jurídicos são deontológicos, ou seja, “um padrão decisório que se constroi historicamente e que gera um dever de obediência nos momentos posteriores”. Dessa forma, os princípios passam a ser determinações fixas, decorrentes do momento em que foram estabelecidas, mas nunca flexíveis conforme as transformações de valores morais de uma sociedade.

Leia abaixo a entrevista com o procurador Lênio Streck.

ConJur – As provas colhidas pela Polícia Federal contra o senador Demóstenes Torres têm validade jurídica?
Lênio Luiz Streck – Trata-se de um caso que, por enquanto, apenas podemos falar absolutamente em tese. De todo modo, antes de qualquer resposta ou opinião sobre assunto tão candente, penso ser necessário delimitar o que a comunidade jurídica de terrae brasilis quer. Mas, para isso, temos que fazer algumas reflexões mais aprofundadas. Explico: historicamente, questões ou casos como esses são "resolvidos" a partir do "clamor público". As provas vêm a publico e o público "julga" de forma antecipada. Desse modo, uma vez que a população pré-julga a causa, em um segundo momento não mais importam perguntas como: de que modo essas provas, com aspas ou sem aspas, vieram à lume? Isso era permitido? Podiam essas provas (ou indícios ou qualquer outro nome que se dê a essas informações) serem publicizadas? E, ratio final? As provas, com ou sem aspas, foram colhidas de acordo com a Constituição? O problema é que, por vezes, já nada importa. Por vezes, o veredicto está dado. Aliás – e até porque há sempre 50% de probabilidades – , em muitos casos, o "veredicto está correto".

ConJur – Correto?
Lênio Streck – Correto a partir daquilo que se pensa no plano de raciocínios finalísticos. Ou seja, suponha-se que se arranque uma informação de alguém à base de tortura. O meio é ilícito. Totalmente ilícito. Mas a informação “arrancada” pode estar “correta”. Só que os caminhos do Direito podem não ser assim. Na verdade, não devem ser assim. Eis o dilema. Explico: disse, há pouco, que historicamente os grandes casos têm sido conduzidos assim, midiaticamente. Não condeno a imprensa, porque ela ocupa um lugar legitimamente conquistado. Entretanto, o que queremos? Parece que todos queremos uma sociedade com menos "malfeitos", menos corrupção, menos impunidade. Mas, para isso, não devemos fazer raciocínios ou julgamentos "teleologicamente". Claro que essa é a minha opinião, que segue as teorias que eu trabalho em meus livros (Verdade e Consenso, por exemplo).

ConJur – A que se refere quando fala em “julgar teleologicamente”?
Lênio Streck – Vou tentar deixar isso mais claro. A partir da teoria da Constituição e da Teoria do Direito – e sem Teoria não há direito –, podemos dizer que há duas formas de tratar as e das garantias constitucionais. Todas as garantias, como sabemos, estão consubstanciadas em preceitos e princípios constitucionais, onde se encaixa, evidentemente, a garantia de que ninguém será prejudicado, processado etc. a partir de provas obtidas de forma não prevista em lei ou não permitidas pela Constituição. Ou seja, falo da proibição de provas ilícitas e do seu corolário adotado pelos experts, doutrina e Tribunais Superiores (lembremos da operação castelo de Areia). Podemos gostar ou não, mas a tradição aponta para esse caminho.

ConJur – E quais são essas formas?
Lênio Streck – Dizia que há dois modos. O primeiro está sustentado na tese de que os princípios são teleológicos. Ou seja, por essa tese, princípios seriam valores. Esses valores "guiariam" o órgão judicante no momento de prolatar a decisão. Nessa perspectiva, os princípios seriam fatores de abertura da legalidade formal, para possibilitarem a busca por uma justiça material. Não me agrada essa tese, porque ela torna a autonomia do direito um tanto quanto frágil e faz com que os princípios sejam o elemento principal dessa fragilização. Mais do que isto, ninguém sabe dizer o que são esses “valores”. Essa palavra “valores” sofre de uma doença chamada “anemia significativa”. Qualquer jurista coloca um sentido que lhe convier. Ora, se os princípios vieram para robustecer o Direito, sua transformação em “valores” provoca, exatamente, o enfraquecimento dessa autonomia. O Direito não pode ser “corrigido” por argumentos políticos ou morais. Ou por argumentos “morais-políticos”.

ConJur – Por quê a tese “valorativa” não lhe agrada?
Lênio Streck – Porque, por ela, os princípios constitucionais não são vistos de forma deontológica. Este é o ponto. Penso que a melhor forma de se encarar o problema dos princípios é conferindo a eles o caráter de “fiadores da autonomia do direito".

ConJur – E a deontologia seria o segundo modo de tratar as garantias constitucionais?
Lênio Streck – Para entender a primeira tese (de que os princípios são teleológicos), é necessário entender exatamente a segunda concepção, que é a de que os princípios são deontológicos. Essa tese é sustentada, entre outros, por Jürgen Habermas. Ele sabe – pois concorda expressamente com Dworkin nesse ponto – que os princípios recebem sua carga deontológica em razão de sua manifestação histórico-cultural no seio de uma comunidade política. Vale dizer: não é uma regra que oferece um “teste de pedigree” que confere validade jurídica a um princípio, mas, sim, um modo específico de a comunidade política se conduzir. Trata-se de um padrão decisório que se constroi historicamente e que gera um dever de obediência nos momentos posteriores. Isto é, os princípíos funcionam pelo código lícito-ilícito. Nessa perspectiva, princípios são normas stricto sensu. São um “dever ser”. Não são meramente conselhos ou mandados de otimização. Ou seja, princípios não são valores. Dizendo de outro modo: tratar princípios teleologicamente é submeter direitos e garantias a um cálculo de custo e benefício, dispensando a sua obrigatoriedade e condicionando-os a pontos de vista parciais. Consequentemente, se analisarmos o case [provas colhidas contra Demóstenes] em questão de forma "teleológica", corremos o risco de aceitar respostas finalísticas, onde "os fins buscados (acabar com a impunidade, eficácia no combate à corrupção)" podem justificar os meios. 

ConJur – É um risco ou uma certeza?
Lênio Streck – Veja, eu não estou dizendo que aqueles que defendem a tese de que os princípios são teleológicos aceitem esse tipo de resultado. Longe disso. Digo apenas que corremos sempre esse risco. Para mim, a melhor resposta, que se coaduna com o Estado Democrático de Direito e com as doutrinas mais sofisticadas, é a de que a aplicação do Direito sempre deve ser feita a partir de raciocínios deontológicos, naquilo, evidentemente, que se entende por aplicação principiológica. Essa mesma tese anteriormente explicitada, ou seja, de que há dois modos de entender os princípios, também pode ser explicada do seguinte modo: os tribunais devem decidir por políticas ou por princípios? Os tribunais devem decidir por raciocínios morais políticos ou por princípios?

ConJur – E qual a resposta?
Lênio Streck – Penso que a melhor resposta é dada por Ronald Dworkin, que sustenta que, não importa a causa, boa ou ruim, ou se o crime é grave ou não, a aplicação sempre deve ser por princípio. Na hermenêutica filosófica também pensamos desse modo. Logo, se a melhor resposta é a de que os princípios são deontológicos e que devemos julgar por princípios, devemos pagar (e cobrar) esse preço. Qual é o preço? O preço é o de, em sendo o caso, devemos contrariar a maioria. Aliás, a Constituição é um remédio contra maiorias. Ela só tem sentido sendo lida desse modo. Direitos fundamentais só adquirem sentido quando postos à prova, no seu limite. Talvez nas piores violações é que se mede o coeficiente democrático de um país.

ConJur – E como isso se aplica ao caso Demóstenes?
Lênio Streck – Resumindo tudo isso: se em um processo a prova for, efetivamente, ilícita na sua origem, aplica-se a tese dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree theory). Essa tese tem guarida no Supremo Tribunal Federal (por exemplo, a Ação penal 307, DF) e é, por assim dizer, antipática. Mas ela é autenticamente contramajoritária. E nisso reside a sua força. Tem também a própria Lei das Interceptações Telefônicas, que não deve ser deixada de lado. Quando falamos em contramajoritarismo, devemos nos lembrar da metáfora de Ulysses e as correntes, da Odisséia. A sobrevivência de Ulysses reside na relevante circunstância de que os marinheiros não devem obedecer outra ordem que não a primeira: “amarrem-me ao mastro”. Porque, se obedecerem a uma segunda ordem do tipo “desamarrem-me”, estarão quebrando o pacto e, consequentemente, jogando Ulysses nos braços da morte, porque ele não resistirá ao “canto das sereias”. Esse “canto” é o das maiorias. Esse “Canto” é um “canto teleológico”.

ConJur – Por qua a tese da proibição de provas ilícitas é antipática?
Lênio Streck – Porque, na ampla maioria dos casos, a sua aplicação beneficiará aqueles que, em um dado momento histórico, a população considera culpado. Pior: na verdade, pensando teleologicamente, são, sim, culpados. Entretanto, é preciso saber que o Direito tem especificidades. Foi assim que a tese nasceu e se fortaleceu nos Estados Unidos. Quantos casos graves, inclusive (ou principalmente) de assassinatos foram anulados pela Suprema Corte americana com base nessa tese principiológica?  A primeira vez que essa tese foi usada, com esse nome, foi no caso  Nardone vs. United States, em 1939, embora haja indicações de usos anteriores, sem esse epíteto.

ConJur – E o caso Demóstenes é um desses?
Lênio Streck – Como disse, falando em tese e sem maior preocupação em entrar na discussão de um caso do qual ainda pouco se conhece, é preciso refletir acerca dos caminhos que a Teoria do Direito nos fornece para examinar casos difíceis que envolvam, de um lado, "o produto tonitroante de indícios contra alguém" e o exame. Do outro lado, do modo pelo qual esse "produto" foi alcançado. Em vez de uma resposta, devolvo a pergunta: devemos pensar, em tais casos (ou, sempre, em Direito) de forma teleológica ou deontológica? De que forma cientistas como Dworkin, Habermas, Gadamer (esse já morreu), MacCormick (para falar apenas de alguns) responderiam a esse tipo de hard case? E como nossos tribunais respondem ou responderão? Teleologicamente ou deontologicamente?

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