Limite Penal

O efeito Plutão muda a compreensão de processo penal?

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5 de janeiro de 2018, 7h00

Spacca
Não se trata de horóscopo. Calma. Na primeira coluna do ano, quero fazer uma reflexão que pode auxiliar a compreender os limites e possibilidades do ensino de processo penal. Plutão é um planeta do sistema solar? Quando estudava no segundo grau, aprendi — e talvez você — que o sistema solar era composto de Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano Netuno e Plutão, classificado como planeta até 2006, quando foi rebaixado para planeta anão justamente com Éris, Ceres, Makemake e Haumea; ou seja, de 1930 até 2006, tínhamos nove planetas; hoje, são oito. Isso demonstra que os critérios modificam o resultado. E o que era verdade até ontem, no caso, 2005, deixou de ser por convenção dos especialistas. Enfim, Plutão continua onde está ou não? Mudou a natureza de Plutão ou se modificou o modo como compreendemos?

Esse caráter dinâmico em que as verdades são estabelecidas pode ser interessante para compreender o modo como se fixam decisões judiciais. Inspirado em Carlo Rovelli, “um olhar em direção à realidade, um pouco menos velado do que o da nossa ofuscada banalidade cotidiana”, autoriza um percurso de aprendizagem que exige certo esforço cognitivo (aqui).

Pode-se dizer que, da força probatória ao campo probatório, em que os significantes vibram, ondulam e colidem entre si, montam-se arranjos que podem ser probabilisticamente indicados, sem que se tenha certeza absoluta do modo como se acomodam. Foi-se o tempo em que o processo penal podia ser pensado como uma linear sucessão de significantes probatórios que se associam sem que haja a onipresente interação; sob essa perspectiva, o caráter estático do jogo probatório deve ser substituído pela dinâmica das relações, em que a flexibilidade dos sentidos depende de múltiplos fatores de síntese[1]. Os significantes também difratam em contato com outros significantes, podendo se fundir, associar, expandir e até mesmo criar buracos negros em que a luz antecedente se desfaz, embora não desapareça por completo. A prova ilícita excluída do processo sem que o julgador que determinou a exclusão também seja retirado significa a permanência — efeito perseverança — dos efeitos de uma luz que não mais brilha, mas existe; equipara-se ao do buraco negro.

O sentido que se dá aos significantes probatórios é mais complexo do que aparenta ser. Atribuir como provada alguma hipótese demanda discutir a questão das premissas. Somente a partir delas é que algo poderá ser declarado provado. Por mais básico que possa parecer, o salto que se dá entre a ignorância e o saber é povoado por crenças, intuições, raciocínios e muita deriva cognitiva. Isso porque erros cognitivos podem ser amplamente verificados, salvo se você, caro leitor, acredita-se onisciente, onipresente e completo, incapaz de perder a leitura da completude do mundo. Infelizmente, ainda que imbuídos de boa-fé, assim como os árbitros de jogos de futebol, estamos sujeitos aos erros de percepção, aos pontos cegos (Rui Cunha Martins demonstrou no livro O Ponto Cego do Direito), além do jogo sujo e da manipulação. As câmeras de televisão promovem a visão de diversos ângulos e do lugar do juiz, então, algo que foi declarado como (in)válido pode não corresponder ao ocorrido. Mas é preciso que alguém decida e, no caso, com rapidez. A utilização de recursos tecnológicos de confirmação atualmente decorre do reconhecimento da falibilidade humana. Mas o jurista acredita estar a salvo dos erros em face da ilusão de domínio da realidade e, também, do excesso de confiança[2]. O aroma da incerteza é substituído pelo cheiro da arrogância (aqui).

Os fatos a se provar, assim, podem ser pensados em pacotes de significantes que se chutam mutuamente, na concorrência para ver quem permanece no lugar do reconhecido. Um fato pode não estar comprovado em face de um testemunho, e somente com a adição de novo elemento probatório (por exemplo, um novo depoimento) ser considerado demonstrado. A realidade descontínua avivada no processo decorre de mecanismos legais que limitam a atribuição de sentido. Entre o provado e o não provado há um salto entre órbitas paralelas, cujo centro deveria ser o contraditório significativo, no qual as pretensões de validade pudessem se agitar efetivamente. O salto cognitivo para o atributo provado, então, demanda um ato humano, um evento, que reconhece, a partir das premissas, ter ou não se configurado. Os significantes probatórios só existem se são trazidos aos autos, inexistindo por si, já que será decorrente do trabalho de invocação e tratamento em contraditório. Será da interação que o sentido poderá advir. A interação, por sua vez, sofre a incidência dos efeitos confirmadores, modificadores ou extintivos, dos subjogos posteriores, constituindo uma dinâmica altamente volátil. De colisão em colisão, situados em um contexto, é que os eventos de sentido poderão advir. Resta a aposta na probabilidade de que o sentido aconteça; é da ordem do acontecimento.

O fato constante em uma imputação pode ter acontecido ou não. O que o processo poderá conferir é um conhecimento probabilístico de que os fatos aconteceram, independentemente da realidade objetiva que se passa. Há um limite a ser conhecido e, como tal, o processo penal é impossível (ainda) de dobrar o tempo cronológico e reproduzir o evento em sua instantaneidade. O impasse se dá no momento em que não se pode retroceder a fita, como num filme, nem fazer um remake perfeito; no meio se decide em processo penal. Pode-se objetar que nem tudo pode ficar ao alvedrio da pura e simples interação, no que concordamos, assim como não podemos deixar de sublinhar que o modo como essa interação seja estabelecida, também, pode gerar resultados decisionais diversos. Um crime que aconteceu pode não ser comprovado, e um crime que não aconteceu pode ser provado. O regime de provas é suscetível ao embate cognitivo, em que crenças, vieses, heurísticas e poder de atribuição interagem de modo a colocar um ponto final. Afinal, Plutão é ou não planeta?

Os significantes podem ser entendidos como peças de Lego que são montadas conforme as possibilidades de encaixe. Não se trata, todavia, de uma caixa de Lego cujas peças estão prontas para o encaixe completo e total, dado que, mesmo se produzidas na fase preliminar, demanda um esforço de validação e composição narrativa com sentido. O encaixe precisa ser significante em face da conjectura acusatória (denúncia/queixa) para somente então o produto (decisão) poder atribuir o sentido indicado. A luta pelo (des)encaixe é algo que remete à interação processual. Os saltos de sentido, portanto, aparecem e desaparecem no trajeto dos significantes e de seus subjogos, nos quais o sentido passa pelo conflito de pretensões e, ao final, estabelecem-se em um encaixe possível e decorrente dos critérios democráticos eleitos para atribuição de sentido. O caráter artificial do Direito altera, então, por diferentes mecanismos de exclusão/inclusão de peças de lego probatório, as probabilidades de sentido. Uma prova declarada ilícita, por exemplo, altera o resultado do processo e não o fato pretérito da vida que continua subsistente, mas faz com que a peça (lego probatório) seja excluída e, assim, ao final, o resultado não esteja completo. Os limites processuais de legitimidade/licitude são conquistas civilizatórias que excluem peças de lego probatório do arranjo final, verdadeiro dispositivo de lego-bricolage, em que se narra-junta as peças legítimas/lícitas. E disso se faz processo penal.

Termino o ano com Carlo Rovelli: “Quando aprendemos que a Terra é redonda e gira como um pião enlouquecido, compreendemos que a realidade não é como nos parece: a cada vez que entrevemos um novo pedaço dela é uma emoção. Mais um véu que cai (…) A ciência é, antes de tudo, atividade visionária. O pensamento científico se nutre da capacidade de ‘ver’ as coisas de modo diferente de como elas eram vistas antes”. Tenhamos coragem em 2018. É o que desejamos.


[1] Desenvolvi a questão no livro: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Teoria dos Jogos e Processo Penal. Florianópolis: Empório Modara, 2017.
[2] WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Vieses da Justiça: como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação contraintuitiva. Florianópolis: Empório Modara, 2018.

Autores

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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