Constituição e Poder

As eleições e as ameaças à democracia brasileira

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30 de julho de 2018, 12h13

Spacca
Com a proximidade das eleições, ganham corpo e ousadia, mesmo entre candidatos, algumas ameaças à democracia instaurada pela Constituição de 1988. Aliás, nada de novo, pois fazem parte de uma longa tradição daqueles que se valem da democracia para acabar com ela. Muito se promete contra as liberdades democráticas, inclusive, paradoxalmente, mais liberdade. Entretanto, como lembra Norberto Bobbio, o grande estudioso das formas de governo, desde sempre, ao final do caminho que se pavimenta com aventuras contra a democracia, o que sempre se encontra é apenas decepção (cito): “Todo o resto está entre a construção de castelos no ar e a agitação pela agitação destinada a fazer aumentar, a curto e a longo prazo, as frustrações. É pouco. Mas mesmo este pouco é tão incerto que buscar outra coisa significa colocar-se mais uma vez na estrada das expectativas destinadas à desilusão” (O Futuro da Democracia, 2006, p. 95).

De todas as características benfazejas da democracia, sem sombra de dúvida, nenhuma desperta mais a nossa admiração do que o respeito às expectativas de todos os competidores, consistente na deferência e acatamento às regras do jogo. Não há possibilidade de democracia, advertia Bobbio, sem um mínimo de consenso sobre as regras do jogo. É um regime em que, basicamente, se pode discordar de quase tudo, desde que aceitemos as regras mediante as quais serão distribuídos os poderes e as competências para a solução desses conflitos.

Nenhuma democracia é, portanto, possível num ambiente em que os seus participantes (governantes ou governados) apenas aceitam os resultados quando lhes sejam favoráveis. Quem se diz democrata deve, em primeiro lugar, estar preparado para os resultados negativos das urnas, que, obviamente, não poderão ser sempre compatíveis com todos os projetos, anseios e interesses que foram colocados em disputa. Esse é o consenso básico da democracia.

Mas, se isso é verdadeiro, o momento vivenciado pela democracia brasileira exige de todos uma séria reflexão, especialmente sobre a nossa capacidade de sermos tolerantes com as ideias e as propostas políticas com as quais não concordamos. Mas, infelizmente, paira na atmosfera eleitoral uma brisa de intolerância que, precisamente por sua irracionalidade e pelo menosprezo com os valores democráticos, precisa ser tomada a sério por todos os que têm responsabilidade com o regime de liberdades condensado no conceito de democracia.

Mesmo pessoas inteligentes analisam a política a partir de uma perspectiva de abstração impossível de encontrar em qualquer atividade humana. Pior que isso, como tenho insistido em múltiplos artigos, tornou-se muito comum entre nós a moralização do discurso político, que tem, na esfera pública, o pior de dois dos mais sérios defeitos de julgamento: por um lado, a injustiça com a política, ao descrevê-la e diagnosticá-la a partir de uma perspectiva exclusivamente detratora; de outro lado, a perspectiva ingênua, ao prescrever como solução e remédio uma pureza inexistente mesmo no mais recluso dos mosteiros beneditinos.

A retórica moralizante, muito embora tomada pelas melhores intenções, nega por completo o que é inextricavelmente imperfeito e limitado em toda a atividade humana. Max Weber, um obcecado por fatos, permitiu-se uma única concessão aos utopistas, que exigem da política sonhos impossíveis de concretizar: ao terminar o seu belo discurso sobre a vocação para a política, lembrava que o homem, é certo, “muitas vezes não teria alcançado o possível se não tivesse tentado o impossível”, mas, de qualquer modo, insiste o grande pensador, desde que se orientando por uma correta perspectiva da realidade política (a política, segundo Weber, é uma tábua dura que só se permite perfurar por quem tenha persistência e perspectiva).

Bem observada a lição do grande sociólogo alemão, portanto, deve-se concluir, com alguma ironia, que, por um lado, a política não é lugar para quem não tem uma perspectiva adequada da realidade, e, por outro, mesmo para aqueles que revelem uma força de vontade extraordinária, a busca do impossível, muito embora louvável, acabará conduzindo a conhecidos caminhos e fronteiras do que é humanamente possível — e, como tal, imperfeito.

Ao despregar-se do que são as limitações humanas, tanto no que se refere aos heróis como aos inimigos de nossa concepção de mundo, além de uma infantilização da discussão política, que deveria ser séria e baseada em fatos, corre-se o sério risco, em pleno período eleitoral, de que a moralização da política leve a um nefasto rebaixamento da disputa eleitoral.

Com efeito, por insistir em tratar a política como um campo de batalha entre, de um lado, o supremo bem e, de outro, o mal essencial, em vez da discussão de ideias, planos de governos e projetos que atendam aos graves problemas que atingem nossa sociedade, nos três níveis de governo de nossa federação, o que se tem observado, durante o período eleitoral, com assustadora persistência, são candidatos de todas as cores políticas vendo-se incentivados e mesmo obrigados a responder a um anseio difuso — em tudo lamentável — de conquistar a vitória com o aviltamento moralista do debate político.

Não podemos esquecer que as eleições são um momento único para a consolidação de uma verdadeira democracia. De fato, a disputa eleitoral cumpre algumas funções essenciais para as modernas sociedades, tão mais livres quanto mais respeitadas em sua complexidade.

Para ficar nas tarefas mais importantes, as eleições, por exemplo, exercem uma função de legitimação, impondo àqueles que pretendem exercer o poder a necessidade de recorrer e submeter-se, como procedimento indispensável à legitimação de sua atuação, à vontade daqueles que estarão subordinados às suas decisões. Têm também as eleições uma função de controle, pois permitem que os governados, periodicamente, fiscalizem e, se for o caso, não reelejam os seus governantes. As eleições desempenham ainda uma função de representação, ao garantir que os diversos interesses e valores da população sejam considerados pelo corpo representativo que elegeram, permitindo, além do mais, uma reconciliação de interesses eventualmente em conflito. De fato, é mediante as eleições que as democracias devem decidir sobre quais objetivos e pontos de vista políticos prevalecerão na competição de ideias e projetos existentes na sociedade, permitindo que os eleitores possam também participar na determinação sobre as receitas e os gastos a serem realizados pelo Estado. Por fim, outra importante tarefa das eleições consiste na sua função de integração, ao envolver os eleitores nos processos de formação da vontade soberana do Estado, fortalecendo, com isso, a sua identificação com o sistema de governo e de domínio, eventualmente, existente.

Característica essencial das democracias constitucionais, as eleições, contudo, não se bastam a si próprias. É induvidoso que, onde quer que se queira falar de democracia, o aspecto formal (numérico e procedimental), do governo de maioria, apresenta-se como componente essencial e indispensável para a sua concretização. Entretanto, correlativamente, também não parece existir discordância significativa entre os estudiosos no que respeita à conclusão de que apenas essa circunstância, de prevalecer a vontade da maioria, por mais importante que seja, não se afigura suficiente para a construção de um verdadeiro regime democrático.

Se fosse possível apenas considerar o aspecto formal e numérico, países como Coreia do Norte e Cuba teriam razão ao proclamar o orgulho de se enxergarem entre as mais bem-sucedidas democracias do globo terrestre. Contudo, a democracia é, certamente, muito mais do que a sua característica formal (de maior número de votos). Além de um governo em que formalmente predomina a vontade da maioria, não se pode falar em democracia verdadeira quando essa vontade não se qualifica por alguns predicados de ordem material. Por exemplo, lembra Konrad Hesse, não se pode falar de democracia onde não se respeita princípios como a liberdade de expressão, a separação de Poderes, o pluralismo político e partidário, além de respeito à dignidade da pessoa humana.

Do ponto de vista puramente formal do governo de maioria, provavelmente nenhum governo poderá ostentar, proporcionalmente, os números da Coreia do Norte. Contudo, o que estremece a confiança no caráter democrático daquele governo é, precisamente, o fato de que, mesmo que compareça às urnas confiante de que viva no melhor país do mundo, precisamente pela ausência concreta daqueles princípios, no seu sistema constitucional, o eleitor norte-coreano estará, de regra, absolutamente desinformado, sem opção partidária ou política, além de não poder, em eventual discordância com as decisões governamentais, socorrer-se de um Judiciário verdadeiramente independente.

Em síntese, como se percebe pelo conhecido exemplo, tampouco se pode falar de democracia onde não se garanta, seriamente, através de instituições estáveis, liberdade de pensamento, opinião e imprensa; onde não se garanta pluralismo político e partidário; ou, ainda, onde não exista a necessária repartição de funções e órgãos (separação de Poderes) mediante os quais se possa, consistentemente, assegurar todos esses pressupostos essenciais a uma sociedade livre.

Paradoxalmente, pela liberdade que a democracia oferece, alguns brasileiros começam a menosprezar as suas qualidades. Muitos acreditam que a democracia permite aos seus integrantes qualquer espécie de comportamento. Nada mais falso. A democracia, precisamente por consistir num sistema de liberdade por excelência, é o regime que mais exige responsabilidade de seus cidadãos. A democracia, como já anotei neste mesmo espaço, não é uma senhora aberta ou sujeita ao comportamento inescrupuloso de indivíduos irresponsáveis. As ditaduras e totalitarismos é que se afeiçoam a indivíduos descomprometidos com as consequências de seus atos. São os regimes totalitários e ditatoriais que subtraem do seus cidadãos qualquer responsabilidade em relação aos atos de poder. Para as autocracias, quanto mais indivíduos irresponsáveis, alheios e passivos, tanto melhor. Ao contrário, na democracia, a liberdade conferida ao cidadão pressupõe uma ação responsável e comprometida com as suas consequências. Mais do que isso, a democracia exige do seu cidadão típico, além de participação e responsabilidade, uma elevada quota de tolerância, pois, num regime de liberdades, o cidadão tem que aceitar que nem sempre suas ideias prevalecerão, nem sempre o seu partido sairá vitorioso e muitas vezes suas ideias e propostas serão derrotadas.

É nesse específico sentido que, na democracia, não se pode aceitar o discurso ingênuo (às vezes infantilizado) de quem moraliza a política. A retórica moralizadora pretende qualificar o opositor como inimigo e tratá-lo como “mal essencial”. Com efeito, coloca do seu lado o bem absolutamente puro e imaculado para situar do outro lado (do lado do opositor) o mal absolutamente impuro e degradado. A ingenuidade com que o discurso moralizador julga o oponente só não é maior do que a forma benevolente com que analisa o seu próprio comportamento.

É por isso que, por paradoxal que pareça, a democracia, como sistema que consente com uma verdadeira alternativa e disputa pelo poder, exige que os agentes políticos atuem, no dizer de Luhmann, com uma “distinta amoralidade” em relação aos grupos opostos, pois nada mais inaceitável para a democracia do que a tentativa de demonizar e “moralizar” negativamente o comportamento do outro. Nas palavras do grande pensador alemão, “em vez disso, a democracia precisa de um estilo de distinta amoralidade, nomeadamente, a renúncia a moralização do oponente ou da oposição política (Moralisierung der politischen Gegnerschaft)”[1].

Em outras palavras, nada mais pernicioso à democracia do que o comportamento de quem pretende fazer política moralizando a si mesmo (como “o bem”) e o oponente (como “o mal”). Nessas condições, o apelo à moral desqualifica não apenas um determinado comportamento ou uma determinada conduta do oponente, mas desqualifica a sua própria existência política e, portanto, a sua habilitação para o exercício legítimo do poder.

A título de conclusão, não sabendo dizer de forma mais correta ou elegante, valho-me uma vez mais desse grande gênio da Sociologia (cito): “O esquema governo/oposição não deveria ser confundido, nem por parte do governo nem por parte da oposição, com um esquema moral no sentido de que apenas nós somos bons e dignos de consideração, e o outro lado, ao contrário, é mau e deve ser condenado e repudiado”[2].


[1] Niklas Luhmann. Soziologische Aufklärung 4 – Beiträge zur funktionalen Differenzierung der Gesellschaft. 4ª Auflage, Wiesbaden: VS Verlag, 2009 p. 136/7. Na mesma ideia de separação da moral de outros sistemas sociais (especialmente da política e do direito) N. Luhmann insistirá no seu delicioso livro sobre a moral, Die Moral der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2008, especialmente nas p. 163 e seguintes.
[2] Niklas Luhmann. Soziologische Aufklärung 4. op. cit., 2009, p. 137.

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