Interesse Público

Prova emprestada entre processos administrativos: o novo enunciado da CGU

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

8 de março de 2018, 11h00

Spacca
No último dia 28 de fevereiro, a Corregedoria-Geral da União (CRG), órgão integrante do Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União, publicou três novos enunciados, antes aprovados na Comissão de Coordenação de Correição (CCC), colegiado composto de representantes da CGU e de corregedorias federais.

Os três novos enunciados de números 20, 21 e 22 uniformizam o entendimento, nos limites da atuação da CRG, para, respectivamente, 1) prever a possibilidade do compartilhamento de provas entre procedimentos administrativos, 2) afirmar a possibilidade de agravamento da sanção pela autoridade julgadora sem nova manifestação da defesa e, 3) estabelecer a presunção relativa de animus abandonandi, diante de ausências injustificadas por mais de 30 dias consecutivos.

O foco deste artigo é o Enunciado 20, que está assim redigido:

“O compartilhamento de provas entre procedimentos administrativos é admitido, independentemente de apurarem fatos imputados a pessoa física ou a pessoa jurídica, ressalvadas as hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça”.

O enunciado em questão chancela a utilização da prova emprestada no âmbito dos procedimentos administrativos de que cuida a CGU. A Lei 8.112/91 nada fala a respeito.

No site da CGU, há uma exposição de motivos para o citado enunciado. Todavia, a despeito do rótulo, nenhum alicerce é indicado[1]. A exposição de motivos limita-se a repetir, quase de forma literal, o conteúdo do enunciado. Não há referência a artigos de lei ou a julgados sobre o tema.

Porém, uma sucinta explicação para os enunciados pode ser encontrada em notícia produzida pela própria CGU, com o intuito de difundir o entendimento sufragado[2].

A CGU explica que o Enunciado 20, ao admitir a possibilidade de compartilhamento de provas entre procedimentos administrativos diversos, visa “aumentar a eficiência e reduzir custos, evitando que a mesma prova seja produzida mais de uma vez pela Administração Pública”.

Claro que não se desconhece que o atual CPC disciplina a prova emprestada e que o STJ editou súmula permitindo-a. Portanto, o conteúdo do enunciado em exame não é “original”.

Mas a redação, aliada à justificativa dada para sua edição, provoca desassossego.

Primorosos trabalhos foram produzidos sobre o princípio da eficiência[3], realçando a necessidade de examiná-lo à luz da Constituição em que inserido e do perfil de Estado que ela concebe. Logo, deve ser refutada a tentação de analisá-lo sob viés eminentemente econômico, dado que o princípio constitucional da eficiência não se alimenta de perspectivas financeiras, ou ao menos não se exaure em uma matemática rasa, pautada pela redução de custos, como se de ambiente privado estivéssemos a tratar[4].

A atuação eficiente, no caso dos processos administrativos sancionadores, de que é exemplo o processo disciplinar, não guarda relação com redução de custos. Custos são necessários, em maior ou menor medida, para garantir o desenvolvimento constitucional do processo. Pudesse prosperar visão meramente econômica, a simples existência de processo administrativo disciplinar estaria comprometida, diante da necessidade de se estruturarem órgãos responsáveis pela atividade correicional.

O processo administrativo disciplinar é instaurado porque há interesse público na apuração sólida dos fatos. Seu desenrolar deve ambicionar o exame da real ocorrência das condutas atribuídas ao acusado, suas circunstâncias, seu enquadramento jurídico, o exame da culpabilidade e do histórico do agente[5]. Não por acaso deve se almejar a verdade real, gestada em ambiente onde provas são produzidas à luz do contraditório e argumentos são examinados, mesmo que os últimos venham a ser, posterior e motivadamente, refutados pela autoridade competente.

A Constituição da República, ao afirmar a necessidade de ampla defesa, de contraditório e de devido processo legal, não está a se repetir. Ou seja, o direito ao devido processo legal não esvazia ou mitiga o direito à ampla defesa. Ao contrário, para que se confira maior eficácia às normas constitucionais, há de se reconhecer a cada uma delas, e a todas em conjunto, importância, sem que uma norma aniquile as demais ou lhes reduza o destaque.

Hão de ser disponibilizados ao acusado não apenas o espaço, o momento e a oportunidade de produzir provas a seu favor, mas caberá ao Estado colaborar para que a defesa efetiva ocorra, porque o interesse público reside na apreciação exaustiva dos fatos, e não na punição ou absolvição açodadas[6]. Dentro dessa lógica, os meios necessários à existência do devido processo legal material e, por consequência, à ampla defesa e ao contraditório, devem ser assegurados, ainda que isso implique custos.

No processo administrativo, a questão ganha maior realce porque a administração pública assume dupla função. Incorpora a função de parte, bem como exerce o múnus de julgadora, ainda que suas decisões não gozem de definitividade. Assim, há inequivocamente um indiscutível desiquilíbrio entre o servidor e a administração pública, a demandar, nas palavras de Romeu Felipe Bacellar Filho, “que o servidor acusado ou litigante possua, no mínimo, instrumentos para contrapor-se à competência da autoridade administrativa prescrita em lei”[7].

Pois é exatamente o enunciado da administração pública, aplicável em sede de processo administrativo, em que a balança é de início desfavorável ao servidor, que nenhuma alusão faz sobre o contraditório e a ampla defesa, ao admitir a prova emprestada.

O Superior Tribunal de Justiça já havia editado a Súmula 591, que consolida o entendimento favorável à utilização da prova emprestada no processo administrativo disciplinar, desde que devidamente autorizada pelo juízo competente e respeitados o contraditório e a ampla defesa.

A súmula menciona o processo administrativo disciplinar como destinatário da prova produzida, afirmando que o juiz deverá autorizar o compartilhamento, o que reforça a origem judicial da prova. Logo, provas produzidas em processo penal podem ser, com autorização judicial, compartilhadas com a administração pública, condutora do processo administrativo.

O exame dos procedentes que levaram à súmula confirmam a origem e o destino acima mencionados. Assim, que nos parecer que o contraditório e a ampla defesa, reclamados como condição do empréstimo na súmula, estão de certa forma assegurados de toda forma, porque a parte tomou assento no primeiro processo.

O raciocínio ajusta-se ao que o Supremo Tribunal Federal já decidiu em diversas oportunidades[8].

Assim, a intepretação do enunciado, capaz de lhe garantir constitucionalidade, e que se ajustaria ao entendimento dominante, seria a de que a prova emprestada entre processos administrativos condiciona-se ao contraditório, à ampla defesa, ao devido processo legal, enfim, ao princípio da eficiência.

Fora desse contexto não há economia que a alicerce, até porque eficiência administrativa definitivamente nada tem a ver com redução de custos em cenário de ilegalidade.


[1] http://www.cgu.gov.br/assuntos/atividade-disciplinar/comissao-de-coordenacao-de-correicao/enunciados-e-demais-documentos-aprovados
[2] http://www.cgu.gov.br/noticias/2018/02/cgu-publica-tres-novos-enunciados-sobre-materia-correicional
[3] BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. Princípio Constitucional da eficiência administrativa. 2 ed. Belo Horizonte: Forum, 2012. GABARDO, Emerson. A eficiência no desenvolvimento do Estado brasileiro: uma questão política e administrativa. In: MARRARA, Thiago (Org.). Princípios de direito administrativo: legalidade, segurança jurídica, impessoalidade, publicidade, motivação, eficiência, moralidade, razoabilidade, interesse público. São Paulo: Atlas, 2012, p. 327-351. Emerson Gabardo também é autor de Princípio constitucional da eficiência administrativa, obra indispensável sobre o assunto.
[4] “A eficiência não pode ser entendida apenas como maximização do lucro, mas sim como um melhor exercício das missões de interesse coletivo que incumbe ao Estado, que deve obter maior realização prática possível das finalidades do ordenamento jurídico, com os menores ônus possíveis, tanto para o próprio Estado, especialmente de índole financeira, como para as liberdades dos cidadãos.” ARAGÃO, Alexandre Santos de. O princípio da eficiência. In: MARRARA, Thiago (Org.). Princípios de direito administrativo: legalidade, segurança jurídica, impessoalidade, publicidade, motivação, eficiência, moralidade, razoabilidade, interesse público. São Paulo: Atlas, 2012, p. 373.
[5] Não é objetivo deste artigo enumerar os diversos princípios que devem conduzir a atuação administrativa em sede de processo administrativo disciplinar. Recomenda-se, sempre, a obra do professor Romeu Felipe Bacellar Filho, Processo Administrativo Disciplinar, autoridade máxima no assunto.
[6] O assunto remonta à publicação da Súmula Vinculante 5. Já oportunamente abordamos a súmula, cujo conteúdo nos parece inconstitucional.
[7] BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo Administrativo Disciplinar. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 242.
[8] MS 30.361 AgR / DF – DISTRITO FEDERAL; RMS 28.774 / DF – DISTRITO FEDERAL

Autores

  • é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Tem pós-doutorado na Universidade George Washington (EUA).

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