Direitos Fundamentais

O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha e o direito ao ensino superior

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5 de janeiro de 2018, 10h01

No dia 19 de dezembro, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (doravante apenas TC) voltou a decidir, dentre outros aspectos correlatos, sobre a existência de um direito subjetivo de acesso a uma vaga no ensino superior, no caso, para a área da medicina humana.

Embora um novo contexto e as peculiaridades do caso, calha recordar que no início da década de 1970, há mais de 45 anos, o TC decidiu o famoso e multirreferenciado (inclusive no Brasil) caso numerus clausus, no qual, em apertadíssima síntese, foi afirmado que não existe, na perspectiva do cidadão, um direito subjetivo originário a uma vaga no ensino superior, mas, sim, um direito subjetivo respeitante às condições isonômicas de disputar uma vaga no âmbito do sistema já estabelecido de ensino, ademais de um dever estatal de progressiva ampliação do número de vagas, a depender do curso e das exigências do mercado profissional. Além disso, foi nesse julgado que restou cunhada a tão falada (e malfalada) figura da reserva do financeiramente possível, acoplada também à razoabilidade da pretensão do cidadão em face do Estado.

Na decisão ora comentada, o TC entendeu que a legislação estatal sobre o procedimento e a atribuição de vagas para o ensino em escolas superiores estaduais, naquilo em que dizem respeito ao acesso ao estudo da medicina humana, não são, em parte, compatíveis com as exigências da Lei Fundamental de 1949 (doravante apenas LF), por violarem o direito subjetivo, de natureza jusfundamental, de igual acesso (cota-parte) na oferta estatal (pública) de ensino superior.

Tal direito subjetivo de igual cota-parte decorre, de acordo com o entendimento do TC (aqui em adesão ao precedente da decisão numerus clausus), do direito fundamental da liberdade de escolha da profissão e formação (artigo 12, parágrafo 1º, da LF) em combinação com o direito geral de igualdade (artigo 3º, parágrafo 1º, da LF), assegurando, a quem preencher os requisitos subjetivos previstos na normativa própria, o acesso, em condições de igualdade, às vagas disponibilizadas pelo Estado para o ensino superior na área de conhecimento de sua opção. Como, contudo, é o legislador democraticamente legitimado quem deve decidir sobre o número de vagas a serem disponibilizadas, tal direito ao acesso em condições de igualdade ao ensino superior se limita às vagas (capacidades) efetivamente existentes.

Além disso, ainda de acordo com o TC, do mandamento do tratamento isonômico por parte do Estado, decorre que as regras sobre a atribuição de vagas devem ser consistentes substancialmente com o critério da qualificação para cada área do conhecimento, o que deve ser aferido levando em conta os requisitos de cada curso e seu respectivo conteúdo curricular e considerando as atividades profissionais típicas correspondentes. O legislador, todavia, não está adstrito a adotar critérios específicos para aferir a qualificação dos candidatos nem mesmo uma determinada combinação de critérios, mas deve observar que os critérios adotados assegurem, no conjunto, uma garantia de previsibilidade. Isso não significa, por outro lado, que o legislador não possa assegurar às universidades uma certa margem de apreciação na determinação dos critérios de acesso, tendo em conta a expertise dos respectivos docentes e pesquisadores e a consideração da liberdade de pesquisa e de ensino, inclusive para efeitos de realização de exames para aferição da qualificação dos candidatos, desde que esses sejam levados a efeito mediante um procedimento isonômico e devidamente estruturado.

No caso ora apreciado, consoante já registrado, a inconstitucionalidade afirmada pelo TC diz respeito a parte das regras previstas na legislação estadual alemã atinentes ao acesso ao ensino da medicina humana, em especial à exigência, quando da opção feita pelo candidato (no que diz com a área do conhecimento), da indicação obrigatória do local em que pretende desenvolver seus estudos, porquanto o critério (que deveria ser o preferencial e prevalecente) da média do percentual de classificação de acordo com as notas do assim chamado Abitur (em termos gerais, é feita uma média das notas obtidas durante os últimos anos do ensino médio, com ênfase em disciplinas voltadas ao curso universitário pretendido) acaba sendo deslocado pelo critério da escolha do local. Da mesma forma, inconstitucional a limitação do acesso ao ensino superior a apenas seis locais de estudos. Em outros termos, deve preponderar o critério da qualificação do candidato a critérios vinculados ao local dos estudos, que pode, contudo, assumir a condição de critério complementar e secundário.

Outro ponto objeto da censura pelo TC diz respeito ao procedimento e respectivos critérios para a aferição da qualificação específica dos candidatos para o acesso a uma vaga no sistema de ensino superior, designadamente, no caso comentado, para a área da medicina humana. Em especial, é de se levar em conta que a autonomia universitária não abrange a possibilidade de um regramento próprio que estabeleça novos critérios não previstos na legislação, em homenagem à reserva de lei parlamentar que vigora nessa seara.

O legislador, por sua vez, deve assegurar que as instituições de ensino superior, caso fizerem uso da possibilidade de estabelecer um procedimento próprio, tenham critérios que digam respeito ao requisito da qualificação do candidato e que correspondam a determinados padrões e sejam aferidos mediante um procedimento isonômico e adequadamente estruturado. A prerrogativa de concretização assegurada às instituições de ensino superior deve se ater à formatação dos critérios de qualificação, diversidade de pesos para determinadas matérias, bem como a inserção de aspectos que digam respeito ao perfil específico do ensino e pesquisa em cada instituição e para cada curso. De acordo com o TC, a legislação geral federal e a legislação estadual não atendem inteiramente a tais requisitos.

Da mesma forma, entendeu o TC ser inconstitucional a legislação naquilo em que não estabeleceu critérios suficientemente abrangentes para aferição da qualificação dos candidatos para efeitos da realização dos exames de admissão no âmbito das instituições de ensino superior, assegurando-lhes a possibilidade de adotar critérios adicionais próprios, não exclusivamente vinculados às notas do Abitur. Mais do que isso, deve o legislador obrigar à adoção de critérios adicionais, de modo que a seleção (e a aferição da qualificação) não seja baseada exclusivamente em um sistema de notas.

Ao fim e ao cabo, o TC decidiu que, à exceção da declaração de nulidade do previsto em dispositivo específico da legislação de Berlim no que violava a Lei Federal Geral do Ensino Superior (Hochschulrahmengesetz), o legislador federal e os legisladores estaduais terão até 31/12/2019 para elaborar novas regras para o acesso ao ensino superior em consonância com as exigências constitucionais, salvo se nesse meio tempo a União não fizer uso de sua competência concorrente nesse domínio.

Mesmo que aqui não se tenha descrito em todas as suas particularidades a fundamentação do TC e todas as peculiaridades do caso, o que importa, para efeito de algumas considerações finais (mas que deixam em aberto muitas janelas a serem abertas e caminhos a serem explorados) é que o julgado ora comentado não corresponde em grande parte ao caso numerus clausus.

Em primeiro lugar, não se tratava, na ocasião, de um processo de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade como no caso atual, mas, sim, de uma reclamação constitucional (Verfassungsbeschwerde) interposta perante um indivíduo. Além disso, na ocasião da primeira decisão o que estava em causa era o reconhecimento de um direito subjetivo fundamental originário, na condição de um direito a prestações estatais, de uma vaga no ensino superior, como corolário da liberdade de profissão, tendo o TC afastado tal possibilidade, limitando-se a reconhecer um direito subjetivo (no sentido de um direito derivado a prestações) de igual acesso (e participação) às vagas já disponibilizadas pelo poder público e um dever de progressiva abertura de vagas quando considerado necessário e de acordo com a opção democraticamente legitimidade do legislador.

Note-se, portanto, que no caso julgado em dezembro, por exemplo, também não se fizeram necessárias considerações acerca da assim chamada reserva do possível, mas, sim, a respeito da correção dos critérios legais (e institucionais) de aferição da qualificação dos candidatos e/ou de outros requisitos para sua seleção. Em suma, o juízo de inconstitucionalidade proferido pelo TC centrou-se no devido processo (substancialmente em termos materiais) para uma constitucionalmente adequada seleção dos candidatos em condições isonômicas e compatíveis com o direito fundamental de liberdade profissional e de formação.

Traçando-se aqui um brevíssimo paralelo com a realidade brasileira e sem adentrar todo o cipoal dos critérios legais de seleção para o ensino superior (como é o caso do Enem e dos vestibulares mantidos, no âmbito de sua autonomia constitucional, por várias universidades), percebe-se que, no concernente ao reconhecimento, ou não, de um direito originário a prestações em matéria educacional, a orientação do TC é, em traços gerais, não muito diferente da que prevalece, inclusive de acordo com expressa previsão constitucional (artigo 208, V, CF), no Brasil, designadamente no sentido de que o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística se darão de acordo com a capacidade de cada indivíduo.

Importa destacar, contudo, que a CF não estabelece, no plano do acesso ao ensino superior, um explícito dever de progressividade, que — na perspectiva do texto constitucional — se dá apenas no que diz com o ensino médio (artigo 208, II – progressiva universalização do ensino médio), o que não significa que tal dever relacionado ao ensino superior não possa ser objeto de reconhecimento como implicitamente imposto.

Da mesma forma, também no Brasil a jurisprudência constitucional, aqui fixada no STF, também não reconhece, por ora, um direito subjetivo originário de acesso ao ensino superior, mas, ainda que não desenvolvido do ponto de vista dogmático como se verifica quanto ao TC, uma espécie de direito derivado, de acesso em igualdade de condições ao ensino superior, inclusive — e aqui de modo diferente ao que se verifica na Alemanha (onde o problema não se manifesta como no Brasil) — a necessidade de políticas de ações afirmativas, como é o caso do sistema de cotas para pessoas de baixa renda familiar e egressas de escolas públicas, afrodescendentes, indígenas e pessoas com deficiência.

Outro ponto digno de nota, diz respeito ao modo de decidir adotado pelo TC, que, fiel à sua trajetória, tem limitado o reconhecimento de um direito subjetivo originário a prestações a situações de natureza excepcional (em geral vinculadas à garantia de um mínimo existencial), ademais de valorizar, do ponto de vista do esquema constitucional de repartição das funções estatais, a primazia do legislador democraticamente legitimado em determinar quais as prestações a serem disponibilizadas pelo poder público e qual o modo de acesso por parte do cidadão. Com efeito, a decisão de, no caso ora comentado, limitar a pronúncia de nulidade a aspectos específicos e em geral assegurar um prazo ao legislador federal e estadual para fazer uso de sua liberdade de conformação desde que atendidas as exigências constitucionais, poderia, ao menos em vários casos, ser levada a sério também pelo STF, ao menos como primeira e principal forma de decidir, porquanto também se sabe que no Brasil o Poder Legislativo não costuma atender aos apelos da jurisdição constitucional, mas, sim, transferir ao Poder Judiciário o ônus político da decisão. Mas esse é um tópico a ser desenvolvido em outra ocasião.

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