Tribuna da Defensoria

Papel de Defensoria na defesa dos direitos dos refugiados e apátridas

Autor

  • Leonardo Scofano Damasceno Peixoto

    é defensor público do estado de São Paulo pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal) doutor e mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP.

14 de março de 2017, 12h00

Recentemente, a presença dos refugiados é cada vez mais frequente na mídia e no cotidiano internacional e local, não podendo ser ignorada pela comunidade jurídica na promoção e defesa dos direitos humanos dessa população vulnerável. [1]

O problema para definição da condição jurídica de refugiado (diferente de asilo político) [2] iniciou na Primeira Guerra Mundial, mas tomou grandes dimensões durante a Segunda Guerra Mundial, quando foi criada a Administração das Nações Unidas para Socorro e Reconstrução. Em 1946, para tratar dos refugiados pós-guerra, foi formada a Organização Internacional dos Refugiados. Em 1951, no âmbito do Secretariado da ONU, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) foi constituído para monitorar o cumprimento da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951.

A Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e o seu Protocolo de 1967, que ampliou os aspectos temporal (proteção dos refugiados após 1º janeiro de 1951) e geográfico (a proteção extrapolou o território europeu para todo o mundo), foram instrumentos incorporados ao Brasil, respectivamente, em 1960 e 1972.

A Lei 9474/97, decorrente do I Programa Nacional de Direitos Humanos de 1996, estabeleceu as hipóteses de refúgio em seu artigo 1º. O inciso I reconhece como refugiado todo indivíduo que devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país. O inciso II alberga a situação dos apátridas nas mesmas circunstâncias do inciso anterior. O inciso III amplia o conceito de refugiado devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, seguindo a Declaração de Cartagena da OEA de 1984. O artigo 2º, por sua vez, estende os efeitos da condição dos refugiados ao cônjuge, aos ascendentes e descendentes, assim como aos demais membros do grupo familiar que do refugiado dependerem economicamente, desde que se encontrem em território nacional.

No tocante ao inciso II do artigo 1º, os apátridas ou heimatlos são pessoas sem nacionalidade em decorrência de limbo normativo, perda de nacionalidade [3] ou pelo fato de não terem nascido em lugar nenhum [4]. A Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 também foi incorporada pelo ordenamento brasileiro em 2002, estabelecendo o pleno exercício dos direitos civis, a expedição de documentos de identidade e facilitando, na medida do possível, a naturalização.

No Brasil, de acordo com o relatório de 2016 do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão do Ministério da Justiça, as solicitações de refúgio cresceram 2.868% nos últimos cinco anos. Passaram de 966, em 2010, para 28.670, em 2015. Até 2010, foram reconhecidos 3.904 refugiados. Em abril de 2016, o total chegou a 8.863, o que representa aumento de 127% no acumulado de refugiados reconhecidos, incluindo reassentados. O relatório mostra que os sírios formam a maior comunidade de refugiados reconhecidos no Brasil. Eles somam 2.298, e são seguidos pelos angolanos (1.420), colombianos (1.100), congoleses (968) e palestinos (376). Ao todo são 79 nacionalidades presentes no Brasil.[5][6]

De acordo com o Acnur, em estudo de 2014, a distribuição geográfica das solicitações de refúgio nas Regiões brasileiras compreende: 25% no Norte, 7% no Centro-Oeste, 1% no Nordeste, 31% no Sudeste e 35% no Sul. [7]

O procedimento de solicitação de refúgio tem caráter vinculante (se o indivíduo cumprir os requisitos convencionais e legais para o reconhecimento da condição de refugiado) e declaratório. O procedimento corre perante o Conare, composto, ainda, pelo Ministério de Relações Exteriores, Ministério do Trabalho, Ministério da Educação, Ministério da Saúde, Polícia Federal, por um representante de ONG dedicada às atividades de assistência e proteção de refugiados no país (no caso, a Caritas Arquidiocesana) e pelo Acnur (com direito a voz, sem voto).

O primeiro contato do solicitante de refúgio com um órgão brasileiro deveria ser com a Polícia Federal, mas, na prática, tal fato ocorre na Caritas Arquidiocesana pelo desconhecimento das formalidades legais e pelo temor da Polícia Federal. A Caritas faz, então, o atendimento inicial e encaminha o solicitante à Polícia Federal.

A Lei 9474/97 estipula como instrumentalização inicial o termo de declaração a ser lavrado na Polícia Federal, contendo as razões da solicitação de refúgio, as circunstâncias de entrada no Brasil e os dados pessoais básicos. O termo serve como documento inicial até o recebimento do Protocolo Provisório, já que a maioria dos refugiados chega sem documento.

O Protocolo Provisório servirá de base legal para a estada do solicitante até a decisão final, para a expedição de carteira de trabalho provisória e para o exercício pleno dos direitos civis. Ademais, passa a ser o documento de identidade do solicitante (posteriormente, se for reconhecida a sua condição de refugiado, deverá ser expedido o RNE). Quando há menores no grupo familiar, estes são incorporados no documento dos pais ou responsáveis (artigo 2º da Lei 9474/97).

Após, o solicitante passa por uma entrevista com um representante do Conare e um posterior parecer. A decisão de reconhecer ou não a condição de refugiado compete ao Conare, cabendo recurso ao Ministro da Justiça. Caso reconhecida a condição de refugiado, o indivíduo terá a sua residência permanente, bem como expedido o RNE. Caso negativa, “ficará o solicitante sujeito à legislação de estrangeiros, não devendo ocorrer sua transferência para o seu país de nacionalidade ou de residência habitual, enquanto permanecerem as circunstâncias que põem em risco sua vida, integridade física e liberdade” (artigo 32 da Lei 9474/97). [8]

Nos termos do artigo 134, caput da CRFB, a Defensoria Pública tem a função de promoção dos direitos humanos, ou seja, deve atuar em defesa dos refugiados e apátridas.

A Defensoria Pública da União (DPU) atua nos casos relativos ao procedimento de solicitação de refúgio, benefícios assistenciais, negativa de carteira de trabalho provisória etc. Destaca-se a participação da DPU em reuniões do Conare com direito a voz desde 2012 e nas entrevistas dos refugiados nos procedimentos de solicitação. Não se pode olvidar da propositura de três ações coletivas da DPU para: (i) garantir as prerrogativas de vista, intimação pessoal e prazo em dobro nos procedimentos de solicitação de refúgio; (ii) emissão de carteira de trabalho e (ii) motivação das decisões de indeferimento dos pedidos de refúgio.

As Defensorias Públicas dos Estados, por sua vez, têm a atribuição em possíveis matérias criminal, cível, infância e juventude (por exemplo, vaga em creche de criança refugiada sem documento, criança em situação de risco), família (por exemplo, guarda pelo responsável refugiado, mas sem documentos da criança refugiada), Fazenda Pública (por exemplo, medicamentos) etc.

Importante frisar que a atuação das Defensorias Públicas independe da existência de documentos dos refugiados, conforme autoriza o artigo 43 da Lei 9474/97. [9]

Em reforço de suas atribuições constitucionais, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo firmou um Acordo de Cooperação (novembro de 2014) com o Acnur para: (i) envidar os esforços necessários à identificação dos refugiados que careçam de assistência jurídica gratuita de acordo com as suas necessidades de proteção; (ii) promover reuniões de capacitação e conhecimento dos defensores públicos sobre o tema concernentes ao direito internacional dos refugiados e apátridas; (iii) formalizar a participação de defensores públicos no Comitê Estadual para Refugiados de São Paulo; (iv) traçar estratégias de mobilização por meio de publicações, eventos, treinamentos e seminários; e (v) avançar na análise de possíveis ações administrativas e judiciais em favor dos apátridas para exercício dos direitos.

A Defensoria paulista participa, ainda, destacadamente do Centro de Integração de Cidadania do Imigrante do governo bandeirante, atendendo à crescente demanda detectada pelos comitês de enfrentamento ao tráfico de pessoas, combate ao trabalho escravo e atenção a refugiados.

Para o contínuo aprimoramento dos atendimentos aos refugiados e apátridas, seria recomendável a criação de um fluxo das Defensorias Públicas com a Caritas Arquidiocesana (instituição que normalmente recebe de início os imigrantes), com o encaminhamento por ofício, constando já as informações em língua portuguesa (sem prejuízo de as Defensorias também providenciarem tradutores), para facilitar o atendimento da triagem e a tomada das devidas providências de imediato.

Por fim, “(…) a proteção internacional dos direitos humanos é como o mito de Sísifo, uma tarefa que não tem fim. É como estar constantemente empurrando uma rocha até o alto de uma montanha, a qual volta a cair e volta a ser empurrada acima. Entre avanços e retrocessos, se desenvolve o trabalho de proteção” (Alfredo López Álvarez v. Honduras, CIDH em 01.02.2006, trecho do voto de Cançado Trindade, § 31).


[1] Segundo o relatório anual Global Trends, que registra o deslocamento forçado ao redor do mundo com base em dados dos governos, de agências parceiras e do próprio Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), aponta um total de 65,3 milhões de pessoas deslocadas por guerras e conflitos até o final de 2015. Esse número compreende 21,3 milhões de refugiados ao redor do mundo, 3,2 milhões de solicitantes de refúgio e 40,8 milhões deslocados que continuam dentro de seus países. A Síria (com 4,9 milhões de refugiados), o Afeganistão (com 2,7 milhões) e a Somália (com 1,1 milhão) totalizam mais da metade dos refugiados sob o mandato do ACNUR. Informações disponíveis em: http://www.acnur.org/portugues/recursos/estatisticas/. Acesso em 12.03.2017.

[2] Etimologicamente, asilo vem do grego asylon, que significa refúgio, local de amparo, proteção e abrigo. O asilo e o refúgio têm a mesma finalidade de proteção da vida, liberdade e integridade física. Dispensam a reciprocidade dos Estados e excluem a possibilidade de extradição (non-refoulement). Ambos permitem o exercício pleno dos direitos civis com a utilização de documentos de identidade, de viagem e carteira de trabalho provisória. Nos países do hemisfério norte, o asilo e o refúgio são expressões sinônimas, diferentemente da América Latina. O asilo tem previsão no artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 22 do Pacto de San José e artigo 4º, X da CRFB. Diversamente do refúgio, o asilo é um instituto de origem antiga (vide Trilogia Tebana de Sófocles, em que Rei Édipo pediu asilo ao descobrir que havia assassinado seu próprio pai e tinha como esposa sua própria mãe. Diante da situação de expatriado a seu próprio pedido, solicitou asilo a Teseu, Rei de Atenas, tratando-o com dignidade e igualdade), e surge do instinto de conservação própria do ser humano. Na Era Moderna, a Constituição Francesa de 1793, em seu artigo 120, concedia asilo político aos estrangeiros exilados de sua pátria. Como dito acima, o asilo possui particularidades na América Latina, decorrentes de instabilidades políticas e constantes revoluções e golpes de Estado. Inúmeras convenções ocorreram no continente, tais como a Convenção sobre o Asilo Político de Havana de 1928, a Convenção sobre o Asilo Político de Montevidéu de 1933, o Tratado sobre Asilo e Refúgio Político de Montevidéu de 1939, o Tratado sobre Direito Penal Internacional de Montevidéu de 1940 e a Convenção sobre Asilo Territorial de Caracas de 1954. No asilo político (ato soberano do Estado que não se sujeita a organismos internacionais), o indivíduo é vítima de perseguição individual e efetiva por motivos políticos, sendo muito comum a concessão a personalidades notórias. No Brasil, o processo é submetido ao Ministério de Relações Exteriores para pronunciamento, sendo a decisão final proferida pelo Ministro da Justiça.

[3] A Segunda Guerra Mundial engendrou uma multidão de refugiados em toda a Europa. O Estado nazista aplicou, sistematicamente, a política de supressão da nacionalidade alemã a grupos minoritários, sobretudo a pessoas consideradas de origem judaica. Logo após a guerra, Hannah Arendt chamou a atenção para a novidade perversa desse abuso, mostrando como a privação de nacionalidade fazia das vítimas pessoas excluídas de toda proteção jurídica do mundo (In: As origens do Totalitarismo de Arendt). Ao contrário do que se supunha no século XVIII, mostrou ela, os direitos humanos não são protegidos independentemente da nacionalidade ou cidadania. O asilado político deixa um quadro de proteção nacional para encontrar outro. Mas aquele que foi despojado de sua nacionalidade, sem ser opositor político, pode não encontrar nenhum Estado disposto a recebê-lo: ele simplesmente deixa de ser considerado uma pessoa humana. Numa fórmula célebre, Arendt concluiu que a essência dos direitos humanos é o direito a ter direitos (COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 245). A própria Arendt, de origem judaica, foi vítima do regime nazista ao perder a nacionalidade alemã em 1937, o que a tornou apátrida até a obtenção da nacionalidade norte-americana em 1951.

[4] Como ocorreu com o jogador de futebol francês, Benzema, que nasceu em mar internacional quando os pais saíam da Argélia para a França, obtendo a cidadania francesa apenas em 2005.

[5] Informações disponíveis em: http://www.acnur.org/portugues/recursos/estatisticas/. Acesso em 12.03.2017.

[6] Apesar de haver 48.371 solicitações de refúgio pelos haitianos até 20 de março de 2016, os seus pedidos são encaminhados ao Conselho Nacional de Imigração, que emite vistos de residência permanente por razões humanitárias desde o terremoto 2010. Isso significa que os haitianos não são contabilizados nos dados estatísticos de reconhecimento de refúgio pelo Comitê Nacional para Refugiados (CONARE). Informações disponíveis em: http://www.acnur.org/fileadmin/scripts/doc.php?file=fileadmin/Documentos/portugues/Estatisticas/Sistema_de_Refugio_brasileiro_-_Refugio_em_numeros_-_05_05_2016. Acesso em 12.03.2017.

[8] Nos casos em que o CONARE não reconhecer a condição de refugiado da Lei 9474/97 a um apátrida, a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas deverá ser aplicada, sob pena de redução do solicitante à condição de coisa e de violação à dignidade humana (In Sentença no processo nº 2009.84.00.006570-0, Adrimana Buyoya Abizim X União Federal, 18.03.2010, juiz Edilson Pereira Nobre Jr.).

[9] "Art. 43. No exercício de seus direitos e deveres, a condição atípica dos refugiados deverá ser considerada quando da necessidade da apresentação de documentos emitidos por seus países de origem ou por suas representações diplomáticas e consulares".

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