Direito Comparado

Visconde de São Leopoldo e a construção do Direito no Brasil Império

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

17 de janeiro de 2018, 16h29

Spacca
Os juristas ajudaram a construir os novos Estados nacionais do século XIX, ao tempo em que foram, no século XX, aliados ou inimigos dos regimes que mudaram a face das democracias ocidentais. A se começar pelos últimos, são inúmeros os exemplos. René Cassin foi o símbolo moral da autoridade jurídica da França livre, de Charles de Gaulle, contra o governo fantoche de Vichy. Carl Schmitt, Karl Larenz e Roland Freisler representaram o que havia de mais indigno como juristas do regime nazista. Na redemocratização espanhola, o socialista Gregorio Peces-Barba Martínez e o representante catalão Miquel Roca i Junyent tiveram um papel de enorme importância na elaboração do texto constitucional de 1978, que tem assegurado o mais longo período de estabilidade política em Espanha desde meados do século XIX.

No Oitocentos, o número desses “pais fundadores” juristas é ainda maior. Era um tempo em que as fronteiras entre a formação jurídica universitária e o praxismo dos leigos (os rábulas, sem graus acadêmicos) não se apresentavam com tanta nitidez.

Nos Estados Unidos, são célebres os chamados Federalist Papers (Os Artigos Federalistas), um conjunto de 85 textos escritos logo após a promulgação da Constituição da Filadélfia que buscavam interpretar o documento constitucional das recém-independentes Treze Colônias. Seus autores foram nomes como James Madison Jr. (1751-1836), advogado e futuro quarto presidente dos Estados Unidos; Alexander Hamilton (1755-1804), advogado, herói da Guerra de Independência e primeiro secretário do Tesouro norte-americano; e John Jay (1745-1829), revolucionário e primeiro presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos.

O autor do Código Civil chileno, Andrés Bello (1781-1865), é outro exemplo de um jurista comprometido com a formação de seu país, além de ter participado do processo de independência da Venezuela. Eduard Lasker (1829-1894) e Johannes Miquel (1828-1901) foram políticos alemães que passaram à História com a aprovação da Lei Miquel-Lasker, em 20 de dezembro de 1873, que permitiu a alteração à Constituição do Reich a fim de se autorizar fosse elaborado um código civil para a Alemanha unificada1.

No Brasil, há personagens muito importantes na formação nacional, particularmente após a independência e a guerra que se seguiu à declaração de 7 de setembro pelo então príncipe D. Pedro. Uma das fontes para se investigar essa correlação entre os juristas (não necessariamente classificados pelo critério de serem profissionais com graduação formal, como já explicado) e a formação do jovem império são os anais, as atas e as manifestações da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil de 1823 e, posteriormente, da Assembleia Geral (o órgão legislativo imperial), além do Conselho de Estado. Desse período fundacional da História brasileira, encontram-se nomes como o primeiro Marquês de Caravelas2, reconhecido como principal redator do projeto de Constituição do Império do Brasil, e o Visconde de São Leopoldo.

Esse é um tema de particular interesse à compreensão de vários acontecimentos contemporâneos, especialmente quando se deu a transição do poder militar, preeminente desde o golpe de 15 de novembro de 1889, por meio do qual se proclamou a República, ao poder judicial, após a Constituição de 1988, como árbitro dos conflitos políticos do Brasil. E já se dispõe de trabalhos acadêmicos muito rigorosos sobre o assunto. Para se limitar a livros e a autores jurídicos, podem-se mencionar: a) Os juristas na formação do Estado-nação brasileiro, em três volumes, sob coordenação de Carlos Guilherme Mota e outros professores (há variação em cada volume), que saíram publicados pela Quartier Latin (volumes 1 e 2) e pela Saraiva (volume 3); b) O oráculo de Delfos: o Conselho de Estado no Brasil-Império, de José Reinaldo de Lima Lopes, publicado pela Saraiva em 2010, o qual se constitui em uma excelente expressão da historiografia jurídica nacional por lançar luzes sobre um dos mais importantes órgãos político-jurídicos do país desde sua criação até hoje, sobre o qual recaiu na prática o exercício do poder moderador e parte das prerrogativas que, com a República, se confiaram ao Supremo Tribunal Federal.

Para esta coluna, interessará exclusivamente o nome de José Feliciano Fernandes Pinheiro (1774-1847), o primeiro Visconde de São Leopoldo, nascido em Santos e morto em Porto Alegre, graduado em Direito pela Universidade de Coimbra e procurador (deputado, na linguagem de hoje) por São Paulo às cortes portuguesas de 1821. Posteriormente, ele foi eleito pela província do Rio Grande do Sul como deputado-geral para a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império (1823). Em 1824, foi nomeado para o Conselho de Estado e, em 1827, assumiu a pasta da Justiça. Como ministro da Justiça, foi o responsável direto pela criação dos cursos jurídicos no Brasil, por meio do imperial decreto de 11 de agosto de 1827.

Uma efeméride justifica a escolha do Visconde de São Leopoldo: a Lei 13.599, de 9 de janeiro de 2018, incluiu seu nome no panteão dos heróis nacionais (oficialmente conhecido como “Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves”).

A nova lei decorre do Projeto de Lei da Câmara dos Deputados 6.517/2013, de iniciativa do deputado federal Giovani Cherini (PR-RS), estimulado que foi pela seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil, pela Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.

São Leopoldo foi uma daquelas figuras essenciais na formação de um novo Estado nacional no século XIX: jurista, político, historiador e, como era típico do Império, com grande adaptabilidade geográfica, pois, embora tenha sido paulista de Santos, sua carreira se fez no Rio Grande do Sul e na corte do Rio de Janeiro.

Como um dos membros do círculo mais próximo do imperador D. Pedro I, ele participou da tomada de decisões que marcariam o futuro do país. O apoio à imigração europeia e a defesa da criação de escolas primárias estatais são alguns exemplos de sua influência. No Conselho de Estado, São Leopoldo ocupou a importante função de secretário: “(…) lancei e escrevi as atas das sessões em livro para isso destinado, do qual e dos votos por escrito de cada conselheiro era eu o depositário. Conservo todos os rascunhos das atas do meu tempo para o caso de se querer restaurá-la ou esclarecer alguma dúvida”3. Sua saída do Conselho de Estado em 1829 deu-se em razão dos conflitos de São Leopoldo com D. Pedro I, os quais também se manifestaram em relação ao monarca e o Marquês de Caravelas, o qual manteve uma discussão enérgica pouco antes da abdicação do primeiro imperador em 7 de abril de 18314.

A criação dos cursos jurídicos nacionais, contudo, é o legado mais conhecido do novo herói nacional5. O debate sobre a instituição de uma universidade no Brasil, ao menos no início do século XIX, antecede a declaração de independência. José Bonifácio de Andrada e Silva foi autor da “Instrucções do Governo Provisório de São Paulo aos deputados da província às Cortes Portuguesas”, datadas de 9 de outubro de 1821, nas quais “se encerrava a primeira tentativa de vulto para a criação de uma Universidade e de uma Faculdade de Jurisprudência no Brasil”.

Para José Bonifácio, era premente a criação “desde já pelo menos uma universidade, com uma Faculdade de Filosofia, outra de Jurisprudência e uma outra, ainda, de Economia, Fazenda e Governo”. Sendo certo que “a tal Universidade deveria ter a sua sede na cidade de São Paulo”, o que se justificaria “em razão do seu ‘clima temperado, mais frio que quente’, da ‘salubridade dos ares’ e da ‘barateza e abundância de comestíveis’, quer em razão do património instalado, por aí existirem já ‘edifícios próprios para as diversas faculdades nos Conventos do Carmo, São Francisco e São Bento’. O futuro estaria por si”6.

Nos anais da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império, pouco após sua instalação, encontra-se o discurso do Visconde de São Leopoldo, então deputado geral pela província de São Paulo, no qual ele afirmava:

“Uma porção escolhida da grande família brasileira, a mocidade, a quem um nobre estímulo levou à Universidade de Coimbra, geme ali debaixo dos mais duros tratamentos e opressão, não se decidindo, apesar de tudo, a interromper e a abandonar sua carreira, já incertos de como será semelhante conduta avaliada por seus pais, já desanimados por não haver ainda no Brasil institutos, onde prossigam e rematem seus encetados estudos”.

Agora como ministro do Império encarregado dos Negócios da Justiça, São Leopoldo resolveu diversos dos problemas que, até então, impediram a criação das primeiras faculdades do país: as discussões sobre sua localização (tanto quanto hoje, na época os deputados desejavam aquinhoar suas regiões com um curso jurídico), sobre a adequação da corte como sede da faculdade (chegou-se a criar provisoriamente uma Faculdade de Direito no Rio de Janeiro em 1825, sob o fundamento da “notória falta de bacharéis formados”, o que terminou por não sair do papel) e sobre a carência de docentes (o que foi resolvido por São Leopoldo com a indicação dos professores). A instalação efetiva dos cursos só ocorreria no ano de 1828 e com a divisão regional plenamente atendida: São Paulo e Olinda.

Nesta quarta-feira (17/1), foram publicadas duas leis para homenagear outro jurista fundamental para a construção do país: Luís Gama, o "advogado dos pobres, libertador dos negros", notório por defender escravos e ex-escravos perante a Justiça. Ele foi inscrito no Livro dos Heróis da Pátria e nomeado Patrono da Abolição da Escravatura.

A homenagem a São Leopoldo, que teria sido ainda mais oportuna em 2017, com os 190 anos de criação dos cursos jurídicos, é importante para além desse legado. É o reconhecimento de uma personagem de relevo para a formação do Brasil em seus primeiros e difíceis anos de existência como Estado-nação soberano. Mais do que isso, é reveladora do papel dos juristas nessa História. Para o bem e para o mal.


1 Para se conhecer um pouco mais desse processo, sugere-se a consulta a: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. A influência do BGB e da doutrina alemã no Direito Civil brasileiro do século XX. O Direito (Lisboa), v. 147, p. 45-110-110, 2015. Disponível em: https://www.academia.edu/12536886/A_influ%C3%AAncia_do_BGB_e_da_doutrina_alema_no_Direito_Civil_brasileiro_do_s%C3%A9culo_XX_O_Direito_Lisboa_
2 José Joaquim Carneiro de Campos (1768-1836), nascido em Salvador (Bahia), graduado em Direito e Teologia pela Universidade de Coimbra, ministro da Justiça e senador do Império (1826-1836).
3 Memórias do Visconde de São Leopoldo, José Feliciano Fernandes Pinheiro, compiladas e postas em ordem pelo Conselheiro Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. XXXVIIl, parte 2ª, Rio de Janeiro, 1875. p.15.
4 Memórias do Visconde de São Leopoldo, José Feliciano Fernandes Pinheiro, compiladas e postas em ordem pelo Conselheiro Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. XXXVIIl, parte 2ª, Rio de Janeiro, 1875. p.24.
5 Nesse sentido: “À origem do diploma que criou os Cursos Jurídicos ficou indissociavelmente ligada uma figura oriunda da Faculdade de Direito de Coimbra. Impulsionou e subscreveu a Lei de 11 de agosto de 1827, na condição de Ministro de Justiça, a par do Imperador D. Pedro I. Aludimos a José Feliciano Fernandes Pinheiro, o prestigioso Visconde de São Leopoldo, magistrado distinto e político influente” (MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A Universidade de São Paulo, a Universidade de Coimbra e uma perspectiva da evolução do Direito Civil luso-brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 13. ano 4. p. 375-390. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2017. p.380).
6 MARCOS, Rui Manuel de Figueiredo. A Universidade de São Paulo, a Universidade de Coimbra e uma perspectiva da evolução do Direito Civil luso-brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 13. ano 4. p. 375-390. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2017. p.379.

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    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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