Limite Penal

Por que tem sido tão difícil cumprir a lei
no Brasil?

Autor

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel) especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR) mestre (UFPR) doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza") presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória advogado membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP (hoje Projeto 156/2009-PLS) advogado nos processos da "lava jato" em um pool de escritórios que em conjunto definiam teses e estratégias defensivas.

2 de novembro de 2018, 8h00

Spacca
Só se dá conselho a quem o quer, mas se impõe uma lei mesmo a quem não a deseja. Para concluir, o direito do conselheiro é anulado pela vontade daquele a quem ele aconselha; mas o direito do legislador não se revoga segundo o prazer daquele a quem se impõe a lei.”
(HOBBES, Thomas. Do cidadão. 3ª ed., Trad. de Renato Janine Ribeiro, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 216)

Como se sabe, o próprio Hobbes definiu a lei como “a ordem daquela pessoa — seja um indivíduo, seja uma assembleia — cujo preceito contém em si a causa da obediência”; e redefiniu a ordem como “um preceito no qual a causa de minha obediência reside na vontade de quem assim ordena” (ob. cit., p. 215). Hobbes e aqueles que forjaram a modernidade sabiam que todos deviam estar submetidos à lei, na forma do contrato social. A matéria não era nova e já se atribuía a Marco Tulio Cícero a submissão à lei para se ter liberdade: “omnes legum servi sumus ut liberi esse possimus” (“para que possamos ser livres, somos escravos da lei”).

A sumissão à lei, portanto, sempre foi matéria fora de cogitação, mormente na modernidade. Quando muito, discutia-se se era possível “criar” a lei diante das suas fissuras e in bonam partem. Tratava-se do tema nas rubricas dos programas das faculdades de Direito referentes às lacunas da lei e, de regra, na visão tradicional, sempre foi vetado, máxime se se tratasse de omissão, algo que desde sempre recomendou a intervenção do Poder Legislativo, de um modo geral.

Em suma, todos, sem exceção, pessoas físicas e jurídicas (mais particularmente as de Direito Público, por seus órgãos), em face da Constituição e das leis infraconstitucionais (aqui expresso todo o ordenamento não constitucional), estão submetidos a elas.

Isso, por elementar, projeta o óbvio: a generalidade gera estabilidade e garante a segurança jurídica. Eis, então, a força do “nullum crimen nulla poena sine praevia lege”, assim como do “nulla poena sine judicio” e do “nulla poena sine judice” que, por si sós, tornam despiciendas maiores explicações.

Na prática, no Brasil de hoje, não tem sido assim. O esgarçamento propositado da tecitura da lei, por seus preceitos, tem imposto, sobretudo pelos órgãos estatais detentores de poder nesta direção, possibilidades hermenêuticas e “criadoras” antes inimagináveis. Assim, sob o manto da exegese (possível), tem-se, de maneira absolutamente inconstitucional, produzido “preceitos legais” e, por outro lado, resultados interpretativos que não cabem nos preceitos. Isso é inaceitável e os atos são desviantes. Por sorte, nem todos são assim e um número considerável segue não abrindo mão das leis.

Afinal, com tais atos desviantes, vem-se gerando uma grande instabilidade e, por consequência, imensa insegurança jurídica. Os advogados criminalistas sabem do que se trata porque, vivenciando diuturnamente um processo penal inquisitorial, já não garantem a si e aos seus clientes os direitos e garantias que a lei prevê. No fundo, não há chance de democracia e, em especial, de democracia processual, se a situação seguir assim.

Usa-se, para tanto — em geral — o que se tem chamado de americanização à brasileira, ou seja, de leis “importadas”, propositadamente, pelo que se percebe, sem completude, e interpretadas a partir do common law, como se fosse possível misturar os sistemas jurídicos. Unidade, coerência e completude (Bobbio) do ordenamento se esvaem; cada um faz o que quer; diz o que quer (Lenio Streck).

O resultado está à evidência, com novos “tempos sombrios”, como diagnosticou Hannah Arendt (Homens em tempos sombrios. Trad. de Denise Bottman, São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 7 e ss), e serve agora com precisão: “Tudo era suficientemente real na medida em que ocorreu publicamente; nada havia de secreto ou misterioso sobre isso. E no entanto não era em absoluto visível para todos, nem foi tão fácil percebê-lo; pois, no momento mesmo em que a catástrofe surpreendeu a tudo e a todos, foi recoberta, não por realidades, mas pela fala e pela algaravia de duplo sentido, muitíssimo eficiente, de praticamente todos os representantes oficiais que, sem interrupção e em muitas variantes engenhosas, explicavam os fatos desagradáveis e justificavam as preocupações”.

Autores

  • Brave

    é advogado, professor titular de Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR. É ainda membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009.

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