Direito do Agronegócio

A indenização de soqueiras de cana-de-açúcar na jurisprudência do TJ-SP

Autores

  • Flavia Trentini

    é professora associada do Departamento de Direito Privado e de Processo Civil e do programa de mestrado da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e livre docente em Direito Agrário pela FDRP-USP com estágio pós-doutoral pela Scuola Superiore Sant'Anna di Studi Universitari e Perfezionamento (SSSUP Itália) e em Administração/Economia das Organizações (FEA/USP).

  • Gabriel Fernandes Khayat

    é advogado e mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP).

23 de novembro de 2018, 7h00

A análise dessa semana envolve o pretenso direito à indenização pelas soqueiras de cana-de-açúcar[1] deixadas pelo arrendatário ou parceiro-produtor no imóvel rural. Por diversas razões (inadimplemento, denúncia contratual, exercício direito de retomada, etc.), os contratos de parceria e arrendamento são extintos durante o ciclo da cana-de-açúcar, de modo que os produtores perdem soqueiras produtivas em benefício do proprietário.

Deste modo, o parceiro-produtor e arrendatário recorrem ao Judiciário para reivindicar a indenização pelas raízes deixadas no imóvel rural. Em geral, a argumentação utilizada se dá sob a alegação de que as soqueiras seriam benfeitorias, nos termos do artigo 95, inciso VII, do Estatuto da Terra[2] e do artigo. 25 do Decreto Regulamentador 59.566/66[3].

Muito embora haja poucos julgados a respeito da matéria no Tribunal de Justiça de São Paulo, nota-se que a partir de 2017 há uma tendência de aumento de acórdãos enfrentando a questão:

  Total Descarte Selecionados Determina
indenização
Não determina a indenização
2010 0 0 0 0 0
2011 0 0 0 0 0
2012 1 1 0 0 0
2013 4 2 2 0 2
2014 1 1 0 0 0
2015 1 0 1 0 1
2016 2 1 1 0 1
2017 4 1 3 0 3
2018 10 2 8 1 [4] 7
Total 23 8 15 1 14 [5]

Em todos os julgados selecionados, foi proferido o entendimento de que as soqueiras não são benfeitorias, mas mero ativo biológico essencial para a lavoura de cana de açúcar, e que por isso não podem ser indenizados, como se pode verificar do recente acórdão proferido em 27/03/2018:

Rescisão contratual c.c. despejo e reconvenção. Contrato de parceria agrícola. Sentença de procedência da ação e improcedência da reconvenção. Diferimento de recolhimento do preparo recursal ao final. Cerceamento de defesa. Não ocorrência. Mora no pagamento das cotas de participação previstas em contrato. Ausência de direito à indenização por benfeitorias e de retenção ou mesmo previsão contratual quanto à compensação futura. Possibilidade de apuração do preço pela via da liquidação, segundo termos do contrato. Medida apta a minorar os prejuízos suportados pelos parceiros outorgantes. Resolução que decorre do inadimplemento. Soqueiras que não integram conceito de benfeitorias. Componente do cultivo. Majoração dos honorários. Recurso não provido, com observação. O fato de estar a empresa em recuperação, por si só, não implica em direito à gratuidade. (…) (TJSP, Apelação 1000407-36.2017.8.26.0311, Des. Rel. Kioitsi Chicut, DJ 27/03/2018).Em todos os julgados selecionados, foi proferido o entendimento de que as soqueiras não são benfeitorias, mas mero ativo biológico essencial para a lavoura de cana de açúcar, e que por isso não podem ser indenizados, como se pode verificar do recente acórdão proferido em 27/03/2018:

Mesmo os pedidos de indenização fundamentados na recuperação dos investimentos específicos (artigo 473, parágrafo único, do Código Civil[6]) são afastados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, eis que raramente os contratos de arrendamento e/ou parceria são extintos em razão de resilição unilateral:

PARCERIA AGRÍCOLA CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO C/C REVISÃO CONTRATUAL AÇÃO DE DESPEJO POR FALTA DE PAGAMENTO AÇÕES CONEXAS JULGADAS EM CONJUNTO ADEQUAÇÃO DO CONTRATO À ÁREA EFETIVAMENTE CULTIVÁVEL REVISÃO DESCABIDA INEXISTÊNCIA DE PROVA DOCUMENTAL A RESPEITO DA IMPOSSIBILIDADE DE AMPLIAÇÃO DA ÁREA, CONFORME PREVISTO EM CONTRATO MANUTENÇÃO DO CONTRATO PARA AMORTIZAÇÃO DOS INVESTIMENTOS ART. 473, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO CIVIL, INAPLICÁVEL NA HIPÓTESE DE RESOLUÇÃO POR INADIMPLEMENTO INDENIZAÇÃO POR BENFEITORIAS CONSISTENTES NAS SOQUEIRAS REMANESCENTES NO TERRENO DESCABIMENTO. – Recurso desprovido. (TJSP, Apelação 0002765-21.2012.8.26.0390, Des. Rel. Edgard Rosa, DJ 09/04/2015)

Ainda que se considere que as soqueiras são acessões, a sua indenização só seria devida em caso de plantação de boa-fé na forma do artigo 1.255, do Código Civil[7], de modo que a extinção do contrato em razão do decurso do tempo ou pelo inadimplemento do produtor são fatos que afastam a existência de boa-fé:

Parceria agrícola. Ação de indenização. Plantações. Acessões. Soqueiras de cana-de-açúcar deixadas na propriedade. Programação do replantio considerando o término do prazo contratual. Risco da atividade. Indenização indevida. Sentença mantida. Recurso desprovido. (TJSP, Apelação 0003719-77.2002.8.26.0597, Des. Rel. Cesar Lacerda, DJ 25/06/2013)

Embora o Tribunal de Justiça de São Paulo tenha proferido decisões acertadas, o fato é que as raízes produtivas deixadas no imóvel poderão ser utilizadas pelo proprietário, o que, em certa medida, seria um aproveitamento indevido dos recursos investidos pelo produtor.

Diante desta situação, talvez uma alternativa possível para viabilizar a indenização pelas soqueiras seja a formulação de instrumentos contratuais com cláusula contratual expressa neste sentido, podendo, inclusive, ressaltar este direito para as hipóteses de inadimplemento do contrato por parte do parceiro-produtor ou arrendatário.


[1] “Após o corte (mecânico ou manual) da cana-planta, permanecem no solo as socas ou soqueiras de cana-de-açúcar. Os colmos industrializáveis devem ser cortados o mais próximo possível da superfície do solo, restando as suas bases, que permanecem também ligadas ao sistema radicular formado pela cana-planta.” (SILVA, João Paulo Nunes da; SILVA, Maria Regina Nunes da. Noções da cultura da cana-de-açúcar. Inhumas: IFG; Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2012. p. 44. Disponível em: << http://estudio01.proj.ufsm.br/cadernos/ifgo/tecnico_acucar_alcool/nocoes_cultura_cana_acucar.pdf>>. Acesso em: 20. nov. 2018).

[2] Art. 95. Quanto ao arrendamento rural, observar-se-ão os seguintes princípios:
(…)
VIII – o arrendatário, ao termo do contrato, tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis; será indenizado das benfeitorias voluptuárias quando autorizadas pelo proprietário do solo; e, enquanto o arrendatário não for indenizado das benfeitorias necessárias e úteis, poderá permanecer no imóvel, no uso e gozo das vantagens por ele oferecidas, nos termos do contrato de arrendamento e das disposições do inciso I deste artigo;

[3] Art. 25. O arrendatário, no término do contrato, terá direito á indenização das benfeitorias necessárias e úteis. Quanto às voluptuárias, somente será indenizado se sua construção fôr expressamente autorizada pelo arrendador.
§1º Enquanto o arrendatário não fôr indenizado das benfeitorias necessárias e úteis, poderá reter o imóvel em seu poder, no uso e gôzo das vantagens por êle oferecidas, nos têrmos do contrato de arrendamento (arts. 95, VIII do Estatuto da Terra e 516 do Código Civil).
§ 2º Quando as benfeitorias necessárias ou úteis forem feitas às expensas do arrendador dando lugar a aumento nos rendimentos da gleba, terá êle direito a uma elevação proporcional da renda, e não serão indenizáveis ao fim do contrato, salvo estipulação em contrário.

[4] A decisão não foi propriamente favorável à indenização, mas não afastou o pedido de imediato, apenas consignando que eventual ressarcimento pelas soqueiras deve ser deduzido em ação própria: APELAÇÃO – AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL CUMULADA COM COBRANÇA – CONTRATOS DE PARCERIA AGRÍCOLA E COMPRA E VENDA DE CANA – Revelia das rés – Inadimplemento de obrigação de pagamento mensal demonstrada – Rescisão de rigor – Necessidade de considerar, na apuração do saldo contratual, o ajustamento final de contas, de acordo com o percentual da produção pertencente aos proprietários – Pedido de indenização das soqueiras que deve ser deduzido em ação própria – Redução proporcional da multa de rigor – Recurso provido em parte. (TJSP, Apelação 0002340-51.2015.8.26.0531, Des. Rel. Luis Fernando Nishi, 32ª Câmara de Direito Privado, DJ 05/04/2018)

[5] Apelação 0000489-50.2010.8.26.0531; Apelação 0003719-77.2002.8.26.0597; Apelação 0002765-21.2012.8.26.0390; Apelação 0001325-28.2014.8.26.0484; Apelação 0000512-76.2015.8.26.0383; Apelação 0004046-39.2010.8.26.0242; Apelação 0001798-06.2011.8.26.0553; Apelação 1001292-50.2017.8.26.0311; Apelação 1001048-02.2017.8.26.0383; Apelação 1000395-41.2016.8.26.0607; Apelação 1000170-02.2017.8.26.0311; Apelação 1000328-57.2017.8.26.0311; Apelação 1000407-36.2017.8.26.0311; Apelação 1000475-83.2017.8.26.0311.

[6] Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.

 [7] Art. 1.255. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boa-fé, terá direito a indenização.

Parágrafo único. Se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo.

Autores

  • é professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto. Doutora em Direito pela USP, com pós-doutorado em Administração/Economia das Organizações (FEA/USP) e pela Scuola Universitaria Superiore Sant’anna (Itália). Doutora USP (2006) Livre-Docente (2018). Tem experiência na área de Direito Privado, com ênfase em Direito Agroambiental.

  • é advogado, graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, e mestrando na mesma instituição.

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