Diário de Classe

O que é, efetivamente, um problema jurídico?

Autores

  • William Galle Dietrich

    é advogado doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista Capes/Proex membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

  • Gilberto Morbach

    é doutorando e mestre em Direito summa cum laude pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos como bolsista do CNPq editor do Estado da Arte (Estadão) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Iris Murdoch Society.

6 de janeiro de 2018, 7h00

O Direito e o ensino jurídico andam mal no Brasil, e essa perspectiva pode ser abordada de diversos modos; sobretudo, a partir do problema da falta de delimitação do objeto no âmbito do Direito ou, em outros termos, a preocupação dos juristas com problemas que não são problemas de verdade — ao menos para um jurista. Com efeito, percebe-se, diariamente, nas faculdades e universidades brasileiras, uma demasiada preocupação com temas que não são jurídicos, ou, vale dizer, que sequer possuem o verniz jurídico que deveriam ter. Como vem denunciando o professor Lenio Streck, faz-se nas salas de aula uma péssima teoria política do poder.

Todos aqueles que cursaram ou ainda cursam Direito com certeza já se depararam com situações em que discussões político-moralistas tomaram contam de aulas inteiras. A cena chega a ser clássica — sobretudo em aulas de Direito Penal — quando o professor, sendo um advogado ou um defensor público, explica tecnicamente sua atuação dentro do processo: “isso não é possível!”; “como o senhor consegue dormir à noite após defender um criminoso?”; “a lei é absolutamente injusta!”, etc.

Isso não é muito diferente do cenário nos trabalhos de conclusão, na medida em que os temas de preferência dos alunos são a questão da legalização ou não das drogas, do aborto, e qualquer outra questão que seja capaz de incitar um debate entre posições políticas. A justiça — ou noções pessoais de justiça —, a política e a economia acabam sobrepondo-se ao Direito, sendo sintomático disso que uma das frases mais utilizadas por turmas de graduação nos cursos de Direito do Brasil — em camisetas de formatura — seja algo no sentido de “hoje faço Direito, amanhã farei justiça” (comportando, ainda, uma série de variações).

A verdade é que os juristas perdem muito tempo com discussões vãs para o âmbito do Direito. Faculdades de Direito foram transformadas em faculdades veladas de política e moral(ismo), e a consequência disso é a evidente “corrupção” do Direito. Se você discute o aborto sob a perspectiva jurídica, não demorará para que alguém lhe acuse de sustentar uma visão política conservadora; na mesma medida, se você criticar a execução provisória da pena a partir das normas constitucionais, de conservador, você passa a ser, rapidamente, um defensor de bandidos [sic].

Isso nos lembra uma interessante passagem da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen. Geralmente, as partes mais sonegadas dos livros são aquelas em que o autor compartilha algumas de suas impressões mais pessoais. Em outros termos, são aquelas passagens em que o autor deixa escapar um pouco de suas angústias sobre o que escreveu. Quando Kelsen escreveu a TPD, parecia ter — por óbvio, guardadas as devidas proporções — preocupações similares com as que existem hoje em torno do objeto do Direito. No seu prefácio, ao tratar das mais diversas objeções que se apresentaram à TPD, escreve

Os fascistas declaram-na [A Teoria Pura do Direito] liberalismo democrático, os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um ponto avançado do fascismo. Do lado comunista, é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista; do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado […]. Em suma, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito não se tenha tornado suspeita. Mas isso precisamente demonstra, melhor do que ela própria poderia fazer, a sua pureza.[1]

Eis, portanto, a consequência de não se saber delimitar o seu objeto. Uma verdadeira crise na qual ninguém mais reconhece que o Direito tem suas especificidades (com Otavio Luiz Rodrigues Jr., podemos chamar a isso de estatuto epistemológico dos diversos ramos do Direito), sua própria racionalidade e sua própria autonomia. Qualquer argumento jurídico a ser levantado pode ser prontamente contestado por posições políticas antagônicas. A consequência lógica disso é que as questões jurídicas deliberadas nas salas de aula por professores e estudantes de Direito, em cursos de Direito, não são feitas sob o standard de racionalidade próprio do Direito!

Assim, tirante todo o problema dos manuais simplificados, resumos, vídeo-aulas estilo quiz-show, etc., o ensino jurídico claramente padece de um problema de inépcia na delimitação do seu próprio objeto. O que é isto — o Direito? Não sabemos sequer delimitar o que é um problema do jurista. Não conhecemos o âmbito da autonomia do Direito.[2] Este é o tema que deveria estar no início de qualquer curso de Direito. Esta pergunta deveria estar na lousa no primeiro dia de aula. E, dali, fazer parte do Diário de Classe de cada aluno.


1 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. XIII-XIV.

2 A questão da autonomia do Direito, vale mencionar, é uma das principais preocupações da Crítica Hermenêutica do Direito, corrente inaugurada justamente pelo Prof. Dr. Lenio Luiz Streck. “Trata-se de uma autonomia entendida como ordem de validade, representada pela força normativa de um direito produzido democraticamente e que institucionaliza (ess)as outras dimensões com ele intercambiáveis. Em outras palavras, sustentado no paradigma do Estado Democrático Constitucional (compromissório e dirigente), o Direito, para não ser solapado pela economia, pela política e pela moral (para ficar nessas três dimensões), adquire uma autonomia que, antes de tudo, funciona como uma blindagem contra as próprias dimensões que o engendra(ra)m. Consequentemente, a sua autonomia torna-se a sua própria condição de possibilidade” (grifos nossos). Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, Constituição e autonomia do Direito. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), São Leopoldo: Unisinos, 1(1): 65-77.

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito Público pela Unisinos, como bolsista Capes. Bacharel em Direito pela Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS). Membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos. Membro da ABDPro.

  • é bacharel em Direito pela Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS). Membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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