Tribuna da Defensoria

Combate à corrupção deve ser prioridade institucional da Defensoria Pública

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3 de julho de 2018, 11h58

No paradigmático julgamento da ADI 3.943, que questionava a atuação da Defensoria Pública no âmbito da tutela coletiva, a relatora, de forma crítica e oportuna, realiza alguns questionamentos[1]:

A quem interessaria o alijamento da Defensoria Pública do espaço constitucional-democrático do processo coletivo?

A quem aproveitaria a inação da Defensoria Pública, negando-se-lhe a legitimidade para o ajuizamento de ação civil pública?

A quem interessaria restringir ou limitar, aos parcos instrumentos da processualística civil, a tutela dos hipossuficientes?

A quem interessaria limitar os instrumentos e as vias assecuratórias de direitos reconhecidos na própria Constituição em favor dos desassistidos que padecem tantas limitações?

Igualmente perspicaz em sua resposta, aduz que interessaria “a ninguém comprometido com a construção e densificação das normas que compõem o sistema constitucional de Estado Democrático de Direito”.

Coadunando-se com o Estado de opção democrática, o resultado da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.943 coloca um termo final à discussão acerca da legitimidade da Defensoria Pública, a qual possui atribuição para a tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, sendo desnecessária a comprovação prévia da pobreza do público-alvo, presumindo-se que, na atuação da instituição, constem pessoas hipossuficientes, seja no viés econômico, jurídico ou organizacional[2].

Seguindo essa linha de raciocínio, hodiernamente, a corrupção aparece como um dos maiores obstáculos à consolidação de um Estado Democrático de Direito, sendo a população hipossuficiente a mais afetada pelos atos criminosos praticados por determinados indivíduos, notadamente por agentes públicos.

Apenas de forma exemplificativa, a corrupção vem retirando a vida de inúmeras pessoas que não conseguem tratamentos adequados na rede pública de saúde; torna incerto o futuro de crianças e adolescentes que não conseguem vagas em creches e escolas; coloca nas ruas inúmeras famílias que não logram em obter moradia digna. Enfim, impede a concretização dos objetivos da república, previstos no artigo 3º, da Constituição Federal, em especial a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com a pobreza erradicada.

A nobre carreira, nos termos do artigo 134, da Constituição Federal, consubstancia-se em instrumento e expressão do regime democrático. Sua tessitura constitucional, pautada na defesa dos necessitados, por si só, justificaria sua atuação na tutela coletiva, bem como no combate à corrupção.

Assim, todas as medidas adequadas — individual, coletiva, extrajudicial ou judicial — estariam abrangidas implicitamente para que a instituição alcance as finalidades institucionais estabelecidas pelo constituinte, nos termos da teoria dos poderes implícitos.

Nesse sentido, a Defensoria Pública, como expressão e instrumento do regime democrático, que possui a função constitucional para a defesa dos necessitados, deverá atuar no combate à corrupção. Concretizando o disposto no artigo 134, da Carta Magna, o artigo 4º, X, da Lei Complementar 80/94 estabelece que, na defesa dos necessitados, serão admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. Os poderes institucionais e instrumentos para a tutela coletiva e combate à corrupção, que já poderiam ser fundamentados pela teoria dos poderes implícitos, foram consagrados expressamente pela lei orgânica da Defensoria Pública.

Por oportuno, apesar de óbvio, trata-se de uma atuação que respeite os direitos fundamentais e as instituições públicas, sempre observando as garantias processuais, a exemplo do contraditório e da ampla defesa, operando-se com cautela e proporcionalidade.

Assim, com total autonomia e independência, consagrada por meio da adoção de um modelo público de assistência integral e gratuita (salaried staff), os presentantes da instituição poderão se vale de medidas judiciais, extrajudiciais, individuais e coletivas para o combate à corrupção, a exemplo da ação civil pública, em especial a ação de improbidade administrativa, das recomendações, do termo de ajustamento de conduta, do poder de requisição, do inquérito civil ou outro procedimento administrativo de instrução, inclusive de investigação criminal.

Toda interpretação que permite à Defensoria Pública utilizar os meios e ações necessárias para a tutela coletiva, inclusive onde não possui previsão expressa, a exemplo da ação de improbidade e do inquérito civil, decorre, além da previsão na Lei Complementar 80/94, de uma interpretação sistemática das normas que compõem o regramento institucional e de tutela coletiva.

O entendimento exposto coaduna-se com uma interpretação neoconstitucional, pautada na força normativa da Constituição e dos direitos fundamentais, notadamente em prol da camada da população mais necessitada. Interpretação em contrário violaria a cláusula de proibição do retrocesso social, bem como o postulado da máxima efetividade dos direitos fundamentais.

A Defensoria Pública, como cláusula pétrea da cidadania, na defesa do Estado Democrático Constitucional, com autonomia, deverá atuar de forma estratégica, coordenada, no âmbito da União, dos estados e do Distrito Federal, inclusive com parcerias com outros órgãos e instituições[3]. Com isso, a Defensoria Pública deverá elevar o combate à corrupção como prioridade institucional, destacando recursos materiais e humanos, com equipe técnica especializada e estrutura adequada. Imprescindível, ainda, o aprimoramento dos defensores públicos, com cursos específicos, o que possibilitará uma atuação técnica e especializada.

No âmbito do Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, no projeto de alteração da deliberação acerca da atuação em tutela coletiva, foi aberta consulta aos defensores da carreira, momento em que fora feita proposta para a concretização do combate à corrupção. Ademais, o tema foi encaminhado à Associação Nacional dos Defensores Públicos, buscando iniciar e pluralizar o debate institucional acerca do tema.

Assim, a Defensoria Pública deverá atuar na defesa da moralidade administrativa, na forma do artigo 37, da Constituição Federal, inclusive prezando pela probidade na execução de políticas públicas, evitando eventuais desvios ao interesse público. A falta e a precariedade na concretização dos direitos fundamentais mais básicos, a exemplo da saúde, educação e moradia, afeta toda a população, em especial aquela em situação de hipervulnerabilidade econômica e social.

A concretização do acesso à Justiça (ao direito) deve ocorrer de forma individual e coletiva, na defesa de toda sociedade. A doutrina institucional contemporânea estabelece uma atuação defensorial com um viés menos individual-patrimonialista e mais social-coletivo, em prol da garantia e promoção dos direitos fundamentais dos hipossuficientes econômicos e organizacionais.

Exemplo marcante dessa nova pauta de atuação consubstancia-se na função ombudsman da Defensoria Pública, que poderá ser realizada no combate à corrupção. Tal atuação, verificada nos nefastos episódios na cracolândia e no desabamento no largo do Paissandu, em São Paulo, permite que a instituição colha informações, inclusive de ofício; realize verificações e inspeções in loco; consulte autoridades públicas, pessoas com direitos violados e lideranças comunitárias, inclusive realizando reuniões e audiências públicas; requisite auxílio da rede de atendimento, do poder público, e outras instituições, buscando cooperação para garantir direitos fundamentais; preze pela conciliação, mediação, atividades preventivas e educação em direitos; utilize todas as medidas judiciais cabíveis, individual ou coletiva.

Indubitavelmente, portanto, a nobre carreira possui amparo constitucional e legal para atuar no combate à corrupção, inclusive podendo se valer de diversos instrumentos para alcançar suas finalidades constitucionais. Nesse sentido, as considerações apresentadas possuem o escopo de iniciar o debate institucional acerca do combate à corrupção. A Defensoria Pública deve elevar o tema à prioridade institucional, concretizando uma atuação robusta, de forma estratégica e coordenada, minimizando os enormes danos causados pela corrupção ao regime democrático e a toda população carente.


[1] ADI 3.943. Relatora: min. Cármen Lúcia. Disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2548440. Acesso em 6 de junho de 2018.
[2] A par do referido julgado, a legitimidade da instituição já estava consolidada, nos termos da redação do artigo 134, da Constituição Federal, conferida pela Emenda Constitucional 80/94. Art. 134: A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.
[3] No ponto, destaca-se que não existe exclusividade constitucional de nenhum órgão ou instituição para a tutela coletiva e, muito menos, para a atuação no combate à corrupção. Pelo contrário, estimula-se a parceria entre instituições, a exemplo da atuação conjunta entre a Defensoria Pública e o Ministério Público, com o escopo de alcançar os objetivos constitucionais.

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