Tribuna da Defensoria

A Defensoria Pública e o atendimento aos refugiados venezuelanos

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2 de outubro de 2018, 8h00

A grave crise econômica da Venezuela, decorrente de falhas sistemáticas do governo autoritário de Nicolás Maduro, tem causado violações generalizadas de direitos humanos[1] e proporções elevadas de fluxos migratórios por toda a América Latina. De acordo com a ONU, 2,3 milhões de venezuelanos deixaram o país em dois anos (547 mil registraram entrada no Equador, 442 mil na Colômbia, 400 mil no Peru e 128 mil cruzaram a fronteira brasileira), número bem superior ao 1,8 milhão de imigrantes que entraram na União Europeia nos últimos quatro anos[2].

Longe de ser o país que mais vem recebendo os venezuelanos, inúmeros conflitos e incidentes xenofóbicos têm ocorrido em Roraima. Além disso, o trabalho análogo ao de escravo, a discriminação salarial pela origem, a mendicância de crianças nas ruas sem acesso à escolarização, o abuso sexual de mulheres contratadas como empregadas domésticas e a prostituição constituem uma afronta à dignidade desses imigrantes.

E não só isso, houve até pedido do estado de Roraima ao STF para fechamento temporário da fronteira com a Venezuela, em contramão com os princípios constitucionais de prevalência dos direitos humanos, cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e concessão de asilo político (artigo 4º, II, IX e X), com a Declaração Universal de Direitos Humanos (artigo 14.1), o Pacto de San José da Costa Rica (artigo 22, itens 7 e 8) e a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados da ONU de 1951[3].

Decerto que essa unidade da federação não possui a infraestrutura adequada para o êxodo venezuelano, o que gerou uma situação de calamidade social, com a superlotação de postos de saúde em razão de surtos de sarampo e demais equipamentos públicos. O governo federal, então, interveio com a liberação de verbas emergenciais ao estado de Roraima, ações humanitárias para atender aos venezuelanos e desafogar os serviços de saúde e estímulo para transferência (marcada pelas incertezas) a outros estados.

A chegada em massa de venezuelanos escancara uma realidade que observamos pela última vez com a chegada de imigrantes europeus em fuga durante a Segunda Guerra Mundial: o despreparo, o desconhecimento e o preconceito sobre quem é a pessoa refugiada. O que leva essas pessoas a deixarem seu país, sua cultura e arriscarem-se em países muitas vezes hostis à simples presença, como tem ocorrido, em parte, no Brasil?

Segundo relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), o ano de 2017 foi o maior em número de pedidos de refúgio, desconsiderando a chegada dos venezuelanos e dos haitianos. Foram 13.639 pedidos no ano passado; 6.287 em 2016; 13.383 em 2015; e 11.405 em 2014. No total, 33.866 pessoas solicitaram o reconhecimento de refugiado no Brasil em 2017. Os venezuelanos representam mais da metade dos pedidos, com 17.865 solicitações. Na sequência estão os cubanos (2.373), os haitianos (2.362) e os angolanos (2.036). Os estados com mais pedidos de refúgio são Roraima (15.955), São Paulo (9.591) e Amazonas (2.864), segundo dados da Polícia Federal[4].

Diante do crescente aumento da demanda, o Estado brasileiro não pode olvidar da observância à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para evitar futura responsabilização internacional. Dentre as opiniões consultivas, destacamos os números 18, 21 e 25. A primeira trata da situação jurídica do trabalhador imigrante indocumentado, destacando a necessidade da igualdade de tratamento com os nacionais, independentemente da regularidade migratória. A segunda trata dos direitos e garantias do grupo hipervulnerável das crianças no contexto da migração e proteção internacional. A terceira trata do asilo[5] do artigo 22.7 do Pacto de San José, incluindo nesta expressão ambígua o Estatuto dos Refugiados da ONU e determinando que o princípio da não devolução seja exigível por qualquer estrangeiro em busca de proteção internacional.

Em relação à jurisdição contenciosa, o caso Família Pacheco Tineo vs. Bolívia[6] é paradigmático ao reforçar o non-refoulement como norma consuetudinária do Direito Internacional dos refugiados. O caso Meninas Yean e Bosico vs. República Dominicana, envolvendo a situação de apatridia de crianças sem registro e impedidas do exercício de direitos civis, também afeta diretamente os refugiados, já que muitos acabam tornando-se apátridas de fato pela ausência de documentação (confiscada e destruída por exploradores, extraviada ou deixada no país de origem em decorrência da fuga). Ao contrário do previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 100, parágrafo único, inciso I), as crianças são tratadas apenas como parte de uma família e não como sujeito de direitos, de modo que sua condição de refugiada não é tratada com a especificidade que sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento requer, bem como situações do reconhecimento do status de refugiado[7] para crianças acabam desconsideradas.

O fato é que a proteção aos refugiados merece cada vez mais a atenção do Estado brasileiro, por meio de seus órgãos constitucionais incumbidos de promoção dos direitos humanos, incluindo-se as Defensorias Públicas, e de equipamentos públicos de atendimento de todos os entes federativos, não bastando o improviso estatal para solucionar emergências gradualmente mais presentes em nosso cotidiano. Sem prejuízo de outras nacionalidades, hoje majoritariamente são os venezuelanos; ontem foram os haitianos (que receberam visto de residência por razões humanitárias) e os sírios; e amanhã outros povos que deverão ser recebidos com o devido aparelhamento e fluxo de atendimento estatal.

Em novembro de 2014, a Defensoria Pública paulista firmou um Acordo de Cooperação com a Acnur para: 1) envidar os esforços necessários à identificação dos refugiados que careçam de assistência jurídica gratuita de acordo com as suas necessidades de proteção; 2) promover reuniões de capacitação e conhecimento dos defensores públicos sobre o tema concernentes ao direito internacional dos refugiados e apátridas; 3) formalizar a participação de defensores públicos no Comitê Estadual para Refugiados de São Paulo; 4) traçar estratégias de mobilização por meio de publicações, eventos, treinamentos e seminários; e 5) avançar na análise de possíveis ações administrativas e judiciais em favor dos apátridas para exercício dos direitos.

Atualmente, a Defensoria Pública de São Paulo participa do Comitê Estadual para Refugiado, assim como do atendimento no Centro de Integração de Cidadania do Imigrante do governo bandeirante. Além disso, a instituição possui um fluxo de atendimento com a Caritas Arquidiocesana de São Paulo para o encaminhamento de demandas de refugiados e apátridas.

Entretanto, a Defensoria Pública deve continuar fomentando o seu potencial de atendimento aos refugiados, tornando mais eficiente o serviço e atraindo intensamente os seus destinatários, considerando a sua condição peculiar de pessoa refugiada e, portanto, merecedora de atenção especializada. Muitos refugiados nem sequer conhecem a instituição. Para além da função institucional da Defensora Pública de orientação jurídica, a Lei 13.445/2017 determina a obrigatoriedade da intimação à Defensoria da União sobre situações envolvendo refugiados, a fim de atuarem na defesa de seus interesses.

Recentemente, a Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública de São Paulo recebeu um grupo de representantes de imigrantes e refugiados venezuelanos com as seguintes demandas: a necessidade de uma política institucional para o atendimento de imigrantes e refugiados; a inclusão do Centro de Atendimento Multidisciplinar (CAM) nessa relação; o desenvolvimento de uma cartilha especial para imigrantes e refugiados e cursos de formação de defensores populares; formação de uma rede de imigrantes e refugiados que atue próximo à Defensoria; e a atenção a temas, como abrigo, trabalho escravo, lei de imigrantes, documentação para o trabalho etc.

Na ocasião, foi criado um grupo de trabalho, com a participação da Ouvidoria-Geral e de defensores públicos, visando à elaboração de um protocolo especial de atendimento aos refugiados e apátridas, baseado nos seguintes eixos: idioma como principal barreira, especialização (demandas diversas da população em situação de rua), atenção à documentação (ou sua ausência) para o exercício de direitos civis e necessidade de centralização dos atendimentos.

Para o aprimoramento, a concentração do atendimento da Defensoria Pública da União (DPU) e da Defensoria Pública do Estado em um só local, mediante a celebração de um convênio ou acordo, é imprescindível à eficiência do serviço público, já que as atribuições são as mais diversas possíveis[8].

Importante, também, a participação do CAM, com o atendimento de psicólogos e assistentes sociais, possibilitando que a rede de serviços públicos mapeados pelo órgão seja acionada.

A parceria com ONGs reconhecidas e comprometidas com a temática, como a Caritas Arquidiocesana, permitirá um maior compartilhamento de know-how nesta área específica do Direito e até mesmo um aprendizado diário dos defensores públicos acerca da rotina e necessidade dos refugiados.

O acordo de cooperação com a Acnur deve, ainda, ser mais observado no tocante à capacitação dos defensores públicos, além das estratégias de mobilização por meio de publicações, eventos, treinamentos e seminários, permitindo uma maior familiaridade no dia a dia do atendimento.

O idioma é o maior obstáculo do acesso à Justiça a ser suplantado (poucos são os imigrantes que procuram o nosso serviço sem o conhecimento da língua). Atualmente, há apenas ofícios encaminhados pela Caritas Arquidiocesana, indicando a demanda do refugiado, que normalmente fala inglês, árabe, francês ou espanhol. Diante disso, a celebração de convênios com organizações tradutoras é indispensável aos atendimentos da Defensoria Pública, sem embargo do já existente programa de capacitação das línguas estrangeiras aos defensores públicos.

Nada obstante, cumprindo a função institucional de educação em direitos, também é papel da Defensoria Pública conscientizar e informar à população sobre quem são os refugiados e quais são as suas condições peculiares, a fim de, amainadas as resistências iniciais pelo conhecimento, possa a sociedade civil participar da integração da população refugiada.

Diante da realidade apresentada e da necessidade urgente de garantia de direitos à população refugiada, essas e outras medidas serão abordadas pelo protocolo especial do grupo de trabalho, estimulando e auxiliando a política institucional de atendimento especializado aos imigrantes e refugiados, público vulnerável cada vez mais presente em nosso cotidiano.


[1] O artigo 1º da Lei 9.474/97 estabeleceu as hipóteses de refúgio: o inciso I adota o conceito clássico do indivíduo que devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; o inciso II elenca a situação dos apátridas nas mesmas circunstâncias do inciso anterior; o inciso III, por sua vez, amplia o conceito de refugiado devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, nos termos da Declaração de Cartagena da OEA de 1984, estando a maioria dos venezuelanos inseridos neste dispositivo. O artigo 2º, por fim, estende os efeitos da condição dos refugiados ao cônjuge, aos ascendentes e descendentes, assim como aos demais membros do grupo familiar que do refugiado dependerem economicamente, desde que se encontrem em território nacional.
[2] Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/08/23/exodo-de-venezuelanos-ja-e-maior-que-numero-de-refugiados-que-tentam-chegar-a-europa.ghtml. Acesso em 24/9/2018.
[3] A ministra Rosa Weber indeferiu a tutela provisória na Ação Civil Originária 3.121/RR, proibindo o fechamento da fronteira com a Venezuela. Nesse sentido, Mahlke: “[…] Prática que é empreendida pelos Estados é a ‘border closure’, literalmente o ‘fechamento das fronteiras’ ao fluxo em massa de refugiados. A possibilidade de ‘cruzar a fronteira’ do Estado e buscar abrigo em outro país é característica essencial ao conceito de refúgio e necessária para que se possa garantir o direito a ele. […] quando um Estado opta por fechar suas fronteiras, expondo os refugiados à continuidade da perseguição, pode colocar o direito ao refúgio em conflito direto com a concretização da assistência humanitária. […] Com essa medida extrema, os Estados viram as costas para o Direito Internacional dos Refugiados, agindo em nome de sua soberania e interesses locais” (MAHLKE, Helisane. Direito Internacional dos Refugiados – novo paradigma jurídico. Belo Horizonte: Arraes, 2017, p. 89-90).
[4] Disponível em: http://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/dados-sobre-refugio-no-brasil/. Acesso em 24/9/2018.
[5] Sobre os conceitos de asilo e refúgio, ver: PEIXOTO, Leonardo Scofano Damasceno. Papel de Defensoria na defesa dos direitos dos refugiados e apátridas. ConJur, 14/3/2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-mar-14/tribuna-defensoria-papel-defensoria-defesa-direitos-refugiados-apatridas. Acesso em 26/9/2018.
[6] O caso envolveu uma família peruana que fugiu de seu país em razão de perseguição política do governo, situação em que o senhor Pacheco fora acusado de terrorismo. Em 1996, a família buscou refúgio na Bolívia, obtendo o status de refugiada inicialmente, mas depois foi coagida a assinar um pedido de repatriação voluntária. A família, então, solicitou refúgio no Chile, onde teve o seu pedido concedido. Em 2001, a família retornou à Bolívia, onde teve seus documentos retidos pelo serviço de imigração, com detenção arbitrária. A nova solicitação de refúgio à Bolívia fora denegada, e a família, deportada ao Peru.
[7] ACNUR. Diretrizes sobre proteção internacional n. 08: Solicitações de Refúgio apresentadas por Crianças, nos termos dos Artigos 1(A)2 e 1(F) da Convenção de 1951 e/ou do Protocolo de 1967 relativos ao Estatuto dos Refugiados. 22 dez. 2009. Disponível em: http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/BDL/2014/9747.pdf?view=1. Acesso em 30/9/2018.
[8] A DPU atua nos casos relativos ao procedimento de solicitação de refúgio, benefícios assistenciais do governo federal, negativa de carteira de trabalho provisória etc. Destaca-se a participação da DPU em reuniões do Conare com direito a voz e nas entrevistas dos refugiados nos procedimentos de solicitação. Registre-se a propositura de três ações coletivas para: (i) garantir as prerrogativas de vista, intimação pessoal e prazo em dobro nos procedimentos de solicitação de refúgio; (ii) emissão de carteira de trabalho e (iii) motivação das decisões de indeferimento dos pedidos de refúgio. As Defensorias Públicas estaduais, por sua vez, têm a atribuição em possíveis matérias criminal, cível, infância e juventude (por exemplo, vaga em creche de criança refugiada sem documento, criança em situação de risco), família (por exemplo, guarda pelo responsável refugiado, mas sem documentos da criança refugiada), Fazenda Pública (por exemplo, medicamentos e cirurgias), inserção em programas habitacionais da prefeitura municipal etc. Vide PEIXOTO. Ob. Cit., 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-mar-14/tribuna-defensoria-papel-defensoria-defesa-direitos-refugiados-apatridas. Acesso em 26/9/2018.

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