Ambiente Jurídico

Os conceitos de Rawls e Trubek e o desenvolvimento sustentável

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6 de janeiro de 2018, 7h00

Spacca
Não há dúvida de que a Teoria da Justiça proposta por Rawls e, em específico, o princípio da diferença por ele formulado são fundamentais para a justificação e a implementação de uma Justiça distributiva necessária na terceira e atual era do desenvolvimento (pós-Estado Providência e Estado Neoliberal), preconizada pelo professor da Wisconsin Law School, David Trubek, com sua célebre doutrina de Law and Development[1], de aparente influência sobre o pensamento de grandes mestres do Direito norte-americano, como os professores Mangabeira Unger, David Kennedy e Duncan Kennedy (todos professores da Harvard Law School, Duncan aposentou-se no ano de 2015).

Trubek enfatiza que existe a necessidade de uma intervenção direta do Estado nas políticas públicas na área da saúde, da educação, na defesa dos direitos humanos, no acesso à Justiça e na proteção de bens ambientais. Tal visão é coerente com a constatação de que o desenvolvimento baseado na supremacia do mercado demonstrou ser ineficaz para o provimento dessas necessidades e, portanto, insustentável.

Intervenções pontuais podem ser viabilizadas com a aplicação do princípio da diferença preconizado por Rawls. Para se viabilizar políticas de distribuição, mecanismos como a tributação com alíquotas progressivas e o tratamento desigual dos indivíduos desiguais, para a busca da justiça, se fazem essenciais na definição do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável que tenho proposto ao longo dos últimos anos. É de se observar que o princípio da diferença dispõe que as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas exigências:

  • a primeira exigência do princípio da diferença é que as posições e os cargos estejam abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades;
  • a segunda exigência é que deve ser estabelecido o maior benefício possível para os membros menos privilegiados da sociedade (acrescento, inclusive aos mais vulneráveis às catástrofes ambientais).

Quando Trubek prega uma rule of law que permita o acesso dos pobres à Justiça, à proteção dos direitos humanos, à saúde universal e à educação pública às expensas do Estado, está defendendo algo em conformidade com o princípio da diferença idealizado por Rawls, que visa trazer o maior benefício aos menos privilegiados. Recursos arrecadados com os tributos deverão ser distribuídos em um volume maior para a construção de escolas, o combate à fome, o tratamento integral de saúde, a assistência social e a previdência, beneficiando, assim, diretamente os setores hipossuficientes e ambientalmente excluídos da sociedade.

A tributação, nesse caso, deverá se dar de modo progressivo junto ao topo da pirâmide social (mais ricos) e, acrescento, também, atingir os maiores poluidores e emissores de gases de efeito estufa. A receita do tributo ambiental pode ser utilizada para o subsídio das energias renováveis, a fim de cumprir os objetivos traçados na COP 21 em Paris, e para implementação de políticas públicas de adaptação e resiliência a serem implementadas pelo Estado para proteger a população dos efeitos dos eventos climáticos extremos causados por fatores antrópicos.

Para Rawls e Trubek, a livre iniciativa deve ser respeitada e incentivada, desde que regulada para que excessos e falhas de mercado não acabem por violar o princípio da diferença. Tal princípio pode ser aplicado na terceira era preconizada por Trubek para, a partir da adoção de cotas raciais ou sociais, por exemplo, garantir acesso à educação aos setores discriminados da sociedade, como negros, índios, transgêneros e, quem sabe, refugiados políticos e ambientais. Deve ser observada a proteção da mulher, que historicamente sofre discriminação com menos liberdade política, salários mais baixos e menores oportunidades de emprego em relação às fornecidas aos homens. Políticas públicas na terceira era podem se valer do princípio da diferença, por algum período (transitoriedade da medida), para desfazer injustiças históricas e promover a dimensão da inclusão social do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável.

No mesmo sentido, um regime de escola pública, com pré-escola, ensino fundamental, médio e, ainda, superior, deve ser financiado pelo Estado — cumpridas determinadas exigências pelos beneficiários —, com a finalidade de atender à população de mais baixa renda que precisa ser resgatada do apartheid social e ambiental, pois na maioria das vezes reside em áreas sujeitas a catástrofes e aos efeitos mais deletérios das mudanças climáticas. Com base no princípio da diferença, é justo que o Estado invista mais recursos em pessoas que vivem nas camadas mais pobres e ambientalmente expostas da população.

No Brasil, por exemplo, recursos do governo financiaram e ainda financiam, em certa medida, cursos superiores para os mais ricos nas universidades federais em detrimento dos mais pobres. Sem regras de cotas, os alunos ricos, que estudaram em escolas particulares por toda a vida, são aprovados nos vestibulares e podem cursar gratuitamente universidades públicas. Os pobres que estudaram — e continuam estudando — em escolas públicas precárias, devido à reforma do ensino no período ditatorial (1964-1985), são, em geral, reprovados sistematicamente nos vestibulares das universidades públicas.

Por gerações, consequentemente, o Estado brasileiro financiou o estudo do ensino superior da população mais rica e excluiu a camada social hipossuficiente da universidade pública. Isso foi um obstáculo e, em certa medida, ainda é para a mobilidade social e o acesso igualitário à educação. Essa política de igualdade formal (não substancial) no concurso vestibular nada mais fez do que aprofundar dramaticamente a desigualdade econômica, social e ambiental preexistente. O resgate de tal injustiça pode ser implementado com a aplicação do princípio da diferença de Rawls.

Não há dúvida de que a doutrina de Trubek caminha no sentido da busca do desenvolvimento humano, mais próxima da valorização do IDH que do PIB como índice de avaliação do desenvolvimento. Conceitos de bens essenciais de Rawls — em especial o de mínimo social — têm grande valia quando se apreciam políticas na atual era do desenvolvimento. Índices de mensuração de desenvolvimento que consideram nível de educação, qualidade na saúde, distribuição de renda, assistência social, previdência e, em especial, a sustentabilidade ambiental, devem ser levados em conta juntamente com a produção e a renda nacional quando se elaboram políticas públicas.

Quando Rawls refere-se aos bens primários e divide-os em cinco categorias, observa-se que renda e riqueza são apenas categorias de bens, mas as demais também precisam ser consideradas. O mínimo social de Rawls pode ser relacionado perfeitamente com a quantidade de bens essenciais que deve possuir o cidadão em qualquer nação do mundo, em especial nos países em desenvolvimento, que são objeto permanente da análise de Trubek.

Por outro lado, observa-se que Rawls parte do pressuposto de que a sociedade bem ordenada deve essencialmente estar inserida em um regime democrático. Democracia é uma conditio sine qua non. No mesmo sentido, Trubek atribui os fracassos ocorridos nas políticas públicas adotadas no passado à falta de democracia, à opacidade e à corrupção em nações em desenvolvimento. Critica, também, a falta de discussão (e democracia) na implantação de políticas públicas e o simples transplante de tais políticas de países ricos para países pobres sob a abordagem one-size-fits-all, a qual ignora realidades locais. Essa crítica também pode ser complementada por Rawls, quando defende o acesso à informação, a participação popular, a publicidade e a transparência como integrantes do conceito de democracia. Modelos de desenvolvimento baseados no one-size-fits-all necessariamente não se encaixam no conceito de sociedade bem ordenada de Rawls e, desde já, devem ser rechaçados.

A democracia e a garantia dos direitos fundamentais e das liberdades políticas básicas (liberdade de consciência, associação e expressão) são essenciais para a formulação de um conceito satisfatório de direito fundamental ao desenvolvimento sustentável. Regimes ditatoriais, marcados pelo desrespeito aos direitos humanos e violadores das liberdades básicas são contraproducentes ao desenvolvimento econômico, à inclusão social e à tutela ambiental em médio e longo prazo.

A imprescindibilidade da poupança pública e da responsabilidade para com as futuras gerações de Rawls serve perfeitamente à implementação de uma política de desenvolvimento na concepção de Trubek. Conceitos de Rawls e Trubek são compatíveis com a responsabilidade das gerações atuais no que se refere às futuras no aspecto da sustentabilidade, da proteção ao meio ambiente e dos direitos individuais homogêneos e difusos. A imputabilidade administrativa, civil e penal daqueles que violam os bens ambientais é convergente com o exposto por ambos, sendo um instrumento importante para a promoção do desenvolvimento sustentável.

O conceito de direito e desenvolvimento de Trubek está focado em sociedades em desenvolvimento. Nações desenvolvidas ficaram de fora dessa análise. Rawls, por exemplo, quando se refere à sociedade bem-ordenada, é inequívoco ao afirmar que nela se entra pelo nascimento e se sai pela morte. Embora em Direito dos Povos pretenda justificar a sua teoria e compatibilizá-la com o Direito internacional, levando em consideração as outras nações, foi e é duramente criticado por tal postura. Trubek, por seu turno, enfatiza o direito ao desenvolvimento das nações em desenvolvimento e de desenvolvimento tardio; não enfrenta, todavia, com maior vigor as crises do capitalismo global e as falhas de mercado que atingem todas as nações do globo que estão interligadas fundamentalmente.

Críticas que podem ser feitas à obra de Rawls, como excessivamente abstrata e focada em uma sociedade utópica e “isolada dos demais povos”, são semelhantes às que podem ser opostas à obra de Trubek, de que em tempos de economia global (caracterizada por nações interdependentes no que tange ao sistema financeiro) pensa o direito ao desenvolvimento essencialmente para os países em desenvolvimento, ignorando as economias dos países ricos. Possivelmente ambas as críticas possam ser testadas e em parte bem rebatidas.

A abstração da teoria de Rawls é justamente o que faz com que ela seja aplicada e testada, com relativo sucesso, nos mais diferentes cenários e nas mais diversas conjunturas e contingências. O alegado defeito da teoria rawlsiana talvez seja o seu grande mérito demonstrado ao longo das últimas décadas. Em Direito dos Povos[2], inclusive, seleciona princípios para a relação entre os povos, o que, de certo modo, responde aos seus críticos nesse aspecto específico e pontual.

Ainda que Trubek pudesse focar o seu conceito de direito e desenvolvimento em todas as nações integradas em uma economia global, inseridas em uma sociedade de informação, talvez seja correto seu foco apenas nas nações em desenvolvimento ou desenvolvimento tardio, as quais precisam de maiores esforços para a construção da rule of law no aspecto local para o combate às desigualdades e a promoção da justiça social. Por outro lado, se é verdade que a abordagem one-size-fits-all é insatisfatória para as nações em desenvolvimento, também é verdade que políticas adotadas especificamente para contingências locais devem necessariamente estar atentas para os fatores de variação econômica, social, política e ambiental globais que afetam a todas as nações[3]. Políticas locais de desenvolvimento sustentável não podem estar desconectadas do cenário global e devem trazer em seu bojo alguns princípios comuns que possibilitem uma maior probabilidade de êxito em uma sociedade de risco[4].

Dentro da conjuntura político-econômica atual, a Teoria da Justiça professada por Rawls oferece uma base teórica para a implementação de políticas públicas que visam ao desenvolvimento sustentável. Conceitos de justiça distributiva e do princípio da diferença, se incorporados ao direito fundamental ao desenvolvimento sustentável, em especial no aspecto humano, são instrumentos preciosos que podem certamente auxiliar a formulação das políticas públicas distributivas e não poluentes, calcadas nas energias renováveis.

Princípios políticos selecionados por Rawls podem ser o alicerce de uma sociedade bem ordenada — neocontratualista — e de uma democracia que permita a todos uma liberdade igual construída sustentavelmente (com tutela ambiental, inclusão social, boa governança e desenvolvimento econômico movido por energias renováveis). É impensável, portanto, concretizar o direito fundamental ao desenvolvimento sustentável ignorando os conceitos de bens primários e de mínimo social.


[1] TRUBEK, David; SANTOS, Álvaro (Ed.). The new law and economic development: a critical appraisal. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. Ver, também, o clássico artigo: TRUBEK, David; GALANTER, Mark. Scholars in self-estrangement: some reflections on the crisis in law and development studies in the United States. Wisconsin Law Review, Madison, n. 4, p. 1062-1102, 1974.
[2] Ver: RAWLS, John. The law of the people. Cambridge: Harvard University Press, 2001. Ver, também: RAWLS, John. A theory of justice. Cambridge: Harvard University Press, 1971; RAWLS, John. Justice as fairness: a restatement. Cambridge: Harvard University Press, 1985; e, em especial, a obra da maturidade rawlsiana, RAWLS, John. Political liberalism. New York: Columbia University Press, 1993.
[3] Um inadimplemento em Bangladesh, de acordo com Posner, pode também se tornar um risco para a economia americana se decorre de um empréstimo fornecido por um banco americano. POSNER, Richard. The crisis of capitalist democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2010. p. 367.
[4] Sobre a sociedade de risco, ver: BECK, Ulrich. Risk society: towards a new modernity. London: Sage, 1997.

Autores

  • é juiz federal, doutor e mestre em Direito. Visiting Scholar pelo Sabin Center for Climate Change Law da Columbia Law School – EUA e professor coordenador de Direito Ambiental na Escola Superior da Magistratura - Esmafe/RS.

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