Tribuna da Defensoria

A Defensoria Pública como interveniente: amicus curiae e custos vulnerabilis

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10 de julho de 2018, 8h00

A atuação da Defensoria Pública como instituição interveniente pode se dar tanto como amicus curiae quanto na condição de custos vulnerabilis. Em ambos os casos temos a hipótese de intervenção institucional em um processo judicial que visa ampliar a democratização do debate, nos moldes propostos por Peter Härbele[1], legitimando a decisão judicial e possibilitando a participação em casos que tenham o condão de servir como indexadores jurisprudenciais ou precedentes que interessem ao papel constitucional da Defensoria Pública.

Contudo, não obstante existirem pontos em comum, têm-se evidentes diferenças entre as duas formas de intervenção processual.

O amicus curiae – figura consolidada no Código de Processo Civil de 2015 (artigo 138) e traduzida normalmente para o vernáculo como amigo da corte ou colaborador da corte – quando demonstrar adequada representatividade e possibilidade de contribuir para a solução da causa em juízo, desempenhará papel atrelado a um “interesse institucional” (metaindividual)[2].

A legislação processual traz como pressupostos (alternativos) para intervenção os seguintes: 1) relevância da matéria, 2) especificidade do tema objeto da demanda, 3) repercussão social da controvérsia.

Temos nessas circunstâncias a estruturação de um modelo cooperativo de processo que permite uma decisão judicial mais justa e que possa levar em conta os interesses dispersos na sociedade civil ou no próprio Estado[3].

A cooperação do amicus curiae, espécie de fiscal da ordem jurídica (em complementariedade ao Ministério Público), se dá quando opina sobre a causa em trâmite, sobretudo no que atine a alguma questão técnico-jurídica. Essa é sua natureza jurídica e a razão pela qual foram criados os primeiros dispositivos legais prevendo sua existência (artigo 31 da lei 6.385/76, Comissão de Valores Mobiliários; artigo 89 da lei 8.884/94, Conselho Administrativo de Defesa Econômica; artigo 49 da lei 8.906/94, Ordem dos Advogados do Brasil, artigo 5° lei 9.494/07, pessoas administrativas federais)[4].

Dessa forma, o amicus fornece subsídios que possam aprimorar a qualidade da decisão, em especial quando existe uma dificuldade técnica em relação a determinadas matérias[5], intervindo (com finalidade instrutória) para enriquecer o debate sobre as mais diversas questões jurídicas, pluralizando e legitimando decisão jurisdicional, na medida em que propicia maior influência por meio da abertura do seu procedimento.

Qualquer pessoa, natural ou jurídica, com representatividade adequada, que possua expertise sobre determinada questão e cuja opinião seja relevante para o debate do tema tem possibilidade de vir a intervir como amicus curiae.

Em resumo, o amicus curiae atua no ‘interesse institucional’ como fiscal da ordem jurídica ao prestar, com sua expertise, informações relevantes complementares com finalidade instrutório-cooperativa, contribuindo assim com a pluralização e legitimação do debate judicial.

Ressalte-se, por outro lado, que são expressos os limites legais impostos ao amicus curiae. Primeiro, a admissão dessa figura se dará através de decisão discricionária de autoridade judicial que analisará, nesse momento, a adequação da representatividade do solicitante.

Essa decisão é irrecorrível e eventual não acolhimento do pedido interventivo não vicia o feito. Segundo, o juiz (ou relator) irá definir e delinear os poderes do amicus curiae. Dessa forma, sustentação oral, participação em audiência, apresentação de meios de prova, etc., somente poderão se dar com autorização judicial específica. Terceiro, as possibilidades de recursos são ínfimas, restringindo-se a oposição de embargos de declaração (artigo 138, parágrafo 1º, CPC/2015) e possibilidade de recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas (artigo 138, parágrafo 3º, CPC/2015).

Dessa maneira, além de manifestação por escrito (caso instada de ofício ou após admitida por pedido espontâneo), poucas são as possibilidades processuais garantidas por lei à participação do amicus.

Mas fato é que a participação como amicus curiae pode, conforme já destacado e não obstante todos os requisitos, ser realizada pela Defensoria Pública como instituição interveniente. Não se trata, porém, de única hipótese interventiva. Em complementação, dada a diferença na natureza jurídica e nos limites processuais, a Defensoria poderá intervir em feito judicial também através da figura custos vulnerabilis.

A coexistência de duas posições interventiva-institucionais é admitida pelo Supremo Tribunal Federal para o Ministério Público (em que, além da atuação como custos legis, admitiu-se a participação como amicus curiae)[6]. Assim, ao custos vulnerabilis (análogo ao custos legis) aplica-se o mesmo entendimento.

A intervenção da Defensoria Pública na condição de custos vulnerabilis, por sua vez, será possível em qualquer processo no qual estejam sendo discutidos interesses de vulneráveis.

Nesse caso, a participação defensorial parte de interesses subjetivos para um debate do direito objetivo. Assim, como custos vulnerabilis, a instituição defensorial atua não especificamente vinculada aos interesses subjetivos (individuais ou coletivos) em jogo, mas sim exerce atuação processual que transcende os interesses subjetivados, próprios, das partes que estão na relação processual perante o Estado-Juiz, visando construir e consolidar teses defensivas que repercutam nos vulneráveis. Ora, a Defensoria Púbica é guardiã dos direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade, logo sua atuação em juízo nos casos em que estejam sendo discutidos temas que reflitam nos necessitados se impõe, a fim de que possa reforçar a tese defensiva/protetiva.

Logo, o papel do custos vulnerabilis não será de mero auxílio ao Judiciário, nem estará adstrito a uma cooperação por expertise, mas sim estará atrelado à defesa de vulneráveis através do posicionamento (vinculado) sobre questões que nesse grupo repercutam, caracterizando uma atuação em prol do interesse organizacional, entendido como vulnerabilidade além da econômica.

Ressalte-se que a natureza jurídica dessa posição processual (custos vulnerabilis), isto é, sua verdadeira essência é potencializar a integralidade da prestação jurídico-assistencial através do reforço na atuação da instituição defensorial.

Quanto às possibilidades processuais da Defensoria Pública na condição de custos vulnerabilis, podemos enumerar (de forma análoga) às atribuídas pelo Código de Processo Civil de 2015 ao Ministério Público quando atua como custos legis, quais sejam: artigos 178, 179 e 279, podendo ainda recorrer, nos termos do artigo 1.015, inciso IX. Dessa forma, a Defensoria como custos poderá trazer para os autos argumentos, documentos e outras informações que reflitam o ponto de vista das pessoas vulneráveis, dando-lhes voz amplificada[7]. Em casos tais, tem-se ainda a possibilidade de interpor qualquer espécie de recurso.

Portanto, tratam-se – amicus curiae e custos vulnerabilis – de posições processuais distintas que se alinham na busca por influenciar na formação de precedentes, viabilizar a democratização do processo e robustecer a legitimação da decisão judicial, mas se distanciam notoriamente no tocante à natureza jurídica e ao papel exercido em juízo, sendo a figura do amicus enraizada na proteção (tutela) da ordem jurídica e de perfil colaborativo ao Judiciário (interesse institucional) e a do custos fincado na integralidade da assistência jurídica e com função vinculada à defesa dos direitos de vulneráveis (interesse organizacional).


[1] HÄRBELE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997.

[2] BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae: uma homenagem a Athos Gusmão Carneiro. Disponível em: http://www.scarpinellabueno.com/images/textos-pdf/005.pdf. Acesso em: 20 abril 2018.

[3] BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de processo civil. Volume único. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2018.

[4] BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae: uma homenagem a Athos Gusmão Carneiro. Disponível em: http://www.scarpinellabueno.com/images/textos-pdf/005.pdf. Acesso em: 20 abril 2018.

[5] DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 19ª edição. Salvador: JusPodivm, 2017.

[6] Conforme precedentes na ADPF n. 289 (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 289-DF. Reqte: Procurador-Geral da República, Intdo. Comandante do Exército. Relator: Min. Gilmar Mendes, Brasília. D.J fev 2015. Disponível em: https://www.stf.jus.br. Acesso em: 14 maio 2018) e na ADI n. 5.032 (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.032-DF. Reqte: Procurador-Geral da República, Intdo. Presidente da República. Relator: Min. Marco Aurélio, Brasília. D.J out 2014. Disponível em: https://www.stf.jus.br. Acesso em: 14 maio 2018). Em ambos os casos, o Ministério Público Militar foi admitido como terceiro interveniente na condição de amicus curiae.

[7] ROCHA, Jorge Bheron. A Defensoria como custös vulnerabilis e a advocacia privada. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-mai-23/tribuna-defensoria-defensoria-custos-vulnerabilis-advocacia-privada. Acesso em: 20 abril 2018.

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