Diário de Classe

O papel do professor em tempos de pós-verdade e fake news

Autores

  • Isadora Ferreira Neves

    é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) bolsista Capes/Proex e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Tatiane Alves Macedo

    é procuradora municipal mestre em Direito pela PUC-GO doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) professora da Unifimes e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

3 de fevereiro de 2018, 7h05

Na peça O pagador de promessas, de Dias Gomes, a personagem Zé do Burro, tentando explicar ao padre as razões pelas quais veio pagar uma promessa que fizera à Santa Bárbara, relata que seu amigo, o burro Nicolau, foi ferido por uma árvore que havia caído em um dia de tempestade1. Deixemos Zé do Burro narrar a história.

Quando Nicolau adoeceu, o senhor não calcula como eu fiquei. Nicolau foi ferido, seu padre, por uma árvore que caiu, num dia de tempestade. Um galho, que bateu de raspão na cabeça. Ele chegou em casa, escorrendo sangue de meter medo! O sangue estancou, mas Nicolau começou a tremer de febre e no dia não pôde se levantar.

Zé do Burro recorreu ao “doutor”, às “rezas do preto Zeferino” e “à Mãe-de-Santo”, mas nada dava jeito. “Já estava começando a perder a esperança. Nicolau de orelhas murchas, magro de se contar as costelas. Não comia, não bebia, nem mexia mais com o rabo para espantar as moscas.” Foi então que fez a promessa a Santa Bárbara:

Prometi que se Nicolau ficasse bom eu carregava uma cruz de madeira de minha roça até a igreja dela, no dia de sua festa, uma cruz tão pesada como a de Cristo. Prometi também dividir minhas terras com os lavradores pobres, mais pobres que eu. […] O burro sarou em dois tempos. Milagre. Milagre mesmo2.

Zé do Burro repete a mesma história a um repórter que apareceu ali, se dizendo interessado. No dia seguinte, a notícia sai estampada na capa do jornal:

O novo Messias prega a revolução. […] Sete léguas carregando uma cruz, pela reforma agrária e contra a exploração do homem pelo homem. […] Para o vigário da paróquia de Santa Bárbara, é Satanás disfarçado. Quem será afinal Zé do Burro? Um místico ou um agitador? O povo o olha com admiração e respeito, pelos caminhos por onde passa com sua cruz, mas o vigário expulsa-o do templo. No entanto Zé do Burro está disposto a lutar até o fim3.

Como disse outra personagem: “Acho que o moço não entendeu bem o seu caso…”4.

Fosse hoje, a notícia publicada no jornal seria compartilhada por milhares de pessoas e comentada por outras tantas centenas. O problema maior nem são as opiniões, que muitas vezes assustam, mas as opiniões formadas com base em um texto falso.

Não podemos negar que as redes sociais possuem o evidente mérito de estimular discussões, ampliando o debate público. No entanto, as redes também passaram a ser usadas como um fértil espaço para disseminação de informações falsas.

O Gpopai-USP, por exemplo, apontou que 12 milhões de perfis on-line compartilham regularmente notícias falsas (fake news) nas redes sociais no Brasil. Nem todos os perfis são de pessoas reais. Muitos são os chamados bots, mantidos por programas automáticos5. Um estudo da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da FGV mostrou que esses perfis pré-programados foram responsáveis por mais de 20% das interações no Twitter relacionadas à greve geral de abril de 20176.

Nesse contexto, a Oxford Dictionaries elegeu o termo pós-verdade (post-truth) como a palavra do ano de 2016. Além disso, definiu o que é a “pós-verdade”: um substantivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”7. A palavra é usada por quem avalia que a verdade está perdendo importância no debate político. Boatos amplamente divulgados não valem menos que as fontes confiáveis. É a velha mentira, agora relativizada e se vestindo de pós-verdade.

O problema da publicação e do compartilhamento de notícias falsas ainda é agravado pelo sistema utilizado pelas plataformas, que fazem com que usuários tendam a receber informações destinadas a reforçar os seus hábitos, interesses e opiniões. Formam as "bolhas informativas", que restringem circulação de opiniões e ideias.

Há anos o professor Lenio Streck vem alertando para o problema do ensino jurídico. E agora as deficiências já exaustivamente apontadas pelo professor ganham um novo ingrediente: os debates motivados por informações inverídicas.

Diante desse cenário, nós, professores, devemos assumir a responsabilidade e o compromisso de ensinar nossos alunos a pesquisarem, estimular a busca, a investigação, o escavar. É tempo de refletir sobre a escolha de ferramentas que colaborarão para a formação crítica dos estudantes. Trata-se de propor bons textos, acompanhar a leitura e despertar para a reflexão avaliativa, a curiosidade, o questionamento exigente, a inquietação, a incerteza. É na pesquisa que se encontra a possibilidade de construir uma base teórica sólida, de conhecer os clássicos, a Teoria do Direito, os paradigmas filosóficos que estão por trás de todo o resto.

O estudante pesquisador quer conhecer todas as respostas possíveis. E é no caminho, na busca, que vão surgindo novas ideias, dá-se o parto das ideias (Sócrates). Professor, precisamos formar pessoas capazes de discernir o falso do verdadeiro, a informação confiável do imbróglio, da trapaça, da tentativa de manipulação. E mais, pessoas capazes de furar bolhas.

Cabe ao professor participar na formação de juristas dispostos à reflexão e à busca por respostas adequadas à Constituição, uma vez que o terreno de pós-verdades é propício ao nascimento de posturas ativistas e relativismos interpretativos8. Como fez Zé do Burro na obra de Dias Gomes, há de se lutar até o fim.


1 GOMES, Dias [1922]. O pagador de promessas. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
2 Ibid., p. 41-52.
3 Ibid., p. 89-90.
4 Ibid., p. 90.
5 GRUPO DE PESQUISA EM POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À INFORMAÇÃO DA USP. Disponível em: <http://gpopai.usp.br/>. Acesso em: 2.dez.2017. WITTMANN, Reinhard. Existe uma revolução da leitura no final do século XVIII? In: CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (Org.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1999. p. 135-163.
6 ROBÔS, REDES SOCIAIS E POLÍTICA NO BRASIL [recurso eletrônico]. Estudo sobre interferências ilegítimas no debate público na web, riscos à democracia e processo eleitoral de 2018. Coord. de Marco Aurélio Ruediger. Rio de Janeiro: FGV, DAPP, 2017. Disponível em: <http://dapp.fgv.br/wp-content/uploads/2017/08/Robos-redes-sociais-politica-fgv-dapp_.pdf>. Acesso em: 30.jan.2018.
7 OXFORD ENGLISH DICTIONARY. Disponível em: <https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016>. Acesso em: 20.jan.2018.
8 STRECK, Lenio Luiz. Contra as pós-verdades no Direito Constitucional. Consultor Jurídico, 29.abr.2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-abr-29/observatorio-constitucional-pos-verdades-direito-constitucional>. Acesso em: 31.jan.2018.

Autores

  • é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e professora da Unifimes.

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