Opinião

Diz o ministro: nego, porque conceder é obedecer à literalidade da Constituição!

Autores

  • Martonio Mont'Alverne Barreto Lima

    é doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt/M professor titular da Universidade de Fortaleza e procurador do município de Fortaleza.

  • Marcelo Cattoni

    é professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre e doutor em Direito pela UFMG pós-doutorado com bolsa da Capes em Teoria do Direito pela Universidade de Roma III e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (1D).

12 de março de 2018, 10h00

No julgamento do Habeas Corpus 434.766, de 6.3.2018 (HC do ex-presidente Lula), pelos menos dois membros da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça repetiram os termos “literalidade/literal” para referir-se ao texto da garantia da presunção de inocência do inciso LVII do artigo 5º da Constituição, e a necessidade de se compreender este dispositivo sem

o excessivo apego à literalidade (p. 10, transcrição de julgamento do STF no voto do Min. Jorge Mussi); e “(…) por mais que se queira interpretar o princípio da presunção de inocência tal qual se infere da literalidade do texto constitucional, sem harmonizá-lo com os demais princípios e normas que formam o nosso sistema jurídico penal (…)” (p. 15 do mesmo voto).

Já o Min. Ribeiro Dantas (p. 8 do voto) disse que

“(…) a interpretação mais cômoda do dispositivo constitucional, de que ninguém deve ser considerado culpado senão quando do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, seria a literal, aquela que o Supremo Tribunal Federal não fazia antes e começou a fazer em 2009”.

Embora não tenham recorrido de forma expressa aos termos, todos os votos passaram por esta argumentação: “o que a Constituição disse não é o que a Constituição disse, mas sim o que eu digo”. O detalhe é que este inciso do artigo 5º é protegido pelo artigo 60, §4º, IV, que sequer permite que os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário tendam a abolir qualquer destes direitos e garantias individuais. Dada a diferença ontológica entre texto e norma, ou o caráter principiológico (ou normativo) do direito, ou como o faz Müller ao afirmar que o texto é o início inafastável de todo processo de concretização, é possível indagar: Se nem o Legislativo pode bulir com esse texto, como admitir que o Judiciário esteja aquém do texto constitucional? Veja-se que um juízo de primeiro grau, turmas de Tribunal Regional Federal e do STJ parece se arvorarem no Direito de fazê-lo.

Ainda temos mais: a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a relativização da presunção de inocência não tem efeito vinculante, que, aliás, ingressou em nosso sistema constitucional pela Emenda Constitucional 3/1993; não pelo constituinte originário. A tirar pela decisão unânime da 5ª Turma do STJ e da 8ª Turma do TRF da 4ª Região e pela sentença do Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, o que se conclui é que o efeito vinculante não se aplica mais somente aos instrumentos de controle concentrado da constitucionalidade e às súmulas do STF. E nem precisa mais o STF atribuir este efeito: as instâncias inferiores fazem-no.

Mais uma vez, essa tardia jurisprudência dos valores não é uma solução alternativa para a garantia de direitos em face da crise da velha jurisprudência dos conceitos, de matriz privatista, porque ela — a tardia Wertungsjurisprudence — faz do Judiciário um poder moralista que, em nome de supostos “valores”, põe em risco a própria legalidade do Direito compreendido como um sistema de garantias. Interessante é que o Judiciário faz um mix de jurisprudência da valoração e do realismo norte-americano sem se dar conta (pelo menos a maioria dos seus integrantes) do que isso representa de deletério para a democracia.

Mas dá para ir mais longe. Pensando agora com Franz Neumann,[1] essa inconsistência jurídica por parte dos tribunais “moralistas” gera efeitos destrutivos em relação ao Estado Social de Direito e à democracia constitucional, porque desrespeita os pactos sociais construídos na base da Constituição.

Quanto ao “modus operandi”, seja no Direito Penal, seja no Direito do Trabalho, não há diferença entre a violação da presunção de inocência e a destruição das garantias sociais (afinal, a reforma trabalhista começou como uma tendência no interior do próprio Tribunal Superior do Trabalho), por um Judiciário que, ao se comportar como “poder constituinte”, em nome de supostos “valores” e “cláusulas gerais” viola a Constituição e a legalidade, porque as subverte em seus compromissos fundamentais, construídos na tradição centenária do constitucionalismo social e democrático, adotados pela Assembleia Constituinte de 1987-88, como exigências de cidadania.

Toda questão de controle da constitucionalidade é uma questão de Poder Constituinte. Exatamente isso! Portanto, é um problema de democracia, de estado democrático de direito e não de “excessivo apego”. Perguntamos: por que o judiciário acha que é ruim cumprir a literalidade da Constituição Federal? Qual seria a razão disso? Por que frases como “apesar da literalidade da Constituição apontar para…”? E, por favor, que não se acuse ou epitete de positivistas aos que defendem a legalidade. Aliás, quem inventou essa distopia epistêmica? Eis um bom tema para tanta gente que faz mestrado e doutorado. Sugestão de título da dissertação ou tese: “Porque, quando interessa, a literalidade é ‘boa’ e, quando não interessa, é ‘ruim – a história de uma distopia interpretativa’”.

Mais ainda, quando um órgão julgador decide que o Poder Constituinte quis dizer o contrário do que está escrito, daquilo que disse, não se tem somente uma operação interpretativa defeituosa, que se revolve no âmbito da normatividade constitucional. Agora, a dimensão é de um desafio à estabilidade democrática de um texto que foi produto de um processo democrático, e que não dispõe de um ator político disposto a preservar esta democracia; mas sim de dilatar a “sua democracia”, ainda que seja distante daquela do Poder Constituinte. Reconhecer-se no limite deste Poder Constituinte consiste num gesto de maturidade institucional e política, o que se configura num pré-requisito elementar para a consolidação democrática.

Uma constituição democrática sem democratas é fadada ao fracasso. O ambiente democrático onde os democratas estarão sempre na defensiva, e necessitam responder todos os dias os ataques que se fazem contra a Constituição e a Democracia, não sobreviverá por muito tempo. E quase sempre, como nos mostra Clio, chegam a pagar com a vida.

A ruptura com a democracia começa assim: com relativizações inocentes, com abandono à segurança da literalidade dos textos constitucionais, com a vitória do costume fácil do subjetivismo e da consciência de cada julgador sobre a certeza da letra da lei, produzida pela tensão que toda constituinte traz em sua origem (se não tiver tensão, não será democrática).

Em curto espaço de tempo, o apelo cômodo ao moralismo, e não à razão, que faz com os julgadores deixem-se mais afetados pelo presente do que pelo futuro, “provoca perturbações do ânimo e leva, muitas vezes, a todo tipo de licenciosidades”[2]. Mais tarde, quando menos afetados e puderem compreender com a razão, analisarão candidamente seu próprio passado, implorando pelo perdão, que sempre encorajou os pecadores. Não há nenhum risco a correr quando se vai na direção contrária do Poder Constituinte democrático: acaba-se com a essência da democracia; democracia que nada mais é do que seus permanentes processos de construção cotidiana, sempre no limite do texto constitucional que se produziu.

O STF e tampouco nenhuma das instâncias do Poder Judiciário podem ir além do texto constitucional, especialmente quanto o texto é literal, e assim — paradoxalmente — reconhecido pelos próprios julgadores, como foi o caso do HC 434.766. Corresponde a ir além do Poder Constituinte. Em outras palavras: o STJ atropelou aquela que lhe deu a vida: a Constituição.


[1] Neumann. Franz. A mudança da função da lei no direito da sociedade burguesa. Disponível em pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/download/P.0034-7191.2014v109p13/287.

[2]Spinoza. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007, p. 285.

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