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Flexibilizar regra de ouro será grave retrocesso nas finanças públicas

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16 de janeiro de 2018, 10h30

Spacca
O ano começou com duas notícias ruins e profundamente interligadas: a nota de crédito do Brasil foi rebaixada por uma agência de classificação de risco e o governo estuda flexibilizar de alguma maneira a regra de ouro fiscal inscrita na Constituição Federal, que o proíbe de se endividar para fazer face a despesas de custeio, isto é, despesas de manutenção hodierna da máquina pública, como pessoal, material de consumo, serviços de vigilância, gastos com a previdência e outros repetitivos.

O rebaixamento da nota de crédito reflete a perda de consistência dos números do país, agravada pela percepção de que as medidas necessárias para a correção do rumo do crescimento atualmente insustentável da dívida pública não estão sendo tomadas pela classe política, a apontar para a piora do quadro fiscal brasileiro.

De fato, o Congresso Nacional, em 2017, não perdeu nenhuma oportunidade de piorar a situação fiscal do país, a revelar não ter uma clara noção da gravidade do quadro em que estamos. Nosso subdesenvolvimento não ocorre por acaso. Decorre das escolhas equivocadas do país, ano após ano e, em 2017, foram muitas essas escolhas.

A começar pela não aprovação da reforma da Previdência. Temerosa com as repercussões eleitorais da reforma, a maioria dos parlamentares não apoiou a proposta inicial do governo e sequer a proposta abrandada da comissão especial.

É incompreensível que um país pobre e com tantas carências se permita aposentar pessoas plenamente saudáveis e capazes, muitas delas no auge de sua capacidade intelectual, com idade média de 55 anos. Basta ver que os países ricos, que têm muito mais dinheiro e não têm as necessidades de investimento que o nosso tem, aposentam seus trabalhadores muito mais tarde, mais tarde até do que o proposto como reforma da nossa previdência.

A rica e poderosa Alemanha concede aposentadoria apenas a quem chegar aos 67 anos de idade. Quer dizer, somos pobres vivendo um luxo que sequer os ricos se dão! Com isso conseguimos apenas ficar mais pobres. Não corrigir a previdência significa priorizar a destinação de recursos para as aposentadorias precoces em vez de aplicá-los na educação, saúde e segurança.

Além da previdência não reformada, o Congresso Nacional rejeitou a reoneração da folha de salários, atabalhoadamente desonerada pelo governo anterior, com grande perda de receitas e criação de praticamente nenhum emprego.

O Congresso aprovou ainda anistia para devedores da previdência rural, beneficiando um setor que vai muito bem e que não tem nenhuma necessidade de anistia de dívidas. Aliás, nessa linha, aprovou também o enésimo Refis, com redução quase total de multas devidas pelo não pagamento de impostos, passando clara mensagem para a sociedade de que não pagar tributos em dia não é um problema, já que mais a frente pode-se esperar algum parcelamento da dívida, com anistia de multas.

Para piorar o cenário, uma liminar concedida em dezembro pelo ministro Ricardo Lewandowski impediu, ao menos temporariamente, que o governo adiasse a implementação de aumentos salariais em péssima hora concedidos e elevasse a contribuição previdenciária dos servidores públicos de 11% para 14%.

Nosso quadro fiscal se apresenta tão deteriorado que o governo federal cogita enviar ao Congresso Nacional proposta de emenda à Constituição para flexibilizar a chamada regra de ouro fiscal, que preconiza que pelo menos as despesas do dia a dia devem se conter dentro do que é arrecadado, restando o instrumento do endividamento voltado para as despesas de capital.

Quando um governo se endivida para despesas do dia a dia é como se uma família estivesse pagando em prestações a comida no supermercado ou a gasolina do cotidiano. É sinal claro de deterioração de suas finanças.

Flexibilizar a regra de ouro será um grave retrocesso em nosso marco constitucional das finanças públicas. Estaremos renunciando a um dos pilares da responsabilidade fiscal. Se há desequilíbrio entre receita e despesa, é preciso corrigi-lo, seja aumentando tributos, seja cortando despesas e renúncias fiscais, e não aceitar endividar ainda mais a nação para encobri-lo.

Custear despesas correntes com endividamento é viver uma farsa, uma ilusão de que tudo está bem e sob controle, quando não está, acreditando que as coisas vão melhorar de alguma forma no futuro, quando, em verdade, o que melhora o futuro é arrumar a casa no presente.

É inacreditável que o Congresso Nacional possa aprovar uma PEC com tal objetivo e não aprove a reforma da Previdência, a reoneração da folha, a redução de renúncias fiscais que privilegiam alguns em detrimento de todos. Os parlamentares precisam estar à altura do desafio que a nação enfrenta. O Poder Judiciário também precisa tomar consciência da gravidade do momento e das medidas necessárias para que o país possa fazer a difícil travessia para recomposição de suas finanças.

Nos últimos dias, surgiram notícias de que teria sido encontrada uma forma de dar tratamento à dificuldade do governo em cumprir a regra de ouro em 2019. Valendo-se de uma ressalva contida no próprio dispositivo constitucional que a instituiu – art. 167, III, da CF –, poderia o Congresso Nacional, por maioria absoluta em cada Casa, aprovar créditos suplementares ou especiais para fazer face a uma despesa corrente específica, como gastos com previdência, por exemplo, custeados com endividamento. Assim, o Congresso Nacional aprovaria um orçamento formalmente equilibrado e, no correr do ano, aprovaria, por maioria absoluta, a realização de operações de crédito para financiar créditos suplementares ou especiais para alguma despesa específica insuficientemente dotada ou mesmo não dotada de recursos no orçamento aprovado.

Longe de ser solução engenhosa, o caminho apontado é apenas uma burla, uma fraude ao texto constitucional. Equivale a transformar a regra de ouro em letra morta, a revogá-la por via transversa sem necessidade de PEC alguma. Trata-se do jeitinho brasileiro em sua dimensão negativa, aquela que imagina que a realidade pode ser mudada com a mera mudança de rótulos, basta fazer de conta. Antes, toda essa criatividade fosse utilizada para a construção de soluções verdadeiras.

É que a ressalva contida no texto constitucional somente pode ser utilizada se o for com sinceridade, com lealdade com o próprio texto constitucional, sob pena de inutilizá-lo. Vale dizer, a ressalva somente terá ocasião de incidir como excepcionalidade à regra de ouro quando efetivamente for o caso de se suplementar uma dotação ou de se criar uma dotação para despesa não prevista como decorrência de situação de fato verdadeiramente nova, desconhecida e por isso não adequadamente prevista na lei orçamentária.

Não se pode considerar como procedimento legítimo e juridicamente válido a aprovação de orçamento propositalmente mentiroso, fantasioso, lacunoso, para, na sequência, “corrigi-lo” com créditos suplementares ou especiais aprovados por maioria absoluta do Congresso Nacional. Isso seria uma fraude fiscal evidente, uma burla à Constituição, a desvelar um país imaturo que não respeita e não cumpre as próprias regras.

Por mais indesejável que possa ser, seria preferível aprovar com transparência e honestidade alguma flexibilização da regra de ouro a fingir-se que se está a cumprir a Constituição. Se aceitarmos burlar cinicamente a Constituição, então aceitaremos tudo e não seremos dignos de nos considerar um estado de direito, muito menos um país sério. Quando um país finge que está cumprindo regras, perde o respeito por si mesmo.

Quem sabe o rebaixamento da nota de crédito do país e essa discussão sobre a regra de ouro possam despertar os parlamentares e o Poder Judiciário para a gravidade do nosso quadro fiscal, de modo que possam atuar para apoiar o país na recuperação da saúde das finanças públicas, tão vital para a possibilidade de eficácia de qualquer direito, antes que viremos uma Grécia, só que sem União Europeia para nos ajudar.

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