Defesa da liberdade

Leia sustentação oral do advogado José Roberto Batochio em defesa de Lula no STF

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24 de março de 2018, 15h18

Spacca

A tese de defesa do advogado do ex-presidente Lula, José Roberto Batochio, apresentada na última quinta-feira (22/3), no Supremo Tribunal Federal, durante o julgamento do HC preventivo contra a prisão antecipada do político, chamou atenção. Na fala, Batochio criticou a onda de punitivismo e autoritarismo a que o Brasil se submeteu. Os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli chamaram a sustentação de histórica. 

Veja a transcrição da sustentação oral de Batochio:

"Senhores ministros, os jornais de ontem de todo o planeta publicaram a prisão do ex-presidente Nicolas Sarkozy, da França. Esta prisão teria ocorrido para que os agentes do Estado, encarregados da investigação criminal, pudessem ouvir aquele que foi por duas vezes presidente da República — que no passado foi modelar, e, através do iluminismo, exportou liberdade e democracia para o mundo — para que ele pudesse ser ouvido em um inquérito, numa indagação que versava sobre recursos de contribuição de campanha.

Dei-me, então, conta de que esta maré montante de autoritarismo que se hospeda em determinado setores da burocracia estável do Estado não é um fenômeno que ocorre apenas em território brasileiro. Preocupantemente, isto está sucedendo em todo o planeta.  

Na França não se pode conhecer o conteúdo das investigações nem o investigado e nem os seus representantes. Na Itália, o processo penal está sofrendo um recrudescimento como nunca antes visto. Isto me preocupa porque a continuarem as coisas como vão, eu não sei qual é o futuro que nos aguarda. Se ele for assim, confesso aos senhores, que eu não tenho nenhum interesse em conhecê-lo porque, como disse José Bonifácio, a liberdade e os princípios libertários são uma coisa que não se perde se não com a vida. É impossível viver fora de um sistema que não seja um sistema de liberdades.

Inspirado por este acontecimento de ontem, decidi começar essa peroração trazendo a vossa excelência as palavras ditas por Chrétien Guillaume de Lamoignon de Malesherbes, que foi um grande jurista francês e advogado de Luís XVI no julgamento que o conduziu à bastilha e à guilhotina. Tinha sido ministro do rei e foi o seu advogado, sabia que ia ter de enfrentar a opinião pública e os jacobinos sedentos de sangue e punição a qualquer preço. Ele começou a defesa de Luís XVI, perante a corte francesa, dizendo o seguinte: “Trago à convenção a verdade e a minha cabeça. Poderão dispor da segunda, mas só depois de ouvir a primeira” [o ministro citou a fala originalmente em francês]. Eu aqui trago a vossa excelência também duas coisas. São dois preceitos do nosso ordenamento jurídico democrático.

Um é o artigo 5º inciso 57 da carta política e o outro é o artigo 283 do nosso Código de Processo Penal. Eles estão sob ameaça de mortificação e extinção.Trago também, como segunda coisa, a verdade que preciso dizer sem peias, sem freios, sem receios, e vossas excelências poderão, depois de ouvir, matar ou não esses preceitos democráticos que aqui estou a defender na tarde de hoje.

Qual é a origem deste preceito constitucional que instituiu entre nós a presunção da não culpabilidade ou a presunção da inocência? Em uma conversa com o eminente ministro Sepúlvela Pertence, ainda na noite passada, nos lembramos de que esse princípio constitucional que nós conseguimos introduzir na nossa lei máxima tem origem na legislação eleitoral. Porque a ditadura militar, o autoritarismo que nós vivemos em um passado não muito remoto, considerava fator impeditivo de elegibilidade — de ser sujeito ativo eleitoralmente — aquele que tivesse contra si uma denúncia recebida.

Vejam, vossas excelências, a simetria. Quando, na Constituinte de 87, na Constituição de 88, nós escrevemos o plexo de direitos que compõem o capítulo dos direitos e garantias individuais e coletivos, nós procuramos positivar no texto nobre da mais alta hierarquia legislativa do nosso país essas garantias para que nós pudéssemos ter um instrumental necessário para repelir as investidas do autoritarismo, vestisse ele verde-oliva ou envergasse a cor negra da asa da graúna.

De onde vier será repelido, porque nós brasileiros não aceitamos viver sob o tacão autoritário de quem quer que seja. E, por essa razão, é que nós escrevemos a carta política que antes do trânsito em julgado nenhum cidadão pode ser considerado culpado. Isto significa que aconteceram grandes discussões a respeito sobre se isso eliminaria as prisões, as custódias cautelares, as custódias temporárias e etc. Mas, não. Não há incompatibilidade.

Há incompatibilidade em pretender-se dar início à execução de uma pena encontrada numa sentença que não se tornou imutável. Esta é a discussão que aqui se faz. Não só pela dicção do artigo 5º, parágrafo 57, da Constituição, mas também pelo artigo 383 do nosso Código de Processo Penal que espelhadamente reflete esse dispositivo constitucional.

E o que é que nós temos nesta impetração de hoje, em que há uma certa volúpia em encarcerar um ex-presidente da República? Não que o presidente da República seja um cidadão diferente de qualquer outro, não é, ele não está acima da lei. Ninguém pode estar acima da lei, mas ninguém pode ser subtraído à sua proteção. Ninguém pode ser retirado da proteção do ordenamento jurídico.

E o que é que nós temos aqui? Nós temos aqui uma decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que confirmou decisão condenatória proferida em 1ºgrau e que dispôs expressamente o seguinte: de acordo com a Súmula 122 desta corte regional, esgotada a jurisdição em série de revisão neste tribunal regional, expeça-se ordem de prisão e oficie-se o juiz com base nesta Súmula 122.

E o que diz essa súmula? Ela não diz o que se encontrou aqui nesta Suprema Corte, que em determinado casos, antes do trânsito em julgado há possibilidade do início da execução da pena. Não! Essa Súmula 122 é inconstitucional, senhores ministros, porque ela diz que é obrigatório o início da execução da pena. Coisa que contraria frontalmente a Constituição e o artigo 383 do CPP, e que contraria a decisão tomada aqui nessa casa que apenas acenou com a possibilidade.

Vossas excelências, proponho eu que deveriam declarar inconstitucional essa súmula. Não só pelo que ela contraria da Constituição, no sentido de dar início à execução da pena, mas porque ela transforma esse início da execução em obrigatório, contra a letra da constituição.

Quando eu vejo, senhores ministros, os tribunais — e peço vênia para dizer isso com o mais elevado respeito — entrarem a legislar, eu sinto uma frustração enorme. Eu sinto a sensação de eu perdi anos na Câmara dos Deputados quando fui parlamentar, a trabalhar em uma coisa inútil, porque as leis que nós elaboramos lá são substituídas por exegeses que as mortificam e que, às vezes, têm o desplante de contrariá-las, substituindo-as por mirabolâncias exegéticas que fazem revirar no túmulo o senhor Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu, tal o grau do grau da sem cerimônia com que se invadem atribuições dos outros poderes para atender a não sei que inclinações. A voz das ruas? Mas a voz das ruas pertencem às ruas. Quem tem que manter a mão no pulso da sociedade das ruas não é o poder judiciário, é o parlamento. São os políticos que têm que captar os anseios e os batimentos da população e da turba, por que não dizer, e interpretá-los e transformá-los em normas.

Não é dado ao poder judiciário — e digo isso como brasileiro — nem daqui e nem de nenhum lugar do mundo, entrar a legislar para atender a este ou aquele pragmatismo, a esta ou aquela conveniência social de ocasião.

Senhores, eu pergunto como seria possível nós denegarmos esta ordem de habeas corpus. Está caracterizado o constrangimento ilegal em potência iminente. Tem dada marcada. A prisão está marcada para o dia 26 de março. Foi a data em que se marcou o julgamento dos embargos de declaração e já está decidido: julgados os embargos de declaração, esgotou-se a jurisdição, mandado de prisão nos termos da súmula 122.

Agora, eu pergunto a vossas excelências, se nós temos na casa duas ações diretas de constitucionalidade, de que é relator o eminente ministro Marco Aurélio, e se este Plenário declarar a constitucionalidade do artigo 383 do CPP, como é que nós vamos justificar a prisão de um ex-presidente da República por um esquito, uma vacilação? Por que esse açodamento em prender? por que esta volúpia em encarcerar? O que justifica isso se não a maré montante da violência da autoridade, se não a maré montante da volúpia do encarceramento?

Três anos atrás, em um evento da Ordem dos Advogados do Brasil, nós já tínhamos dito isso: se o judiciário não entender pela ciência, pela razão, pela racionalidade, que o encarceramento em massa é uma política desastrosa, vai ter que engolir essa realidade pela necessidade econômica  que a superpopulação carcerária acarreta. Nós não podemos querer resolver todos os problemas.

Agradeço e peço que seja concedida a ordem para o efeito de se determinar que se aguarde pelo menos o julgamento das duas ações direta de constitucionalidade, se não for aguardar o trânsito em julgado. Muito obrigado".

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