Embargos Culturais

Os canibais brasileiros de Montaigne e os paradoxos da civilização

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

11 de março de 2018, 10h38

Spacca
O pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592) deixou-nos um conjunto de reflexões, práticas e morais, em forma de deliciosos Ensaios[1]. São textos insuperáveis por livros de autoajuda que ornamentam gôndolas de livrarias que também vendem cheese-cake. Montaigne tratou da tristeza, da ociosidade, dos mentirosos, da perseverança, da covardia, do medo, da amizade, da moderação, da solidão, do sono, das orações, da idade, do arrependimento, do útil, do honesto, da vaidade, da semelhança dos filhos com os pais, entre tantos assuntos que matizam a experiência humana. Para tudo que nos aflige há em seu texto uma palavra de compreensão. É leitura indispensável para quem acredita que tudo que nos seja humano não nos seja estranho[2].

Nos mencionados Ensaios há uma capítulo de interesse especial para reflexão em torno da construção e da destruição de nossa identidade. Trata-se do excerto no qual o pensador francês discute o tema dos nativos brasileiros: é o famoso capítulo dos canibais de Montaigne. Cioso das fontes, Montaigne afirmou ter ouvido relatos de um homem “que morara por dez ou doze anos nesse outro mundo que foi descoberto em nosso século, no lugar onde Villegaignon veio a terra e que batizou de França Antártica”[3]. Referia-se a alguém que esteve no Brasil. Parecia ser um informante simples e rústico, condição própria para veracidade do testemunho; é que as pessoas finas, prossegue Montaigne, mascaram as histórias para melhor as adaptarem a seus pontos de vista e narrativas[4].

Com base na narração desse viajante, a par do contato que teve com índios (mediante intérprete), Montaigne construiu uma desconcertante percepção relativa aos donos originais dessa terra. Para Montaigne, ainda que canibais, não havia bárbaros ou selvagens no Brasil: “Acho que não há nada de bárbaro ou de selvagem nessa nação, a não ser que cada um chama de barbárie o que não é seu costume”[5]. Há nessa agudeza de compreensão um relativismo que é marca das pessoas que procuram ser compreensíveis. Para os que não querem compreender o outro, tudo o que é estranho não lhes é civilizado, o que de algum modo paradoxal.

Os habitantes da França Antártida, continua Montaigne, desconheciam o comércio, as letras, as ciências, os números, não havia termos para magistrados ou superiores políticos[6], não havia subordinação, riqueza ou pobreza, contratos, sucessões, partilhas, ocupações além do ócio, “nenhum respeito ao parentesco exceto o respeito mútuo, nem vestimentas, nem agricultura, (…) as próprias palavras que significam mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja, difamação, perdão [eram] desconhecidas”[7]. Viviam num país muito agradável e de clima ameno; não havia doentes, nem homem “trêmulo, remelento, desdentado, ou curvado de velhice”[8]. Tinham grande abundância de peixe e de carne, que comiam sem outro artifício que não o de cozinha-los[9]. Havia madeiras duras, com as quais faziam “espadas e espetos para grelhar os alimentos”[10]. Em vez de pão, comiam uma substância branca, de gosto doce e um pouco insossa[11].

Segundo o texto de Montaigne, os habitantes da França Antártica eram valentes com os inimigos e extremamente amigos e atenciosos para com as mulheres, obrigação que salientavam, como um refrão[12]. A cabeça do inimigo trucidado era pendurada à entrada da casa, como um troféu[13]. A vitória, no entanto, exigia o reconhecimento do oponente, no sentido de que fora derrotado, isto é, a conquista tinha como pressuposto um vencido que aceitava a perda, em sua alma e consciência[14]. Além do que, para esses grupos, enfatizava Montaigne, “a verdadeira vitória reside no combate, não na salvação, e a honra da virtude consiste em combater, não em abater”[15]. Vale lutar, e não necessariamente ganhar.

Os homens possuíam (sic) muitas mulheres, “em número tanto maior que fosse sua reputação na valentia”[16]. Paradoxalmente, as esposas insistiam e colaboravam no aumento do número de esposas, o que lhes conferia prestígio, de modo que “buscam e empregam sua solicitude para que tenham o máximo de companheiras que puderem, pois isso é prova da virtude do marido”[17]. Quanto mais esposas o marido tivesse, mais as mulheres deteriam prestigio, o que aumentava a importância das próprias esposas. Estranha contradição: bom marido é o que tivesse muitas esposas.

Falavam uma linguagem doce e de som agradável[18], mas comiam os inimigos que matavam, outro paradoxo. Montaigne afirmava, no entanto, que havia barbárie maior em comer um homem vivo do que em comê-lo morto, “em dilacerar por tormentos e suspiros um corpo ainda cheio de sensações, de fazê-lo assar pouco a pouco, fazê-lo ser mordido e assado pelos cães e pelos porcos”[19]. Referia-se ao que se fazia na Europa (o que via de fresca memória) e ao que os europeus faziam na América, em óbvia referência à conquista do Novo Mundo. As narrativas do Padre Bartolomeu de las Casas ilustram esse genocídio. Na lógica de Montaigne, a barbárie estava com aqueles que se julgavam civilizados, o que qualifica mais um paradoxo.

Montaigne também se impressionava com o fato de que os nativos da França Antártica se chamavam mutuamente de metades de uns dos outros. Os nativos com os quais conversou assustaram-se com o fato de que na França havia “homens repletos e abandonados de toda espécie de comodidades, e que suas metades eram mendigos às suas portas, descarnados de fome e pobreza”[20]. Os nativos também intuitivamente faziam sociologia comparada, nãos se conformando com as diferenças econômicas entre as pessoas, e seus reflexos nas formas de vida.

A desigualdade era o que mais chocou aqueles poucos autóctones com os quais Montaigne conversou. Pode ser que na igualdade pelos europeus perdida encontra-se a inocência pelos civilizados também perdida. Porque, se o paraíso há, ou ainda houve, é na plena equidade entre tudo e todos que uma existência substancialmente digna pode ser encontrada. Esse assunto não é monopólio dos antropólogos: é também a fé e a esperança dos idealistas. A narrativa de nossa expulsão do paraíso não é monopólio dos teólogos: é também a tristeza e a angústia dos saudosistas, daqueles que contemplamos o passado cair na imensidão do nada[21], absolutamente desafiados por paradoxos que não compreendemos.

 


[1] Há várias traduções para o português. Há a tradução de Sérgio Milliet, editada pela Universidade de Brasília e pela Hucitec, em 1987. Há também a tradução de Rosa Freire D’Aguiar, editada por uma parceria Penguin-Companhia das Letras, em 2010. No presente texto uso essa última.

[2] A imagem é do romano Terêncio: Homem sou e tudo o que é humano não me é estranho.

[3] Michel de Montaigne, Ensaios, Tradução de Rosa Freire D’Aguiar, São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2010, p. 141.

[4] Michel de Montaigne, Ensaios, cit., p. 144.

[5] Michel de Montaigne, Ensaios, cit., p. 143.

[6] A normatividade entre os autóctones do Brasil foi estudada por Carl F. P. von Martius, O Estado de Direito entre os Autóctones do Brasil, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1982. Tradução de Alberto Löfgren.

[7] Michel de Montaigne, Ensaios, cit., pp.146-147.

[8] Michel de Montaigne, Ensaios, cit., p. 147.

[9] Cf. Michel de Montaigne, Ensaios, cit., loc. cit.

[10] Michel de Montaigne, Ensaios, cit., loc. cit.

[11] Michel de Montaigne, Ensaios, cit., p. 148.

[12] Cf. Michel de Montaigne, Ensaios, cit., loc. cit.

[13] Cf. Michel de Montaigne, Ensaios, cit., p. 149.

[14] Cf. Michel de Montaigne, Ensaios, cit., 152.

[15] Michel de Montaigne, Ensaios, cit., p. 154.

[16] Michel de Montaigne, Ensaios, cit., p. 155.

[17] Michel de Montaigne, Ensaios, cit., loc. cit.

[18] Cf. Michel de Montaigne, Ensaios, cit., p. 156.

[19] Michel de Montaigne, Ensaios, cit., p. 150.

[20] Michel de Montaigne, Ensaios, cit., pp. 156-157.

[21] Essa expressão, cheia de dor e de ceticismo, é de Machado de Assis.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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