Observatório Constitucional

Contra as pós-verdades no Direito Constitucional

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29 de abril de 2017, 8h10

Spacca
Em tempos de fragmentação do Direito e do predomínio de um viés nitidamente voluntarista nas decisões jurídicas, torna-se relevante buscar as raízes desse estado da arte. Alguém perguntaria: como é possível que possa haver julgamentos contra “expresso texto legal ou constitucional” (com as ressalvas àquilo que se entende hermeneuticamente por limites semânticos, conforme explico em Verdade e Consenso e no Dicionário de Hermenêutica)?

A questão é que nossa baixa reflexão jurídica produziu um ensino jurídico standard, com câmbio manual, sem ar condicionado, sem direção hidráulica, sem bancos de couro e sem airbag, se quisermos uma alegoria para melhor entender esse fenômeno. Na verdade, pode-se dizer o contrário: é o ensino defeituoso que gera uma baixa reflexão. Pronto. Graças a isso, continuamos a nos achar muito espertos, cindindo, de um lado, direito e moral e, do outro, quando nos interessa, “moralizando o Direito”.

E saímos por aí dizendo que “princípios são valores” e coisas do gênero. O enunciado “princípio são valores” já é, hoje, um enunciado performativo. Victor Drummond chama a esse tipo de enunciado de “mantra performativo”. Dizer que os valores devem corrigir o Direito é pensar que os valores podem curar as frustrações do Direito. Aqui entra bem uma comparação com Freud e seu Mal-Estar da Civilização, do mal-estar do e no Direito. E a comunidade jurídica não sabe lidar com esse mal-estar. Um problema que eles não conseguem explicar: valores, nesse caso, corresponde à moral? Ou são coisas difusas, sobre as quais não se pode fazer definições? Se não querem acreditar em mim, deem pelo menos crédito a Jürgen Habermas, que gastou rios de tinta para demonstrar que princípios não são valores. E é exatamente por isso que ele diz que a ponderação é uma coisa “frouxa”.

Mas há mais coisas. Para piorar, não se sabe exatamente por que alguém pensa que o problema está na possibilidade de corrigir moralmente o Direito. Sim. Parcela considerável dos professores de Direito ensina para os juristas que um ato pode ser legal, mas imoral. E vice-versa. Como se estivéssemos no século XIX. Ora, se a moral pode corrigir o Direito, quem poderá corrigir a moral? Eis o enigma do mal-estar. Com essa “tese” sobre a cisão direito-moral, o sujeito pode utilizar o dinheiro da cota de passagem para abastecer jatinho particular. Será “feio”, mas legal. Será um ato imoral, mas cometido dentro da lei. Como assim? Ou seja, nossa relação “direito-moral” é, mesmo, produto de uma gambiarra jurídica, como no conto japonês sobre o surgimento do peru, não o país vizinho, mas a ave, invenção que parece ter dado errada. Conto rapidamente. A historinha não é muito longa. Em uma planície, viviam um urubu e um pavão. Certo dia, o pavão refletiu: “Sou a ave mais bonita do mundo animal, tenho uma plumagem colorida e exuberante, porém nem voar eu posso, e não mostrar minha beleza. Feliz é o urubu que é livre para voar para onde o vento o levar”. O urubu, por sua vez, também refletia no alto de uma árvore: “Que ave infeliz sou eu! A mais feia de todo o reino animal e ainda tenho que voar e ser visto por todos. Quem me dera ser belo e vistoso tal qual aquele pavão”.

Foi quando ambas as aves tiveram uma brilhante ideia e, a partir de um acordo de líderes, onde rolou muita emenda parlamentar, juntaram-se e fizeram um cruzamento (os sistêmicos poderiam chamar a isso de “acoplamento estrutural”) entre eles, gerando um descendente que voasse como o urubu e tivesse a graciosidade do pavão. Bingo. Nasceu o peru, que é feio pra caramba e não voa!

Moral da história: se a coisa está ruim, não inventa. Gambiarra é esse ensino jurídico, a prova da Ordem, os livros simplificadores, os “puxadinhos hermenêuticos”, os “dribles da vaca hermenêuticos”, os concursos quiz show, a baixa reflexão jurídica, a “livre apreciação da prova” do nosso velho Código de Processo Penal, a ponderação de regras, a ponderação de princípios. Enfim, são os nossos perus que estão por aí: feios e não voam! E ainda fazem muito barulho por nada. E gambiarra é tentar fugir da crise convocando uma nova Constituinte. Gambiarra é pensar que novos legisladores farão uma constituição melhor do que esta. E a gambiarra maior ainda é pensar que um texto novo terá um novo olhar dos aplicadores e intérpretes.

Um bom exemplo de gambiarra jurídica é a ponderação no modo como ela foi importada para o Brasil. Aliás, muitos ainda falam em ponderação de interesses, outros em ponderação de valores e outros de ponderação de regras. Pior: a ponderação de princípios, de que fala Alexy, acaba sendo feita de forma equivocada aqui no Brasil. Seu resultado é uma espécie de peru — feio e não voa. A expressiva maioria das decisões que dizem usar a ponderação sequer chega perto daquilo que o seu criador, Robert Alexy, estabelece.

Portanto, em tempos difíceis, apostar no Estado Democrático de Direito e na legalidade parece ser o melhor caminho. Fazer atalhos pode acabar em autoritarismo. Como optei por ser jurista, penso que a nós cabe o papel de alertar para o perigo de aventuras neoconstitucionalistas e neoassembleistas.

Quem não acredita na Constituição e/ou descumpre leis produz pós-verdades. Quem não cumpre a Constituição também pode negar a história. No fundo, trata-se do sempre presente fantasma do relativismo. E, para tanto, para não ficar com a sardinha na minha brasa hermenêutica, atiço o fogo do antirrelativismo com um marxista da cepa, Eric Hobsbawn. Vejamos o que ele diz: aquilo que os historiadores investigam é real (e eu digo: aquilo que os juristas investigam é real!). O ponto do qual os historiadores partem é a distinção fundamental entre fato comprovável e ficção, entre declarações históricas em evidencias e sujeitas a evidenciações e aquelas que não o são (e eu digo: distinção entre o que é direito devidamente identificado e o que são meras narrativas estratégias — entre o que é dito por quem quer fazer um ato com responsabilidade politica e um simples agir estratégico).

Diz mais: tornou-se moda entre teóricos dos mais variados matizes ideológicos (estou sendo generoso na frase) negar que a realidade objetiva seja acessível, uma vez que o que chamam de fatos apenas existiria como uma função de conceitos e problemas prévios formulados em termos destes. Assim, o passado que estudamos seria apenas o constructo de nossas mentes. Logo, conclui Hobsbawn, este constructo fragiliza qualquer análise, porque, ao fim e ao cabo, qual será a diferença entre um relato bíblico e um relato das ciências naturais? Se alguém duvidar das teses relativistas é logo chamado de positivista (no sentido do positivismo cientifico, que só trata de fatos; e eu acrescento: lembremos de Nietzsche, que disse que fatos não há; só há interpretações.)

Em resumo, diz Hobsbawn, sem distinção entre o que é e o que não é assim, não pode haver história (e eu digo: se no Direito não é possível dizer o que é e o que não é assim, fracassamos). Roma derrotou Cartago, e não o contrário. O modo como montamos e interpretamos nossa amostra escolhida de dados verificáveis (que pode influir não só o que aconteceu mas o que as pessoas pensaram a respeito) é outra questão.

Na verdade, conclui, “poucos relativistas estão à altura plena de suas convicções, pelo menos quando se trata de responder, por exemplo, se o Holocausto aconteceu ou não. Porém, seja como for, o relativismo não fará na história nada além do que faz nos tribunais”. E eu digo: não podemos negar aquilo que a Constituição estabelece, mesmo que achemos que “isso é ruim”.

Pronto. Era o que eu queria dizer face aos descumprimentos das leis (em especial do CPP e do CPC) e da Constituição. Daqui do lugar de meu “conservadorismo hermenêutico-constitucional”. Como se diz na minha terra, sou constitucionalista, mas limpinho!

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