Embargos culturais

O triste fim de Policarpo Quaresma e o triste fim de todos os sonhos

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

13 de maio de 2018, 8h00

Spacca
O escritor Lima Barreto é um injustiçado[1]. Um triste visionário, na percepção de recente biografia lançada pela historiadora Lilia Maria Schwartz[2]. Um homem do trópico com alguma coisa de russo dos gelos em sua vocação para escrever romances ao mesmo tempo sociais e introspectivos, na metafórica alusão de Gilberto Freyre[3].

Lima Barreto viveu em contexto de frustração, de falta de reconhecimento, de preconceito racial, situações existenciais que talvez o induziram à dipsomania, que o levou à morte, no mesmo hospital onde seu pai estava internado, pela mesma razão, alcolismo, morrendo os dois — pai e filho — com a distância de alguns dias.

O Triste Fim de Policarpo Quaresma é provavelmente seu livro mais conhecido. Trata-se de quase concepção de um Dom Quixote nacional. O Policarpo substancializa um idealista, que acredita no país, mas que não se dá conta de que tudo e todos desdenham qualquer projeto nacional sério e genuíno. Lima Barreto opôs com o Policarpo as propostas formalistas e europeizantes da época, centradas em autores como Gustavo Barroso, Alberto Torres e Coelho Neto.

A elite imaginava um Brasil asséptico, que não refletia a imagem que visitantes faziam de nós, a exemplo dos relatos colhidos nas expedições de William James e de Theodore Roosevelt, americanos — um filósofo, outro político — que se aventuraram pela Amazônia. Pensavam em um país de brancos, com alguma coisa de exótico, e com constante imitação do que se fazia na Europa.

Nacionalista, ufanista, preocupado com as coisas do país, o Policarpo queria falar tupi, deixar de lado o português, símbolo linguístico de interferências externas. Policarpo é referência da presidência Floriano Peixoto, o marechal de ferro, que o romance descreve como o verdadeiro ditador que foi, ainda que Policarpo demorasse a acreditar.

O enredo é muito bem pensado. Policarpo era um major, mas não era um major necessariamente do Exército, onde trabalhava como amanuense. Era patético, cômico, suburbano. Seu nacionalismo era ridículo, seu apego para com tudo o que fosse brasileiro é indício de destempero mental. Atemorizado por insetos e saúvas, Policarpo representava um progresso inexistente. Fisicamente, o major parecia ser bem tipicamente brasileiro, de acordo com a descrição de Lima Barreto.

O patriotismo era seu traço marcante. O Policarpo era um estudioso do Brasil, de nossas coisas, de nossa história, de nossas riquezas. Estudava a língua dos índios e a literatura indianista. Um inusitado requerimento de Policarpo fora dirigido à Câmara. Ele pretendia — simplesmente — que se abandonasse o português e que se adotasse o tupi como língua nacional. Esse inusitado requerimento chamou a atenção de todos. Passou a ser ridicularizado, assunto dos jornais, e de todo tipo de comentário maledicente. A situação era constrangedora, abalando-o; a exposição ao público era transtorno. Na repartição onde trabalhava tornou-se motivo de pilhéria e de irritação, que revelava a falsidade e a pequenez da vida burocrática.

Lima Barreto parece descrever a repartição na qual trabalhava, ambiente que talvez contenha um pouco de todas as repartições onde se deixam vidas e sonhos. A biblioteca de Policarpo bem poderia ser a própria biblioteca de Lima Barreto, descrição que aponta gostos e tendências do tempo retratado.

Sua origem era confusa, ainda que indubitavelmente brasileira. Pretendia mudar o Brasil, colaborar com as alterações que se faziam necessárias, sugerir, agir; era chegado o momento de se reconhecer a força de nosso país. Por causa da insistência de Policarpo em utilizar o tupi como língua nacional, suspeitou-se que ele era louco.

Aposentado por invalidez, Policarpo foi viver em seu sítio, entusiasmando-se pela agricultura, dedicando-se com toda intensidade, como intensamente fazia tudo na vida. Começava vida nova, com paixão. Tudo planejava. Inventariava. Classificava. Lia furiosamente. Estudava botânica, zoologia, mineralogia, geologia. Desentendendo-se com os poderosos locais, enfrentando as saúvas e as dificuldades de produzir no Brasil, o major retornou para o Rio de Janeiro.

Queria combater ao lado do marechal Floriano Peixoto, na Revolta da Armada, quando a Marinha se opôs ao presidente. Policarpo tornou-se carcereiro na ilha na qual os revoltosos eram mantidos presos. Indignou-se contra a aleatória escolha de 12 presos que seriam executados. Enviou uma carta ao presidente, o que resultou em seu indiciamento como traidor, e a condenação à pena de morte, o seu triste fim, como triste também fora o fim de Lima Barreto, como escrito acima, morrendo logo depois do próprio pai, quando ambos se encontravam internados num hospício, vitimados pelo alcoolismo. É um triste fim, como tristemente querem que terminem todos os sonhos.

 


[1] Dedico esse pequeno ensaio a meu filho, Bernardo Ribeiro Godoy que, no alvorecer de seus 12 anos, completados nesse 13 de maio, começa a ler esse livro que simboliza as injustiças contra as quais devemos lutar.

[2] Um livro imperdível. Lilian Maria Schwarz, Lima Barreto, Triste Visionário, São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

[3] Gilberto Freyre, Prefácio in Lima Barreto, Diário Íntimo, São Paulo: Brasiliense, 1958.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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